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A INTERVENÇÃO DO MÉDICO PSIQUIATRA DOUTOR CAMUSET

4 O CONGRESSO DE BLOIS (1892)

4.1 A INTERVENÇÃO DO MÉDICO PSIQUIATRA DOUTOR CAMUSET

A primeira jornada foi consagrada ao exame e à discussão do delírio das

negações, cujo relator foi o Doutor Camuset, médico psiquiatra e diretor do Asilo dos

Alienados de Bonneval, (Eure e Loire). Sua palestra teve por título: Delírio das

negações – seu valor diagnóstico e prognóstico, importante comunicação sobre o

artigo de Cotard, Delírio das Negações ressaltando o artigo de Jules Séglas (1884),

Notas sobre um caso de melancolia ansiosa, que era uma observação detalhada do

delírio das negações, acompanhado de uma interessante análise psicológica.

Naquele mesmo ano, 1884, Cotard procurava uma explicação fisiológica para essas manifestações, ao levantar a hipótese da perda da visão mental e ao se perguntar se não seria legítimo relacionar a perda progressiva da visão mental na melancolia ansiosa à alteração e prejuízo dos sentimentos afetivos, sintomas que se observam na melancolia e no delírio das negações, mas aí ele esbarraria em uma questão não resolvida, satisfatoriamente, pela anatomia e fisiologia, o que o impeliu ainda mais fortemente a continuar a pesquisa.

Em sua conferência, Camuset fizera um longo inventário dos psiquiatras que se ocuparam da nosografia isolada por Cotard. Citara o Dr. M. Journiac (1888), que, em sua tese Recherche cliniques sur le Delire hypocondriaque (1888) mencionava apenas as idéias de negação de Cotard, na hipocondria.

Em seguida, Camuset lembraria que M. Cullerre, no Tratado prático das

doenças mentais, consagrava algumas linhas ao delírio das negações, muito

resumidamente, sem colocar em discussão (1997, p. 78). Eis o que se encontrou relativamente ao assunto. Em nenhum outro escrito psiquiátrico está descrito de forma mais completa, além de citações, quase pé de página, os elementos constitutivos de estados psicopáticos diversos.

Naquele congresso, Camuset diria que a pesquisa sobre o delírio das

negações estava exatamente no ponto em que Cotard a deixou, havia então doze

anos. Por isso, ele insistia em resgatar o que Cotard entendia como delírio das

negações, e indicava o lugar que lhe era atribuído no quadro nosológico,

reafirmando a dedicação de Cotard quando observava doentes em diferentes estados melancólicos e mostrava sua erudição de clínico hábil e pesquisador incansável.

Para Camuset (1997, p. 114), no que diz respeito às melancolias, a obra de Cotard é impecável, “mas cabe”, diz ele, “uma crítica no sentido de que Cotard é muito generalista, porque ele dá exemplos perfeitos, cuidadosamente analisados, ele expõe, segundo os dados da fisiologia cerebral, a gênese de certos estados mentais mórbidos e insiste sobre os processos psíquicos que os determinam. Tudo o que ele diz é exato e justo, mas para os casos particulares apenas e não para toda uma classe nosológica”, observa rigorosamente.

Camuset se afasta um pouco das idéias de Cotard ao considerar que o delírio de negação se aproxima muito do delírio de perseguição de Lasègue.

Desde sua primeira comunicação, Delírio hipocondríaco em uma forma grave

de melancolia, Cotard (1880) conclui que “A melancolia ansiosa comum é uma forma

sintomática freqüente nas vesânias súbitas ou intermitentes; elas curam-se rapidamente. Não é assim com o delírio hipocondríaco, neste caso, o prognóstico é muito mais grave. Desde os primeiros ‘ataques’, o delírio hipocondríaco passa para um estado crônico”, cujas características podem ser assim reconhecidas:

a) ansiedade melancólica;

b) idéia de danação ou de possessão;

c) propensão ao suicídio e às mutilações voluntárias; d) analgesia;

e) idéias hipocondríacas de não existência ou de destruição de diversos órgãos, do corpo inteiro, da alma, de Deus;

f) idéia de não poder jamais morrer.

No segundo texto de Cotard, O Delírio das Negações (1882), que é um estudo mais completo dessa lipemania, ele reafirma sua legitimidade para poder isolá-la, como uma entidade independente.

Cotard insiste nas diferenças entre a evolução do delírio de perseguição de uma parte e a evolução do delírio das negações (1997, p. 51-53). Os perseguidos não são negadores, enquanto que os melancólicos são sempre acompanhados por idéias de disposições negativas.

Nessa exposição acadêmica, porque ser um congresso sobre o Delírio das Negações, Camuset aponta a importância de ler nos textos notáveis do autor a análise do estado mental dos melancólicos desde os primeiros períodos da sua afecção. Ele segue passo a passo as modificações psíquicas do sujeito: o doente se mostra tímido, sem confiança em si mesmo, mais severo consigo do que com os outros. Mesmo os melancólicos sem delírio apresentam uma forma negativa evidente. Têm vergonha de si mesmos, desesperam-se por não poderem encontrar suas faculdades perdidas, “eles não têm coração, eles não amam seus pais nem a Deus” (CAMUSET, 1997, p. 83).

A partir dessa hipocondria moral, chega-se à idéia de ruína, culpa, danação. Cotard também entende, e Camuset destaca com veemência, que os verdadeiros delirantes têm na sua origem psiquica, seja na melancolia com estupor ou na melancolia ansiosa, apesar de suas diferentes manifestações exteriores, mas que no fundo são análogas, porque ambas são marcadas pelo niilismo e sentimento de negação.

Camuset insiste que o delírio das negações não é uma entidade. Demonstra que há outros quadros clínicos que apresentam idéias de negação ou alguns outros sintomas isolados. Reforça a idéia de que a melancolia não tem características tão específicas sempre, para que seja legítimo reunir em uma espécie de nova nosografia. Nem sempre os casos de melancolia onde se encontram idéias de negação são superpostos como no tipo padrão da nosografia, de modo que se torna pertinente rever suas variações. Por outro lado, e por muitas circunstâncias, o delírio das negações se apresenta também em quadros não-melancólicos, como será visto em outro capítulo, no caso Schreber.

Os exemplos clínicos de Cotard são consistentes. De fato, Cotard não é superficial em seus aportes teóricos, de maneira que os analisa também, mas não exclusivamente, segundo os dados da fisiologia cerebral. As afirmações de Cotard são relativas a casos particulares, o que implica considerar que não faça afirmações por toda uma classe de doentes, por ele designada de melancólicos ansiosos.

Finalmente, em sua exposição, Camuset afirma que o delírio das negações evolui às vezes sobre um fundo de histeria, e pede desculpas por ter cometido algum esquecimento ou erro de interpretação, mas esperava que a discussão posterior pudesse trazer reparações relativas a esses aspectos.

Após a conferência de Camuset, houve treze intervenções importantes, especialmente a de Emmanuel Régis e de Jules Séglas.