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UMA INTERVENÇÃO DE EMMANUEL RÉGIS

4 O CONGRESSO DE BLOIS (1892)

4.2 UMA INTERVENÇÃO DE EMMANUEL RÉGIS

Emmanuel Régis, médico psiquiatra francês e contemporâneo de Jules Cotard, destaca especialmente a condenação dos doentes melancólicos afetados pelo delírio das negações, a uma sorte de agonia permanente. Por isso, Jules Cotard sustenta que a noção de imortalidade nestes doentes é uma idéia hipocondríaca, um delírio triste relativo ao organismo, uma interpretação delirante das sensações desagradáveis. Régis entende que “Pela sua extrema angústia, as queixas destes doentes se aproximam muito dos melancólicos e se diferenciam dos perseguidos, onde a idéia de imortalidade faz parte do seu delírio de grandeza” (CACHO, 1993, p. 165).

Ao finalizar sua exposição, Régis afirma o seguinte:

Este estado psicopatológico chamado por Cotard “delírio das negações” e que foi considerado pelo seu autor como um estado psíquico complexo e próprio aos ansiosos crônicos, quer dizer, como uma síndrome. Poderíamos talvez, para evitar qualquer confusão, designar o conjunto, sob o nome de Síndrome de Cotard (CACHO, 1993, p. 169).

O manifesto de Régis foi plenamente aceito pela comunidade científica, que passou denominar o delírio das negações como Síndrome de Cotard.

A segunda intervenção considerada importante foi feita por Jules Séglas, ao tentar responder à objeção mais séria que o relator do Congresso havia feito, ou seja, a observação da ausência, na quase totalidade das observações examinadas, dos temas delirantes que Cotard considerava essenciais à constituição do delírio, precisamente a danação, a possessão e a imortalidade. Séglas considera secundário o problema da ausência de determinados temas delirantes e afirma que para o diagnóstico do delírio das negações não seria indispensável que se estabelecesse a existência de perturbações psíquicas da mesma ordem, porém menos acentuadas.

Transformada em síndrome por Régis, como já visto, alargando-se ao quadro melancólico que o afeta, o delírio das negações quase desapareceu da clínica patológica, mas Régis ainda faz as seguintes reflexões: a) o delírio das negações aparece muito tempo depois do início da doença e quando passa para o estado crônico, b) não se encontra nem a idéia de danação ou de possessão, nem sobretudo a idéia de imortalidade. Enfim, a doença não se apresenta sob a forma de acesso intermitente.

Camuset entende, por sua vez, que as idéias de negação podem se estender pelo organismo inteiro. Os sujeitos não têm corpo, eles não existem mais, ou, ainda, seu corpo é de pedra, então são inquebrantáveis. Ou, ao contrário, em outro extremo, são de vidro, então de uma fragilidade extrema. O corpo não é de carne e osso, resilente e pulsional, soa de pedra e vidro materiais “resistentes” às pulsões. Concorrentemente, existem idéias de negação de ordem psíquica, pois esses mesmos pacientes não têm mais espírito nem pensamento, porque seu cérebro está comprimido ou porque está inerte. Há uma diferença entre estas idéias de negação de ordem psíquica e as idéias de negação que se estendem à esfera dos

sentimentos, e que se destacam na melancolia, então os doentes não têm mais coração, afetos, sentimentos; não podem mais amar quem sempre amaram, por exemplo.

Há ainda as idéias de negação exteriorizadas: os doentes negam a realidade em sua volta. Isto que está sobre seus olhos não é o objeto real que se faz ver; é a aparência desse objeto. Mostra-se uma rosa e não é a rosa da Gertrude Stein, uma rosa não é uma rosa, é apenas a aparência de uma rosa. Esses delírios também se voltam para pessoas que estão a sua volta, por exemplo, o médico e os familiares. O paciente afirma: “vocês não são médicos, não são meus parentes”, e assim vai, em um mutatis mutandis, estendendo a negação para todos os objetos e pessoas que, em definitivo, são estranhos e familiares simultânea e confusamente. O discurso desses pacientes frente a esses momentos de estranheza tem um tom onírico forte, e traz muito sofrimento, porque não há um despertar em que a fugacidade do sonho costuma trazer alívio ao sofrimento.

