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Como efetivar justiça para os animais não humanos vítimas de maus-tratos

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CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS DEPARTAMENTO DO CURSO DE DIREITO

LUANA BOSSLE

COMO EFETIVAR JUSTIÇA PARA OS ANIMAIS NÃO HUMANOS VÍTIMAS DE MAUS-TRATOS

FLORIANÓPOLIS 2019

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COMO EFETIVAR JUSTIÇA PARA OS ANIMAIS NÃO HUMANOS VÍTIMAS DE MAUS-TRATOS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientadora: Prof.ª. Letícia Albuquerque. Coorientadora: Prof.ª. Thais Silveira Pertille

FLORIANÓPOLIS 2019

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O tema dessa monografia é fruto da admiração e afeto que sinto pelos animais, sentimentos que me acompanharam desde criança e cresceram, estimulando uma vontade de oferecer-lhes o melhor que os humanos podem ser.

À minha família que sempre me cuidou com tanta atenção, especialmente meus avós que proporcionaram tanto para que eu tivesse acesso à educação e ao conhecimento. À minha mãe Vânia, in memoriam, que com sua existência me ensinou sobre coisas valiosas da vida.

A todas as minhas amigas e amigos que me acompanharam nessa trajetória, cada uma (um) à sua maneira, proporcionando as alegrias da amizade. Em especial, a todas (os) colegas da Universidade Federal de Santa Catarina que contribuíram para minha formação acadêmica e interpessoal.

À professora Drª Letícia Albuquerque, por toda a orientação, por providenciar livros e essencialmente, por ter proporcionado a disciplina de Direitos Animais e todo o movimento acadêmico pelos animais e meio ambiente; à coorientadora Thaís Pertille pelo excelente apoio à orientação; ao amigo Anderson V. Gomes pela atenção e auxílio na edição deste trabalho.

Aos meus amores em quatro patas, Stace, in memoriam; às fiéis companheiras de TCC, Barbie e Lolita, seja latindo, ronronando no meu colo ou passando em cima do teclado. Por fim, a todos os ativistas que lutam para mudar a realidade dos animais, pessoas que semeiam, sobretudo, respeito e igualdade.

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RESUMO

A presente monografia investiga a possibilidade de se efetivar justiça aos animais não humanos vítimas do crime de maus-tratos, previsto no artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), ou seja, investiga se é possível diminuir, cessar ou evitar a prática da referida conduta por meio da atual legislação brasileira. O problema de pesquisa debruçou-se sobre o seguinte questionamento: por meio da atual legislação brasileira, é possível efetivar justiça aos animais não humanos no crime de maus-tratos? Como hipótese principal ao problema foi delimitado que: a legislação atual não é suficiente para reduzir ou cessar os atos de maus-tratos contra animais. A monografia foi estruturada em três capítulos que abrangem os objetivos específicos do projeto. O primeiro capítulo fundamentou a necessidade de direitos morais e positivos aos animais não humanos; o segundo capítulo analisou as leis brasileiras que envolvem a proteção jurídica animal; o terceiro discorreu sobre alternativas de se realizar justiça aos animais vítimas de maus-tratos. O método de abordagem adotado foi o indutivo. A conclusão obtida foi que a legislação atual e por si só não é capaz de reduzir ou evitar a conduta de maus-tratos, caracterizando-se como uma solução ineficaz. Como solução se aposta numa transformação cultural social pela educação, visando introduzir animais não humanos na comunidade de consideração moral.

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This monograph investigates the possibility of effecting justice to non-human animals victims of the crime of abuse, provided for in article 32 of the Law on Environmental Crimes (Law No. 9.605/98), in other words, whether it is possible ro reduce, stop or avoid the practice of such conduct through the current Brazilian legislation. The research problem addressed the following question: through current Brazilian legislation, is it possible to effect justice to non-human animals in the crime of mistreatment? As main hypothesis to the problem was delimited that: the current legislation is not enough to reduce or to stop the acts of mistreatment against animals. The monograph was structured in three chapters that cover the specific objectives of the project. The first chapter grounded the need for moral and positive rights to sentient nonhuman animals; The second chapter analyzed the Brazilian laws involving animal legal protection; The third spoke about alternatives to doing justice to animals abused. The approach method adopted was inductive. The conclusion was that the current legislation, or the legislation alone is not able to reduce or prevent the conduct of abuse, being characterized as an ineffective solution. As a solution, a social cultural transformation is suggested through education, aiming to introduce sentient non-human animals into the moral community of consideration.

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INTRODUÇÃO ... 1

1. A existência de justiça para animais não humanos ... 5

1.1 Fundamentação dos Direitos Animais ... 5

1.2 Direitos Humanos e Direitos Animais, nenhum direito a menos ... 6

1.3 Antropocentrismo na história e na filosofia e o pensamento ético... 8

1.4 Especismo e senciência ... 13

1.5 A busca por uma ideia de justiça para todos os animais (humanos e não humanos) ... 17

2. Legislação brasileira e a proteção dos animais não humanos contra o crime de maus-tratos ... 23

2.1 Lei como reflexo da cultura e influência entre direito e moral ... 23

2.2 Construção da lei ambiental a partir da ideia de divisão entre ser humano e natureza ... 24

2.3 Constituição Federal de 1988, legislação animal em geral e crime de maus-tratos na Lei de Crimes Ambientais ... 28

2.3.1 Análise do tipo penal de maus-tratos e consequências ... 34

2.4 Reflexão acerca da relação entre crime de maus-tratos aos animais e violência entre seres humanos ... 40

2.5 RESULTADOS DO STATUS JURÍDICO DOS ANIMAIS NO BRASIL 44 3. Virada cultural para construção de valores que efetivem Justiça aos animais não humanos... 46

