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Contexto social e contexto cognitivo de Alcântara Silveira

No documento DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 181-185)

6 Construção intertextual e interdiscursiva do mito

6.3 Antes da projeção social do mito

6.3.3 Contexto social e contexto cognitivo de Alcântara Silveira

Quase um ano após a crítica de Rolmes Barbosa, o nome de Cora Coralina emerge novamente no mesmo Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo, inclusive, ao lado da coluna de Rolmes. Dessa vez, entretanto, a crítica tecida por Alcântara Silveira em relação ao livro Poemas dos Becos é, embora breve, negativa.

O crítico, guiado pelo contexto social conservador não apenas da literatura, mas também da ideologia política vigente, nessa edição do jornal, intitula sua coluna como Um instante,

leitor!, que é um empréstimo do nome do programa Um instante, maestro!, apresentado por Flavio Cavalcanti, como explica o próprio autor da coluna. O empréstimo do título se deve ao conteúdo do programa que, dentre os poucos que o crítico diz assistir na televisão, o agrada. O

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programa é apresentado pelo radialista Flávio Cavalcanti e, nas palavras do próprio radialista, citado por Alcântara Silveira, esse programa tem a missão de “policiar e higienizar” letras de músicas, “realçando as aceitáveis e combatendo as nocivas, as imorais e as ‘burras’”.

Na vez de Cora Coralina, Alcântara Silveira introduz o tópico: “Mas não é só na ficção que encontramos livros ilegíveis” e, em seguida, a referência ao livro da escritora goiana: “Também em matéria de versos a safra seria enorme [...], como provam estes ‘Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais’, de D. Cora Coralina. (Livraria José Olympio)”. O trecho citado pelo crítico é do poema que ele nem sequer cita o nome, Antiguidades:

Até os nomes, que não se percam: / D. Aninha com Seu Quinquim. / D. Milécia, sempre às voltas / com receitas de bolo, assuntos / de licores e pudins. / D. Benedita com sua filha Lili. / D. Benedita - alta, magrinha. / Lili - baixota, gordinha. / Puxava de uma perna e fazia crochê. / E, diziam dela línguas viperinas: / "- Lili é a bengala de D. Benedita".

Após a citação, a crítica à obra de Cora Coralina se encerra com um singelo “Mas deixemos de lado o livro de D. Cora Coralina”, comentário que sintetiza o contexto cognitivo do crítico que, nos mesmos moldes, passa a satirizar outra escritora, D. Cinzica Monti Rolli e sua obra,

Incêndio das rosas. Dessa forma, por meio do Controle, tais representações são instauradas e tendem a serem assimiladas pelos leitores do jornal como leituras que devem ser evitadas por serem de má qualidade.

A estratégia discursiva de Alcântara Silveira é a mesma utilizada por outros críticos, ao usar trechos das obras como amostras e, a partir deles, tecem a avaliação. Positiva ou negativa, uma vez construída a avaliação a partir desses fragmentos, compromete-se o valor da totalidade da obra, uma vez que a representação já se instaurou na mente do leitor, que passa a ter essa informação como referência que guia a experiência pessoal sobre as obras citadas. O sentido atribuído pelo leitor à resenha do crítico resulta da soma das percepções que o leitor tem em relação: a) ao jornal O Estado de São Paulo; b) ao crítico Alcântara Silveira; c) ao apresentador Flávio Cavalcanti; d) à ideologia militar do regime político. Cabe ressaltar ainda que essa última recebeu apoio das classes mais abastadas da sociedade e dos núcleos centrais do saber e da grande cultura, que compartilhavam, se não de toda, de boa parte da ideologia a serviço da mentalidade progressista nos moldes em que se configurou naquela.

A maneira como construímos nossas representações pessoais, ou seja, nossa versão sobre o mundo, sobre fatos e pessoas é construída com base nas representações socialmente

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compartilhadas. São essas representações que orientam as condutas e os comportamentos das pessoas nas relações sociais, permitindo a cada indivíduo interiorizar suas experiências, práticas e modelos de conduta. Para Moscovici (2003), são esses modelos de experiência que ativam nossa consciência, nos fazendo perceber e interpretar as coisas do mundo. Para esse autor, a materialidade das representações e do seu processo aos olhos dos sujeitos, seu deslocamento, sua naturalização e projeção (a que outros teóricos poderiam chamar, negativamente, de alienação), consiste num mecanismo psicossocial de apresentação/ construção social da realidade. Em geral as pessoas não se dão conta dos valores que defendem: a maneira como representam as coisas são tributárias de pontos de vista sobre o mundo.