Há também as idéias de negação de ordem psíquica e metafísica, em que os pacientes negam suas características físicas e psíquicas. Afirmam não mais existir, e costumeiramente falam na terceira pessoa. A alma, deus e diabo são elementos que, mesmo presentes na vida do paciente por razões do sincretismo religioso, ou que façam parte do seu inventário fantasístico imaginário, no momento delirante são negados e se apresentam também como estranhos.

Na combinatória de idéias hipocondríacas, de negação e de imortalidade; as idéias de danação, descobertas por Cotard, foram o ponto de partida das pesquisas que se organizam em um sistema que será chamado desde o Congresso de Blois (1892) de Síndrome de Cotard.

Mas não foi somente no delírio das negações que Cotard encontrou as negações; ele demonstrou que o melancólico é negador desde o início de sua doença, e que continua ao longo da doença. Na melancolia há, em essência, a negação. O paciente não tem mais inteligência nem sua energia de outrora, ele não é capaz de erotizar e libidinizar os objetos e pessoas. A negação sempre se manifesta nos quadros melancólicos; é uma das características da melancolia severa ou não e, à medida que a afecção progride e se acentua, na mesma proporção se instala e cronifica o estado de negação. Camuset comenta, na

conferência do Congresso mencionado, que Cotard não se inibe em dizer que todos os sintomas da melancolia são de natureza negativa.

Essas idéias de negação indicam uma perturbação ainda mais profunda que aquelas acusadas pelas idéias de ruína, de impotência e culpabilidade ordinária. Deve-se dizer, aliás, que nada na melancolia é de natureza ordinária, sobretudo quando vem acoplada com a complexidade dos outros elementos da síndrome.

Os relatos clínicos de Cotard citados no Congresso mostram uma impressionante maioria de mulheres afetadas pela síndrome e, não bastassem os termos estatísticos, os sintomas são ainda mais clássicos e gritantes conforme Cotard os inventariou.

Por sua vez, Falret afirma – ainda no Congresso de Blois – que Cotard fez grande progresso nos estudos da melancolia, como já tinha feito Charles Lasègue (1816-1883) descrevendo o delírio de perseguição. A “imortalidade” de Cotard não se deve apenas porque Régis denominou a síndrome pelo seu patronímico, senão também porque Marcel Proust (1871-1922) criou uma personagem que, com uma letra a mais – Cottard – garantiu também sua imortalidade literária. Por suposto, o “Cottard” de Proust é fruto de uma condensação de muitos Cotard e muitos modelos serviram a sua elaboração, como observa o seu biógrafo.

Muitos amigos de Adrien Proust, pai de Marcel, freqüentavam as soirées que aconteciam na sua casa. A referência de uma passagem em um dos volumes de A

procura do tempo perdido mostra como a descrição está longe de refletir o homem

Cotard, mesmo que alguns traços lhe tenham sido emprestados.

O memorável Congresso de Blois termina com a observação da evidência que separa o delírio de perseguição dos outros delírios melancólicos e justifica por isso mesmo a obra de Lasègue. Mesmo que o delírio de perseguição e o de negação tenham nascido na mesma fonte, as idéias de perseguição não tardam a se diferenciar claramente daqueles da negação, e isto Cotard explicita muito bem.

Mesmo assim, há uma intervenção de Charpentier, médico psiquiatra que diz jamais ter encontrado, em dez anos de trabalho, um só negador que respondesse ao tipo criado por Cotard. “Não encontramos em Cotard uma doença nova, mas apenas uma palavra nova” (CACHO, 1993, p. 187). Entretanto, esta observação não terá a menor ressonância entre os participantes do Congresso.

Da mesma maneira, ao homenagear sua memória, seus colegas não deixaram de lembrar que o delírio das negações, depois do Congresso intitulado Síndrome de Cotard, constitui um grupo à parte daquilo que os manuais de psiquiatria tinham por pronto e terminado.