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Outras formas de se pensar o planeta com ética

2. Legislação brasileira e a proteção dos animais não humanos contra o

3.2 Outras formas de se pensar o planeta com ética

Gleiser (2015, p. 25) afirma que o conhecimento científico, uma das áreas do conhecimento humano, possui limitações intrínsecas, que vão além dos métodos e do alcance do ser humano. Dado esse motivo, há muitas coisas e segredos da natureza que vão permanecer “inacessíveis - incognoscíveis” e, pensar o contrário seria prepotente:

Nem todas as perguntas têm respostas. Imaginar que a ciência tenha todas as respostas é diminuir o espírito humano, amarrar suas asas, roubando-lhe de sua existência multifacetada. [...] Seria muita arrogância de nossa parte imaginar que podemos decifrar todos os mistérios do mundo natural, como se fossem bonecas russas, uma dentro da outra até chegarmos à última (GLEISER, 2015, p. 327).

Nesse sentido, tendo em mente que o ser humano “tem um infinito” ainda para descobrir e aprender sobre o mundo, inicia-se uma reflexão sobre algumas formas de se pensar a relações com o planeta e as relações interespécie.

A “Hipótese de Gaia”, proposta por James Lovelock e, bem abordada por Zaffaroni em A Pachamama e o ser humano, publicada em 2011, é uma teoria que afirma que a Terra “é um ser vivo, não no sentido de um organismo ou de um animal, mas de um sistema que se autorregula”, de forma que “não se trata de uma regulação física ou química à qual a vida é alheia, mas esta faz parte da própria regulação do planeta”. Segundo essa teoria, o ser humano não é hóspede de Gaia, mas faz parte dela (ZAFFARONI, p. 63-66).

Nesse sentido, Zaffaroni colaciona sobre a “ética de Gaia”:

O reconhecimento da simbiose como força evolutiva importante tem implicações filosóficas profundas. Todos os organismos macroscópicos, incluídos nós mesmos, são prova viva de que as práticas destrutivas acabam falhando. Ao final, os agressores se destroem a si mesmos, deixando seu lugar para outros indivíduos que sabem como cooperar e progredir. Por conseguinte, a vida não é somente uma luta competitiva, mas também uma vitória da cooperação e da criatividade. De fato, desde a criação das primeiras células nucleadas, a evolução procedeu mediante acordos de cooperação e de coevolução cada vez mais intrincados” (CAPRA apud ZAFFARONI, 2017, p. 65, grifou-se).

O jurista afirma que a degradação do planeta só pode ser combatida mediante uma “forte reformulação civilizatória que vá além do capitalismo, pois inclusive o marxismo tradicional não trouxe soluções”. Para ele, esses dois modelos

econômicos foram igualmente irresponsáveis no quesito respeito à natureza. “A necessidade – eterna Celestina de todas as carnificinas e guerras – deverá ser avaliada conforme condições humanas de sobrevivência digna e a utilização não abusiva de todos os entes naturais, e não de acordo com o interesse da pura obtenção de maiores lucros” (ZAFFARONI, 2017, p. 107 e 111).

Nessa perspectiva, leciona Zaffaroni que pensar a forma como o ser humano trata o meio ambiente, os animais, a Pachamama, não se deve tratar simplesmente de ambientalismo ou piedade, mas do reconhecimento de obrigações éticas a todos os seres:

Não se trata de um ambientalismo voltado à proteção de áreas de caça ou de recursos alimentares escassos para o ser humano, nem se trata de proteger espécies pelo simples sentimento de piedade para com seres menos desenvolvidos, mas trata-se do reconhecimento de obrigações éticas para com eles, que derivam do fato de participarmos conjuntamente num

todo vivo, de cuja saúde dependemos todos, humanos e não humanos.

Também não se trata de limitar esses direitos aos animais, mas de reconhecê-los às plantas e aos seres microscópicos enquanto fazemos parte de um contínuo de vida, inclusive à matéria aparentemente inerte, que não é tão inerte quanto parece (ZAFFARONI, 2017, p. 67-68).

Assim como a ética de gaia, entre outros tantos caminhos para se pensar sobre o planeta e as relações com todas as suas formas de vida, relevante estudar o ecofeminismo. O ecofeminismo é uma vertente do feminismo que, de igual modo, possui suas várias correntes. Constata-se que a filósofa Nussbaum, tão tratada no primeiro capítulo, foi bastante influenciada pelo feminismo e pela ética do cuidado na elaboração da sua ideia de justiça social.

Diferente de outros autores abordados, o ecofeminismo não trabalha com o conceito de imparcialidade, pelo contrário, utiliza a interpessoalidade, que envolve as necessidades de cada indivíduo em particular. Mas, também utiliza o conceito de igualdade, porquanto a ética não pode pensar as relações - entre humanos e destes com animais e meio ambiente - de forma arbitrária e sem justificação. Dentro dessa corrente, as ecofeministas têm visões bastante diversificadas de ecofeminismo, assim, serão abordadas as ideias mais pertinentes de algumas escritoras (SILVA, 2018, p. 138-139). De forma geral:

[...] mostram que a linha de argumentação tradicional da ética baseada em princípios, não é suficiente para o fim da exploração, justamente porque diferentes sistemas de exploração estão imbricados e somente a partir do

reconhecimento dessa relação é possível combatê-los. Por isso, a filosofia ecofeminista visa desconstruir os dualismos de valor, de origem cartesiana, que promovem as divisões que perpetuam a desvalorização das mulheres e da natureza (ROSENDO; KUHNEN apud, SILVA, 2018, p. 140, grifou-se).