Evidentemente isso não quer dizer que não sejamos capazes de agir criativamente, realizando conexões conscientes ou até mesmo reestruturando conhecimentos e convenções aos quais estamos expostos no cotidiano de nossas relações. Apenas indica, isso sim, que somos tributários de duas formas de ilusão. A ilusão referencial, que nos faz acreditar que há uma relação direta e natural entre o conhecimento que temos sobre as coisas e a coisa propriamente dita. E a ilusão que diz respeito ao fato de que, embora os sentidos que atribuímos às coisa se realizem apenas em nós, eles são determinados pela maneira como nos inserimos histórica e socialmente no mundo e, exatamente, por isso é que eles significam para nós e para os outros.

6.3.3.1 Crença literária de Alcântara Silveira

A crença de Alcântara Silveira sobre o que é e o que não é literatura pode ser verificada pelo uso de ironia e expressões agressivas por meio do satírico “Flavio Cavalcanti das letras”, idealizado pelo crítico para que possa tecer seus juízos de valor sobre o que ele não considera Literatura. Ao incorporar o programa Um instante, Maestro!, o crítico assume sua postura conservadora em relação à literatura, revelando uma visão elitista ao desprestigiar publicações que fogem à sua concepção da prática literária. A primeira avaliação é sobre o mercado editorial:

[...] “o Flavio Cavalcanti das letras não teria tempo de examinar toda essa baboseira pseudocientífica que hoje se edita aos borbotões, pois só a leitura da ficção e da poesia obrigá-lo-ia a um terrível esforço de separação do joio e do trigo”.

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Em seguida, o crítico discorre sobre a publicação de romances, começando pela obra O Viúvo, de Oswaldo França Junior. Em relação à obra, Alcântara Silveira a avalia a partir das expressões “fiquei surpreso (mas não empolgado)”, “romance corriqueiro e chão”, “em que não há nada, absolutamente nada, que se salve sob o ângulo artístico”, “mas é inútil estar citando trechos isolados, quando todo o volume precisaria ser editado”.

O próximo livro, Linha do Vento, de Rodrigues Marques, o crítico anuncia como “Outro livro que não merecia ser editado”. O autor ainda ironiza o escritor Permínio Asfora, que elogiou a obra de Rodrigues Marques: “Não fiquei boquiaberto com a opinião de Permínio Asfora, pois, depois que ‘A faca e o Rio’, de Odylio Costa Filho, foi elogiado por gregos e troianos, nada mais me assunta...”.

Em relação à poesia, além da obra de Cora Coralina, o crítico ridiculariza outra autora, Cinzica Monti Rolli. Com relação aos elogios à obra, que constam no próprio livro, Alcântara Silveira escreve: “Leiamos alguns versos para mostrar com que facilidade se elogia entre nós”. Após citar trechos de um poema do livro ganhador de dois prêmios, Alcântara Silveira termina a crítica sobre a obra com um irônico “Parabéns!”.

Embora o crítico não especifique o que é boa literatura para ele, por meio das críticas tecidas na coluna fica evidente o que ele considera como má literatura. O tom usado pelo crítico, adotando o estilo agressivo do radialista Flávio Cavalcanti, não apenas qualifica negativamente as obras citadas por ele, como as desqualifica de qualquer atributo literário. É interessante a expressão “policiar e higienizar”: cabia a ditadura “policiar”, entre outras coisas, as produções e atividades culturais, sempre atentos a materiais tidos como subversivos ou contra a moral, a família e os costumes. Após a detecção, vem a “higienização”, que é a remoção do conteúdo “sujo” do convívio social, proporcionando, dessa forma, uma higiene, que seria “mental”. Em outras palavras, “policiar e higienizar” é detectar e remover da sociedade qualquer conteúdo contrário à ordem estabelecida pelo regime militar. De acordo com Oliveira (2001), Flavio Cavalcanti tinha uma ligação muito forte com a ditadura, a ponto de representar em seu programa Um instante, maestro! toda a ideologia daquele grupo de poder. Era comum ao apresentador, por exemplo, quebrar discos de Caetano Veloso ou denegrir homossexuais em nome dos valores morais conservadores - tudo ao vivo e muitas vezes na presença de alguns ilustres convidados ligados ao poder político da época.

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Alcântara Silveira não apenas empresta o nome do programa como também sugere que o modelo da atração televisiva seja utilizada em outras atividades humanas, inclusive na Literatura e, no caso dessa, “se tentasse obstar senão a publicação de livros que não merecem ser editados, pelo menos a sua leitura”. E a partir de tal proposta, o crítico passa a construir juízos de valor sobre vários livros contemporâneos por meio de um “Flávio Cavalcanti das letras”. Nessa perspectiva, evocar Flávio Cavalcanti é incorporar a ideologia da ditadura militar. Dessa forma, Alcântara Silveira - atuando como Controle nessa estrutura discursiva institucionalizada - coloca o jornal O Estado de São Paulo inserido na ideologia dominante.

No documento DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 181-185)