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Lembrança como aspecto social da memória

No documento DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 45-48)

1.3 A memória e a experiência de conhecer

1.3.1 Memória no processamento de informações

1.3.1.4 Lembrança como aspecto social da memória

A vitalidade das relações sociais do grupo dá vitalidade às imagens, que ativam a memória, que, por sua vez codifica, armazena e recupera lembranças que são sempre fruto de um processo coletivo e estão sempre inseridos num contexto social preciso. Em outras palavras, a lembrança é fruto de um processo social, na medida em que seus alicerces são forjados no envolvimento interpessoal do indivíduo no grupo de referência. Esse grupo, ou comunidade

afetiva, nas palavras de Halbwachs (2006), é o que permite atualizar a identificação com a mentalidade do grupo, retomando o hábito e a maneira de pensar e lembrar como membro do grupo. Como destacam Middleton e Brown, "a 'memória' [...] é um lócus crucial onde questões de identidade pessoal e de ordem social são negociadas" (MIDDLETON & BROWN, 2006, p. 73).

No que se refere ao aspecto social da memória, podemos dizer ainda com Halbwachs (2006), que as memórias de um indivíduo nunca são só suas. E que, por isso, nenhuma lembrança pode existir apartada da sociedade. Segundo esse autor, as memórias são construções dos grupos sociais, são eles que determinam o que é memorável e os lugares onde essa memória será preservada.

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A lembrança para Halbwachs é reconhecimento e reconstrução. É reconhecimento, na medida em que porta o sentimento do já visto. É reconstrução, principalmente em dois sentidos: por um lado, porque não é uma repetição linear de acontecimentos e vivências do passado, mas sim um resgate destes acontecimentos e vivências no contexto de um quadro de preocupações e interesses atuais; por outro, porque é diferenciada, destacada da massa de acontecimentos e vivências evocáveis e localizada num tempo, num espaço e num conjunto de relações sociais, ou seja, é uma reconstrução do passado vista do ponto de vista da experiência pessoal.

Mas, tanto o reconhecimento quanto a reconstrução dependem da existência de um grupo de referência, tendo em vista que as lembranças retomam relações sociais e não simplesmente ideias ou sentimentos isolados, são elas construídas a partir de um fundamento comum de dados e noções compartilhadas.

Os grupos, no presente e no passado, permitem a localização da lembrança num quadro de referência espaço-temporal que, justamente, possibilita sua constituição como algo distinto do fluxo contínuo e evanescente das vivências. A memória, nesse sentido, é esse trabalho de reconhecimento e reconstrução que atualiza os quadros sociais nos quais as lembranças podem permanecer e então se articular presente e passado. Nas palavras de Halbwachs, “se o que vemos hoje toma lugar no quadro de referências de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente” (HALBWACHS, 2006, p.25).

A lembrança também evoca o testemunho. E o primeiro nível de testemunho ao qual o indivíduo tem acesso se dá na relação consigo mesmo, confrontando uma visão atual com as experiências vividas no passado, mas também com opiniões formadas com o apoio de depoimentos de outros. Um segundo nível abrange a esfera do diálogo entre o indivíduo e outro presente fisicamente ou internalizado, como é o caso da escrita autobiográfica. Estes pontos de vista ajudam a ver, observar e lembrar. Portanto, para relembrar, o indivíduo recorre ao testemunho de sua experiência anterior, mas também ao testemunho10 de outros que indicam ou destacam aspectos a serem observados, bem como universos onde localizar o observado. Em outras palavras, nossas lembranças são fruto não apenas de nossas experiências, elas são também fruto da experiência coletiva. A experiência pessoal é vivida na

10 A noção de testemunho em Halbwachs não é vista no sentido literal do termo, ou seja , indivíduos presentes fisicamente,

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interlocução com o outro, portanto, sua rememoração tenderá a retomar este diálogo, de uma forma mais ampla e atualizada.

Há também lembranças que outros têm sobre nós, que passam a ser nossas, embora não tenhamos consciência de ter vivido os fatos rememorados pelo outro. É o caso, por exemplo, do nosso nascimento. Embora ele faça parte do nosso passado, não temos consciência de como se deram os fatos naquela ocasião. No entanto, os outros que o presenciaram podem nos contar o que aconteceu naquele dia. E, embora essas lembranças possam já estar distorcidas pela experiência pessoal do outro, sobretudo, em razão daquilo que representamos para ele, são lembranças que incorporamos como nossas. Assim, a memória nos engana, no sentido de que algumas lembranças não são verdadeiramente nossas, mas lembranças que outros têm sobre nós. Então, também por isso, cada vez que fizermos uma análise da nossa vida, por mais detalhada que seja, é provável que não seja uma lembrança só nossa. De modo que, dificilmente, faremos um relato exato do que acontece, posto que esse sempre será modificado pela reflexão que fazemos dele e pelas outras percepções que se incorporam às nossas.

A diferenciação das lembranças deriva também das divisões do tempo - que são singulares para cada grupo e para cada homem. A divisão do tempo permite a constituição de uma lembrança enquanto tal, e sua distinção dentre outras lembranças numa cadeia de recordações. E, porque as lembranças não se confundem entre si, podem ser confrontadas, dando corpo ao trabalho da memória.

Em contraposição ao tempo que oferece, continuamente, a imagem da mudança, o espaço oferece a imagem da permanência e da estabilidade, constituindo-se em âncora da memória. Para Halbwachs, “o espaço é uma realidade que dura, [nele] nossas impressões se sucedem uma a outra” (HALBWACHS, 2006, 143). Os lugares recebem a marca de um grupo e a presença de um grupo deixa marcas num lugar. Todas as ações do grupo podem ser traduzidas em termos espaciais e o lugar ocupado pelo grupo é uma reunião de todos os elementos da vida social. Cada detalhe tem um sentido inteligível aos membros do grupo. Ao mesmo tempo em que o espaço faz lembrar uma maneira de ser comum a muitos homens, faz lembrar, também, costumes distintos, de outros tempos. Sobretudo, faz lembrar pessoas e relações sociais ligadas a ele. Nesse sentido é, sempre, fonte de testemunhos.

Halbwachs, ao distinguir e relacionar memória individual e memória social (para ele, coletiva), põe ênfase num dinamismo que Duvignaud traduz nos seguintes termos: “é

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impossível conceber o problema da evocação e da localização das lembranças (formas de conhecimento) se não tomamos para ponto de aplicação os quadros sociais reais que servem de pontos de referência nesta reconstrução que chamamos memória” (DUVIGNAUD, 1990, p.9-10). Um aspecto a acrescentar nesse dinamismo da memória é a importância da lembrança pessoal como testemunho frente e contra as interferências sociais. Na expressão de Cardini (1988), a lembrança não se constrói sem a memória social, mas, ao mesmo tempo, a recordação pessoal é uma forma de testemunho que impõe limites à tirania ou à ditadura das imagens coletivas. Esse limite deve ser entendido no interior mesmo do trabalho da memória, significando que a experiência dos indivíduos é a ancoragem para a construção contínua e comum que chamamos memória social, cujos conteúdos, por essa razão, não são arbitrários. Por outro lado, a recordação pessoal enfrenta a ditadura das imagens coletivas, enquanto torna possível que um elemento de caráter pessoal possa ser ouvido por cima da memória social.

No documento DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 45-48)