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BARTLEBY – “I WOULD PREFER NOT TO”

6 A NEGATIVA EM FREUD E EM COTARD – BARTLEBY, KAFKA, PESSOA

6.3 BARTLEBY – “I WOULD PREFER NOT TO”

A novela Bartleby the Scrivener: A Story of Wall Street11, escrita em 1853 por Herman Melville, é um relato sobre um advogado que emprega no seu escritório um insólito copista, Bartleby, que constrói uma situação inextricável: ele não cumpre e não completa mais as tarefas que lhe são confiadas. Cada vez que seu patrão lhe pede alguma coisa, ele não diz não, mas usa sua célebre frase ou fórmula: “I would prefer not to” – “eu preferiria não”. Esta inexplicável resistência passiva trava a máquina/escritório, até então bem-azeitada, de um advogado zeloso do seu trabalho.

O filósofo italiano George Agamben escreveu “Bartleby ou a criação” (1995), em que sugere que o enigma que ele suscita tem por fim os mesmos pontos da questão constituinte que Aristóteles preconiza na filosofia, ao fazer a distinção constituinte da potência e do ato.

O espírito não é uma coisa, mas um ser de pura potência e a imagem sobre a tábua branca a ser escrita sobre a qual nada está ainda precisamente representado. Toda potência de ser ou de fazer alguma coisa é, para Aristóteles, sempre também potência de não ser ou de não fazer [...] sem o que a potência passaria sempre para o ato e se confundiria com ele [...] Esta “potência de não ser” é o segredo principal da doutrina aristotélica sobre a potência (AGAMBEM, 1995, p. 15-16).

Péllion (2000, p. 257) entende que a perturbação melancólica da relação da linguagem não pode passar dessa velha distinção da potência e do ato: está patente que a melancólico se cala mesmo tendo potência para falar.

Séglas, em 1891, dedica uma sessão na Société médico-psychologique sobre o mutismo melancólico. Como contribuição pessoal, uma vez mais importante, admite que a origem do mutismo melancólico é em conseqüência um pouco contraditória; por uma parte a noção de enfraquecimento do poder de síntese descreve uma falha geral da função de significação, podendo ir até a perda da significação das palavras; por outro lado, o acento colocado “sobre a presença de alucinação verbal psicomotora, privilégio de impedimento ao diálogo causado pela superabundância de speech-acts incontroláveis” (PÉLLION,2000 p 264). De um lado, está uma doença da potência; do outro, uma patologia do ato.

Peter Pal Perlbart (2000, p. 83), em seu artigo Solidão de Bartleby, considera importante manter a estranheza da fórmula de Bartleby, “Eu preferiria não”, do que adotar uma das traduções disponíveis em português: “Prefiro não fazer” ou apenas, “Preferiria não”.

Pelbart (2000, p. 83) comenta que “o advogado é tomado de perplexidade; chega a dizer que nada irrita mais alguém do que a resistência passiva. Mas também pondera que quando se está diante de algo inusitado e extremamente irracional, parece que tudo se inverte, e começa-se a duvidar da própria razão”.

Esta indiferença cadavérica que Melville descreve à perfeição, mas que está acoplada a uma suavidade, a uma polidez e um desleixo próprio do desespero é o que encontramos no doente, no sujeito afetado pela Síndrome de Cotard.

A fórmula que ficou a marca indelével de Bartleby – “I would prefer not to” –, e não por acaso se reproduz no original, porque soa mais estridentemente, não permite recalcar o niilismo que o paciente transmite de maneira inexorável e impiedosa. A expressão no original tem esta força que se destaca justamente por não ser negativa nem afirmativa. O advogado da novela ficaria aliviado se Bartleby não quisesse, mas ele não recusa nem aceita, nem afirma que ele preferiria fazer em vez de cumprir a ordem de seu patrão.

