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Identidade social e identidade discursiva

No documento DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 127-129)

4.6 Identidade e papéis

4.6.2 Identidade social e identidade discursiva

Quanto ao fato de as identidades serem constituídas no contexto das relações sociais, buscamos em Charaudeau (2009) uma importante distinção. Para esse autor, a existência de um sujeito se constrói através de sua identidade discursiva, mas essa precisa de uma identidade social que possa defini-la. Decorre disso a distinção que o autor estabelece entre

identidade social e identidade discursiva.

A identidade social tem como particularidade a necessidade de ser reconhecida pelos outros no contexto social. Ela é, inclusive, o que confere ao sujeito seu direito à palavra, o que funda a legitimidade de um dizer. O processo pelo qual alguém é legitimado é o de reconhecimento de um sujeito por outros sujeitos sociais, em nome de um valor aceito por todos. Por isso, tal legitimidade depende das normas institucionais que regem cada domínio das práticas sociais, atribuindo funções, lugares e papéis aos sujeitos. Por exemplo, a identidade de mãe que se inscreve tanto por filiação biológica quanto cultural, dá ao indivíduo a autoridade maternal no âmbito social para que o indivíduo possa atuar no papel de mãe. Contudo, cada mãe constrói, por seus comportamentos e atos, sua personificação de mãe, podendo ser reconhecida como: autoritária, protetora, compreensiva, castradora, indiferente etc. Por isso, em seu conjunto, a identidade mãe resulta da combinação de atributos sociais (o que a sociedade reconhece como mãe), mas também pessoais (como cada indivíduo mãe se apropria dessa representação para agir no papel que lhe conferido), embora esse último se encontre sempre submetido às determinações sociais, sobre pena de se descaracterizar tal identidade.

Já no domínio científico, por exemplo, a legitimidade da identidade de grupo é regida pela lógica da produção de conhecimento formal, os atores são legitimados em seus papéis pela obtenção de diploma e títulos - adquiridos por meio de um sistema seletivo de ingresso à academia, aliado a sua contribuição e reconhecimento pelos pares. É isso que possibilita o acesso a essa comunidade particular e, consequentemente, a apropriação identitária referente ao grupo.

Entretanto, em qualquer que seja o caso, havendo divergência com relação à conduta esperada de cada um dos atores, imediatamente se põe em questão a legitimidade de atuação e, consequentemente, o indivíduo pode deixar de se identificar com o grupo e de ser identificado por ele. Portanto, é o conflito entre os atores e seus papéis que quebra os padrões sociais. Se o ator inobserva o padrão pré-estabelecido para o papel de mãe ou de acadêmico (seguindo o

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exemplo acima), o indivíduo perde a autoridade de ser perante a sociedade e, portanto, compromete sua identidade dentro da organização social.

Existe, entretanto, outro tipo de legitimidade, aquela que é atribuída de fato pela força do reconhecimento, que ocorre quando a sociedade entende que um valor deve ser prestigiado. É, por exemplo, o caso da atribuição de um prêmio ou um título honorífico em razão de uma atuação notável constituída por certo saber fazer, que permite um indivíduo agir em nome de uma prática. É o caso dos antigos desportistas que se transformaram em comentaristas (ou mesmo jornalistas); dos escritores, poetas ou membros honoríficos da academia de ciências que se transformaram em críticos literários, ou ainda, do testemunho pessoal de um momento histórico que permite um indivíduo falar em nome de uma experiência coletiva (“aconteceu comigo”, “eu vivi esta época”, “eu estava lá”).

A identidade social é, pois, algo atribuído-reconhecido, um pré-construído em nome de um saber institucional e socialmente reconhecido, que se constrói em função de uma prática social. Ela é, como veremos, em parte determinada pela situação comunicativa, “[...] porque deve responder à questão que o sujeito falante tem em mente quando toma a palavra: ‘Estou aqui para dizer o quê, considerando o status e o papel que me é conferido por esta situação?’” (CHARAUDEAU, 2009, p. 309-326).

A identidade discursiva, por sua vez, apresenta a particularidade de ser construída pelo sujeito falante, sendo por isso representativa da proposição “estou aqui para falar como...”. Nesse sentido, é sempre algo em construção, porque resulta de escolhas durante o processo de formulação linguística do dizer, levando em conta, evidentemente, os fatores constituintes da identidade social, que podem tanto ser reativados quanto negados ou mascarados. Isso porque “a identidade discursiva é construída com base nos modos de tomada da palavra, na organização enunciativa do discurso e na manipulação dos imaginários sóciodiscursivos” 10

(CHARAUDEAU, 2009). Assim se estabelece um jogo entre a identidade social e a identidade discursiva. E, nesse jogo, é que se inscreve a influência discursiva entre os participantes da situação de comunicação: os interlocutores. Essa influência está relacionada à forma pela qual os objetivos e intenções comunicativas se inscrevem. Há casos, por exemplo, em que a identidade discursiva adere à identidade social, formando uma identidade única: o sujeito produtor projeta um “eu sou o que digo ser”, ao que o sujeito receptor entende: “ele é o que diz ser”. Há, porém, casos em que a identidade discursiva se diferencia da identidade

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social formando uma identidade dupla: a do ser (identidade social) e a do dizer (identidade discursiva). Nesse caso, o sujeito produtor se deixa apreender como sendo algo como “eu não sou o que digo ser”, e o sujeito receptor entende “ele não é o que diz”. Nesse último caso, ou o dizer está mascarando o ser (o que revelaria a mentira, a ironia ou a provocação), ou o dizer está revelando um ser que ignora estar se revelando (o que apontaria para a denegação ou a revelação involuntária: “sua voz o traiu”). Essa dinâmica entre identidade social e identidade discursiva, como veremos a seguir, pode ser entendida à luz da categoria ethos discursivo, ou seja, a imagem discursiva que emerge a partir da voz que o discurso assume apresentando uma corporalidade e um caráter específico.

No documento DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 127-129)