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6 A NEGATIVA EM FREUD E EM COTARD – BARTLEBY, KAFKA, PESSOA

6.1 A NEGATIVA EM FREUD

O texto A negação (FREUD, 1925) é a passagem obrigatória para compreender a estrutura das negações melancólicas, e muito especialmente, o

delírio das negações, de Cotard. Trata-se de artigo que segue o Bloco Mágico e

aparece primeiramente na renomada revista Imago.

É considerado muito importante que o artigo de Freud sobre a negação parta de um efeito de linguagem, por sua ligação com o recalque, ou seja, a negação como substituto intelectual do recalque, e que termina pela referência às moções pulsionais sob a forma de engolir e de cuspir; elementos da oralidade considerados como as raízes da afirmação e da negação.

O negativo nos delírios das negações, e Freud também evoca o negativismo na esquizofrenia, é considerado inverso do positivo, mas como direção ao nada.

O complexo mecanismo que Freud desenvolve neste texto, que foi traduzido 17 vezes, define a negação como um fenômeno que ocorre quando a repressão de um conteúdo inconsciente inaceitável é ameaçada, ou seja, uma determinada enunciação da tomada de consciência do recalcamento, sem que o sujeito aceite seu conteúdo. Freud estabelece nesse texto a tese de que um conteúdo de representação ou de pensamento recalcado pode aceder à consciência desde que seja negado, uma vez que o refinamento da clínica freudiana permite esta construção tão revolucionária. Esta maneira de tomar conhecimento do recalcado permite ao sujeito “apresentar seu ser sobre o modo de não ser”, escreve Hyppolite (1954 p.374)

A negação tem para Freud o valor de um índice que assinala o momento em que uma idéia ou desejo inconsciente começa a ressurgir, e isto tanto no tratamento

As observações de Freud sobre a ausência de “não” no inconsciente foram discutidas também em seus trabalhos: Projeto de uma psicologia científica (1895), a

Interpretação dos sonhos (1900), o Caso Dora (1905) e O homem dos ratos (1909).

Algumas idéias sobre a natureza e função de um julgamento negativo aparecem em seu trabalho Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Em todos esses textos/referência, a sua tese principal aparece ipsis litteris: negar algo em um enunciado, em um julgamento é, na realidade, dizer “isto é algo que eu preferia não saber”. Sabemos desde então que um “não”, absolutamente, não anula o recalque. A função do “não” é permitir a emergência de algo “escondido”, que se torna então disponível via interpretação do analista, para a elaboração de um processo secundário; logo a negação, como Freud mostrou, é um precursor da afirmação.

Ilustram esta idéia os vários exemplos recolhidos da clínica, tais como: “Não pensei nisto”, “Não tinha esta intenção” e “Não é minha mãe”.

Weinshel (1977) (apud CARONS, 1963, p. 182-187), entende que a negação “não pode ser vista como um simples processo psicológico, que pode ser engavetado como uma recusa, um isolamento, ou até mesmo um mecanismo de defesa”. Weinshel considera que um julgamento negativo representa uma atividade complexa e intrincada do ego.

Anna Freud (1951), em um trabalho não publicado, mas nem por isso menos conhecido, Negativism and emotional surrender (Negativismo e rendição emocional), descreve um estágio negativista em desenvolvimento inicial, caracterizado pela criança que se opõe a pedidos e recusa assistência do outro, baseada no desejo de independência. Anna Freud indicou que este comportamento negativista ocorre durante a pré-adolescência. Quando se apresenta mais tarde, pode-se pensar em uma psicose ou em uma esquizofrenia. Neste interessante artigo, Anna Freud argumenta que todas as explicações habituais sobre o comportamento negativista são insuficientes, não chegam ao âmago da questão, e postulou que o sujeito negador ressente a aproximação de outra pessoa como uma exigência ou um ataque hostil.

Sterba (1957) apud Carons discutiu as idéias de Anna Freud sobre o negativismo de forma detalhada e, mais tarde, desenvolveu o tema da passividade e

oralidade. Argumenta que os traços de caráter negativista servem “como uma defesa contra a rendição masoquista ou um nível passivo oral com um perigo consecutivo de invasão e perda do eu” (STERBA, 1957, p ).

Para este fenômeno, Freud apresentou uma explicação metapsicológica, que desenvolve em três afirmações estreitamente próximas:

a) a negação é um meio de tomar consciência do recalcado;

b) o que é suprimido é apenas uma das conseqüências do processo de recalcamento, isto é, o fato de o conteúdo representativo não atingir a consciência. Resulta daí uma espécie de admissão intelectual do recalcado, enquanto persiste o essencial do recalcamento;

c) por meio do símbolo da negação, o pensamento se liberta das limitações do recalcamento e é possível elaborar um discurso.

A negação melancólica não faz parte do par de opostos simbólicos (Bejahung/Verneinung) e se enuncia fora da lógica da dialética. Na psicose, qualquer coisa de primordial quanto ao ser do sujeito não entra na simbolização. No trabalho De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (LACAN, 1958), a foraclusão do Nome do Pai, que falta a ser, jamais vindo no lugar do Outro, é para Lacan um acidente do registro da Bejahung.

Assim, foracluído é algo de excluído da realidade; tudo se declina em termos de existência ou de não-existência e reenvia invariavelmente à constituição da realidade subjetiva. A negação de Cotard mostra uma evolução formal desde a negação da atribuição, negação de ter, até a negação da existência, negação de

ser. Pode-se afirmar que se trata do ponto da negação da realidade que ele

desnuda. Com efeito, a Verneinung tem assim eliminado toda manifestação da ordem simbólica.

No texto Resposta ao comentário de Jean Hypollite sobre a Verneinung, está posto que

a Bejahung que Freud anuncia como o processo primário em que o juízo atributivo se enraíza, e que não é outra coisa senão a condição primordial

para empregar a linguagem de Heidegger, seja deixado-ser (LACAN, 1953, p. 388).

A negação da realidade do órgão, do mundo exterior, do universo ou das abstrações ensina como a percepção deve seu caráter de realidade às articulações simbólicas

que o ligam a todo um mundo. Não há, então, realidade psíquica, de onde esta diluição do universo simbólico no desenvolvimento os mais acabados do

delírio das negações. Acreditar na existência do objeto que se fala e ignorar

que se fala do que não existe, é precisamente esta ficção significante que o negador rejeita. Desde então, nenhum semblante, nenhum substituto da realidade vem significar o real, concebido por Lacan como heterogêneo à realidade – e barrar sua irrupção .

No texto Die verneinung, Freud analisa o prazer generalizado da negação, o negativismo dos psicóticos como indicativo da separação das pulsões por contração dos componentes libidinais. A negação melancólica é a conseqüência de uma desintricação das pulsões de unificação, a afirmação como o substituto; e de destruição, cuja denegação constitui o sucessor.