Pelbart (2000, p. 86) cita Deleuze:

a fórmula é arrasadora porque elimina de forma igualmente impiedosa o que se prefere e o que se prefere não. Ela torna indistintas as alternativas binárias entre o preferível e o não-preferido, ela cava uma zona de indiscernibilidade, uma faixa de indeterminação, que não cessa de crescer. É como se Bartleby dissesse: “Eu preferiria nada a algo; não a vontade de nada, mas o crescimento de um nada de vontade”.

É este tipo esquisito de passividade que se encontra nos pacientes, é a posição de suspense, nessa passividade neutra, nesse entre-morte. Pelbart (2000, p. 84) ainda comenta:

Nessa recusa de toda formulação, em que se abandona a firmeza de um dizer porque se abandona a autoridade de um eu, de uma identificação, há uma recusa de si que justamente não se crispa na recusa, mas abre para um desfalecimento, uma espécie de perda do eu... O nem/nem, nem isto nem aquilo, esvazia a mola do sentido, é produzir sentido. O neutro é exatamente uma estratégia para escapar ao jogo do sentido, às suas oposições dadas, às suas capturas, às suas combinatórias prefiguradas.

O Cotard é um “neutro” que, como o herói de Melville, não tem nada de neutro. Ambos, Bartleby e o doente de Cotard têm uma característica instigante: são pessoas cinzentas, imóveis, petrificadas, caladas, repetitivas, litânicas, sem preferências, arrastam todos a um beco sem saída. Porque é este desconforto que o discurso destes pacientes coloca: tal como Bartleby que recusa o pai que o advogado quis ser, o analista também é colocado em posição constante de

destituição, uma situação que se estabelece quase de tédio, pela impermeabilidade, como se fossem de concreto, no sentido da falta da permeabilidade neurótica, por exemplo, em que os pacientes parecem ter a textura de um tecido. Como a água atravessa o tecido, mas não o concreto, as palavras passam, às vezes a duras penas, mas atravessam o sujeito. O melancólico de Cotard resiste, como Bartleby.

Trata-se de resistência feroz, muito mais do que desobediência ou teimosia do funcionário e patrão, ou do filho e pai, ou ainda caso se queira ir mais longe, do analisante e o analista. Já não há cópia em Bartleby; nem cópia para o advogado nem copia o advogado, mas algo da própria operação de cópia se corrompeu na relação em ter o patrão e o empregado. Diz Pelbart (2000, p. 86) em uma observação arguta: “A fórmula destitui o pai de qualquer palavra exemplar, e o filho de qualquer possibilidade de copiar”.

Está aí a forma de negativismo muito próxima da psicose.

A propósito, Jacques Hassoun (1995, p. 102) comenta que o refrão “I would

prefer not do”, presente antes mesmo da ocorrência do encontro, não decorre de

uma recusa da ação, mas de um ato que precede a conclusão e põe o sujeito fora do alcance da agressividade ou da violência do outro. Tudo já está consumado, antes mesmo que a intrincação das pulsões de vida e das pulsões de morte venham inscrever o que faz do vivente um ser desejante, ou seja: prefere alguma coisa, qualquer coisa.

Melville, o inventor de Bartleby, que em Moby Dick (1851) considera desprezíveis os portos por serem seguros, porque para ele a verdade é encontrada quando não há nem terra nem rios, em um estado de indefinição como a baleia branca chamada Moby Dick. Melville, como Bartleby, é um homem do não aos raciocínios fáceis, construídos pelos homens que vivem em segurança, nos portos, porque ele se interessa pelos homens que são levados como uma folha ao léu, pelo vento. “O negativismo na sua vida privada era muito presente”, diz seu amigo Nataniel Hawthorne, “ele faz o elogio do não como um centro vazio, mas sempre potente, autônomo e útil”, conforme publica a Revista Magazine Litteraire, n. 456 (2006, p. 45).

Bartleby morreu na prisão, solitário, exilado, marginal, fadado ao fracasso contra uma sociedade cujas regras ele recusa e coloca em risco a ideologia.