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A intervenção estatal no crime de maus-tratos

2. Legislação brasileira e a proteção dos animais não humanos contra o

3.3 A intervenção estatal no crime de maus-tratos

“Há uma linha tênue entre o dever de intervenção estatal e o momento para regular os processos de educação”. Mas apesar de tudo, desde que norteada por uma “correção moral, ética e pragmática”, a intervenção estatal é necessária. E que seja realizada com foco em qualidade, não quantidade (SILVA, 2018, p. 210).

Por ora, em vista de todos os problemas que norteiam o sistema carcerário brasileiro, que envolvem diversos tipos de violação aos Direitos Humanos, a superlotação, a falta de estrutura que propicie qualidade de vida e falha na proposta ressocializadora, provada pelas altas taxas de reincidência, concretizando-se no geral em simplesmente retribuição à conduta criminosa, entende-se que, por ora, a pena privativa de liberdade se mostra como caminho a ser seguido na busca da justiça que se pretende aqui efetivar.

Sendo assim, a comparação que se fez no segundo capítulo (item 2.3.1), acerca da valoração de bens jurídicos tutelados envolvendo suas respectivas sanções penais, entre o bem da vida animal e objetos de patrimônio, somente serve para reflexão de valores morais que se refletem em valores jurídicos. Não se propõe, neste momento, um maior endurecimento da sanção penal em relação à pena privativa de liberdade. Mas, assim como fez Zaffaroni, propõe-se considerar como bem jurídico tutelado no crime de maus-tratos animais o direito subjetivo do próprio animal, de não ser objeto da crueldade humana, para tanto, reconhecer-lhe o caráter de sujeito de direitos (ZAFFARONI, 2017, p. 46).

Por outro lado, acredita-se que a justiça pela intervenção estatal penal se daria de forma mais adequada com a majoração da pena de multa. Partindo do pressuposto que a conduta de maus-tratos a um animal senciente é devido à uma postura moral e cultural, talvez o estabelecimento de multas com valor superior ao atual cause uma inibição maior da referida conduta. Nesse viés:

A lei pode ter sua função resumida diante da moral basicamente em dois papéis: a) positivar os bens que a sociedade julga demasiadamente importantes a ponto de criar mecanismos de tutela e b) implementar/vedar comportamentos numa espécie de tentativa de corrigir a moral. Isto é, quando se percebe que a moral de um local não está proporcionando o desenvolvimento social esperado para uma determinada sociedade, a lei se

impõe como uma correção a ser implementada rumo aos objetivos éticos (PERTILLE; PERTILLE, 2017).

Atualmente, conforme consta na página virtual do Ministério Público de Santa Catarina, o dinheiro “proveniente de condenações, multas e acordos judiciais e extrajudiciais em face de danos causados à coletividade em áreas como meio ambiente, consumidor e patrimônio histórico”, são destinados ao Fundo para Reconstituição de Bens Lesados (FRBL), para financiar projetos que atendam interesses da sociedade. Os projetos beneficiados têm que estar dentro das normas das leis específicas (Lei 15.694 de 2011 e Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014), e devem ser visar entre os seguintes objetivos: “a recuperação do meio ambiente, prevenção, principalmente pela educação ambiental, defesa do consumidor, cidadania, proteção e a valorização do patrimônio público.” Dessa forma, organizações não governamentais que promovam proteção e bem-estar de animais podem ser beneficiadas (SANTA CATARINA, 2019).

Contudo, a questão que merece atenção é que o animal maltratado pode precisar de assistência veterinária ou tratamento com medicações. No plano da efetiva justiça, enquanto sujeito de direito considerado em sua individualidade, deveria receber todos os cuidados necessários para a recuperação de sua integridade física e qualidade de vida digna. Sendo assim, entende-se que todos essas eventuais despesas geradas por conta do ato ilícito deveriam ser suportadas pelo infrator. O que também necessitaria de formulação legislativa.

Tendo em vista que a sanção de multa, por si só, não enseja a intervenção adequada para quebrar o ciclo da violência doméstica entre pessoas envolvendo maus-tratos animais, Nassaro propõe alternativas que visam de alguma forma uma ressocialização ao agressor e sua não reincidência, destacando a participação do Ministério Público:

[...] o Ministério Público pode exercer um papel fundamental para quebrar o ciclo da violência, propondo composição com o infrator não apenas voltada para uma solução imediata do crime de maus-tratos, no que diz respeito à respectiva sanção penal, mas especialmente indicada a impedir que o infrator se envolva em novas ocorrências de violência, especialmente em sua própria família. Algo como compor com o infrator que seja avaliado seu perfil psicológico e o respectivo tratamento, realização de entrevistas envolvendo toda a família com assistentes sociais para apurar a eventual existência de violência doméstica, além de horas de serviço em atividades comunitárias, que ensejem relacionamento supervisionado com outras pessoas, inclusive animais, dentre outras, são propostas factíveis de composição penal que suplantam as tradicionais

cestas básicas e tendem a efetivamente reduzir as possibilidades de crimes violentos no futuro” (NASSARO, 2016, p. 47-48, grifou-se).