Segundo Alicia Puleo, as antigas relações são pautadas pela dominação do patriarcado, que afeta a todos e ao meio ambiente, causando problemas ecológicos. Enquanto que o ecofeminismo imagina um mundo sem explorações e opressões. Ela defende que quando ocorra dominação na natureza, necessária para que algum recurso (material) seja usado para funções sociais, tal relação seja pautada por respeito e pela utilização consciente dos recursos, não de forma abusiva. Ela prega que as relações abandonem a lógica do domínio, e passem a ser pautadas pelo equilíbrio entre razão e emoção, fundadas em interpessoalidade e igualdade (SILVA, 2018, p. 138-139).

Importante ressaltar que o ecofeminismo não visa especificamente a defesa da ética animal, mas defende a liberdade de todos os animais, sejam humanos ou não humanos. Ao se preocupar com todas as formas de exploração, expande a comunidade moral indo contra o especismo. Discorda da ética tradicional, pois faz a desconstrução de dualismos: entre razão e emoção, humanos e natureza. Silva explica porque o objetivo principal é romper com a lógica do domínio humano, que é marcadamente masculino sobre a natureza:

Há muita comparação com o patriarcal, pois a caça e a atividade de matar grandes animais é, historicamente, uma tarefa masculina e que representa e reforça a masculinidade. Todavia, a igualdade entre os gêneros reivindicada não está em dar oportunidade para as mulheres participarem dessa relação de poder entre humanos ao explorar e matar os não humanos, mas em reconhecer a igualdade entre as espécies (SILVA, p. 2018, 144).

As ecofeministas também discorrem sobre a relação apontada no segundo capítulo (item 2.4), de crueldade de crianças com animais e a tirania doméstica, dos homens sobre esposas, filhos e empregados. Nesse viés, explica-se que a luta pela igualdade não é para mulheres se tornem tão dominadoras e opressoras quanto os homens. A ideia é que o oprimido se liberte do opressor e que, através dessa conquista de liberdade, seja voz para outros oprimidos, também em situação de vulnerabilidade (SILVA, 2018, p. 145).

Puleo também defende que a igualdade e a não dominância envolve espaços relacionados às atividades sustentáveis, que propiciem a agricultura ecológica

familiar e novas tecnologias que não degradem o meio ambiente. Ela associa isso aos movimentos de mulheres indígenas latino americanas, que possuem uma relação harmoniosa e de preservação com a natureza, com “sensibilidade ecológica”. Por fim, a filósofa afirma que é necessário defender o valor do indivíduo, não só o ecossistema como um todo (SILVA, 2018, p. 145-146).

Por vezes, o ecofeminismo se relaciona com outra teoria feminista, a “ética do cuidado”. Essa também adota a interpessoalidade e preconiza uma relação ética entre cuidador e cuidado. Kuhnen (2015) aponta que o cuidado está ligado ao bem- estar do outro, e o cuidado de afeição exige que todos humanos e não humanos disponham de espaço público para cultivar relações pessoais e afetivas.

“Cuidar” é uma das faces de expressar a justiça e, “a justiça reflete preocupações de cuidar”. Assim, na visão ecofeminista e animalista, as relações com animais não devem conservar a ideia de propriedade ou objeto, mas levar em conta a individualidade do indivíduo e o respeito à sua autonomia e bem viver.

A tendência de uma visão antropomorfizada é tornar o cuidado equivalente ao sentido da ‘conservação’, isto é, retirar os elementos de seu espaço natural e conservá-los protegidos em algum ambiente humano, mas isso é diferente do sentido expresso no termo ‘preservação’, que consiste em cuidar de algo em seu estado natural, respeitando suas formas autênticas de autoexpressar-se e buscar o bem que lhe é próprio. Nesse sentido, regidos pela ética, as relações e interconexões entre humanos e outros seres vivos não se pautam mais pelo dualismo sujeito-objeto da epistemologia científica, nem pelo distanciamento racionalista da modernidade, mas pelo cuidado com a preservação dos bens próprios de cada forma de vida. Ao tratar então do cuidado de formas de vida não humanas é importante que não se considere os seres vivos como meros objetos (KUHNEN apud SILVA, 2018, p. 147).

Conclui-se que por meio da educação, em todos os seus níveis, e por meio de outros olhares éticos e filosóficos como os apresentados acima, é possível a mudar- se a postura do ser humano em relação ao seu lugar no mundo e às suas atitudes com os outros no meio em que vive. As observações feitas pelo ecofeminismo e pela ética do cuidado são capazes de reorganizar as relações sociais, as relações entre seres humanos e natureza e as relações domésticas, refletindo no uso de um tratamento ético e de responsabilidade com animais sencientes e não mais dominador. Sendo assim, por meio de uma educação que seja ao mesmo tempo esclarecedora, crítica e atenta aos diagnósticos das questões animal e ambiental, é possível iniciar a desconstrução da barreira antropocêntrica.