Além disso, muitos operadores do ordenamento jurídico nacional fazem interpretações de leis de forma conservadora e ultrapassada, influenciados pela ideia da “coisificação” animal, acarretando em decisões legalistas, não levando em conta a Lei Maior e as mudanças sociais necessárias, as quais o Direito precisa acompanhar e atender. Embora a Constituição Federal de 1988 seja clara ao dizer que é vedado o tratamento cruel aos animais, surgiram leis absurdas como a lei da vaquejada e dos rodeios, que desrespeitam a vida, a integridade física e a liberdade dos animais.

Entende-se pela necessidade da tutela penal para fins de valorização do bem jurídico. Portanto e, visando evitar “más interpretações”, também seria relevante que crimes contra animais sencientes tivessem uma lei própria, geral, e não abarcados somente como crime ambiental. Dentro do delito em questão, seria adequado tipificá-lo, mais precisamente, maus-tratos como conduta gênero e assim, definir-se um conceito de maus-tratos e incluir um rol taxativo, como fez o já citado Decreto-Lei nº 24.645/34.

Por fim, são necessárias políticas públicas para se dispor de profissionais capacitados e habilitados para lidar com o atendimento às ocorrências desse tipo crime, para que se preste o devido socorro ou tratamento veterinário adequados. Nesse sentido:

Por certo, a preocupação do agente público deve ser, em primeiro lugar, a de salvar o animal maltratado. A eventual responsabilização do sujeito ativo do crime é ato que exigirá o processamento constitucionalmente previsto, com as garantias da Carta Magna e por isso deve iniciar-se imediatamente após os primeiros socorros prestados ao animal maltratado [...] Em várias situações é exatamente a providência emergencial, retirar o animal ferido ou mutilado, que o salva, pois são muitos os casos em que após impingir os ferimentos e mutilações, o criminoso deixa o animal agonizando. É, portanto, o agente público ou qualquer um do povo que em muitas situações salva o animal maltratado (NASSARO, 2016, p 44).

Mudar a cultura de um povo é um trabalho árduo, então, é essencial reconhecer e exaltar a importância do trabalho das organizações não governamentais (ONG’s), organizações da sociedade de interesse público (OSCIP’s), e dos protetores voluntários que conseguem estabelecer um diálogo muito significativo com a sociedade e o Estado, e que vêm mudando a realidade e o destino de muitos animais em situação de vulnerabilidade. Essas três esferas do

ativismo animal prestam resgate, atendimento e acolhimento às vítimas de atropelamento, abandono, mutilação, envenenamento, aos presos em correntes ou em locais insalubres. Promovem as mais diversas atividades como prestação gratuita de atendimento veterinário, feiras de adoção e castração, distribuição de material educativo (sobre adoção responsável e cuidados básicos com animais de companhia), realizam palestras e todo tipo de conscientização, contra práticas como a farra do boi e rinha de galo. Ainda, promovem denúncias e ações judiciais, pressionam lideranças políticas e auxiliam na implementação de políticas públicas de proteção aos animais (MOREIRA, 2018, p. 289-323).

O diálogo necessário para a efetivação de direitos e justiça aos animais exige muita persistência. A mudança cultural que se procura certamente não ocorrerá de uma hora para outra, mas vislumbram-se mecanismos de concretização. São necessárias modificações legislativas principalmente para dar independência ao Direito Animal, para positivar direitos realmente voltados a interesses próprios dos animais e que reflitam o diagnóstico das necessidades atuais.

Vislumbra-se a educação como verdadeiro impulso de mudança cultural, porque oferece mecanismos de construção da personalidade do indivíduo e, dependendo do conjunto de influências que utilizar, pode mudar a maneira como o ser humano interage com a natureza e com os outros, qualquer que seja a espécie. Por meio de políticas públicas e novos olhares éticos e filosóficos voltados para as questões animal e ambiental, pode-se modificar a maneira como o indivíduo humano se enxerga inserido no mundo e aí, tais questões vão receber a merecida importância e renascer dentro de todas as instituições de ensino.