3.1 Educação como instrumento de transformação social ... 46

3.2 Outras formas de se pensar o planeta com ética ... 50

3.3 A intervenção estatal no crime de maus-tratos ... 54

4. Conclusão ... 58

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INTRODUÇÃO

Esta monografia teve como objetivo investigar a justiça para todos os animais sencientes que são historicamente e atualmente vítimas de maus-tratos. Para isso, investigou-se a cultura arraigada por detrás da produção normativa, tanto moral, atrelada a valores e costumes, assim como a jurídica. O foco do estudo são os direitos dos animais não humanos, mas, não se limita somente a esses pois, sincronicamente, envolve questões de direitos humanos e meio ambiente.

O método de abordagem utilizado foi o indutivo e a metodologia usada na elaboração do presente trabalho foi pautada na obra de Orides Mezzaroba e Cláudia Servilha Monteiro: “Manual de Metodologia da Pesquisa no Direito”. Como base teórica valeu-se de autores como Martha Nussbaum, Maria Alice da Silva, Peter Singer e Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros. Cumpre pontuar que na elaboração textual deste estudo, faz-se referência aos termos “animais humanos” e “animais não humanos”, e, por algumas vezes, esta última expressão foi abreviada para “animais”, somente. Igualmente, fala-se em “direitos animais” que, em minúsculo, refere-se aos direitos morais ou positivos concernentes aos animais não humanos. Por outro lado, em maiúsculo, as expressões “Direito Animal” e “Direitos Animais” são utilizadas para se referir à matéria ou campo dentro do Direito.

Justifica-se a elaboração da presente monografia pela atual necessidade de criação de políticas públicas e proteção legislativa para os animais não humanos vítimas de maus-tratos. O tratamento cruel humano dispensado aos animais se traduz nas mais variadas formas de maus-tratos e, nos últimos anos, esse tipo de violência tornou-se uma constante em notícias da mídia nacional e nas redes sociais, suscitando uma crescente preocupação da sociedade com a questão, embora canalizada aos animais de companhia.

A novidade do trabalho abarcou o contexto acima apontado e leva em consideração que com a crescente preocupação da sociedade com o bem-estar dos animais, é também crescente número de organizações e voluntários que lutam pelo ativismo animal em busca de direitos e proteção.

Considerando esse contexto, o problema eleito para nortear o trabalho foi estruturado sobre o seguinte questionamento: por meio da atual legislação brasileira,

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é possível efetivar justiça aos animais não humanos no crime de maus-tratos? A hipótese do trabalho é que, de acordo com a legislação que versa sobre o assunto, a legislação atual não é suficiente para reduzir, cessar ou evitar o problema, pois existe um contexto que precisa ser reformulado culturalmente além da norma jurídica.

No decorrer dos capítulos, apresentam-se partes de teorias morais, filosóficas e jurídicas, que difundem elementos para prosperar uma virada cultural que possibilite a existência de relações interespécies norteadas por uma justiça inclusiva e com mecanismos de proteção direta.

Ainda que todos os autores citados não defendam especificamente direitos animais, ou, os que defendam não abordem a mesma linha teórica, foram utilizadas suas teorias, termos e conceitos como influências para contribuir às argumentações trazidas no trabalho.

O primeiro capítulo buscou fundamentar a existência e a necessidade de direitos animais, porquanto o ser humano não está sozinho no planeta, convive e mantém variadas relações com outras criaturas, mas sempre exercidas com alguma sobreposição humana, sendo necessário repensar a regulação dessas relações.

Nesse capítulo, de pronto, destacou-se a importância de se incluir direitos animais tanto quanto direitos humanos, por razões éticas, enfatizando-se que as duas lutas se complementam para crescerem juntas. Realiza-se uma retrospectiva da cultura antropocêntrica dentro da história e da filosofia, mostrando os argumentos mais expressivos do movimento antropocêntrico. Observa-se a forte influência da tradição judaico-cristã nos pensadores ocidentais, que pregava que o poder divino concedera ao homem toda a Terra e componentes para seu bem uso. É observada também a influência das teorias contratualistas, que dispondo sobre o papel do Estado agregaram no máximo um caráter instrumental aos animais, negando valor intrínseco a estes.

Também foram destacados pensadores de todas as épocas que vão contra a corrente ao criticar o antropocentrismo, a arrogante ideia da superioridade humana, assim como a crueldade contra animais e a limitada consideração moral. À luz desses pensadores, desconstroem-se os principais argumentos antropocentristas. Evidencia-se que o ser humano não detém exclusividade da razão, da dor, do

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prazer, da consciência ou da cultura, por exemplo. Insere-se o conceito de especismo proposto por Richard Ryder, que alude ao preconceito contra outras espécies sem justificativa moral. Acrescenta-se a ideia senciência, enquanto capacidade de experienciar sensações como dor e prazer e, discorre-se acerca do relevante princípio da igual consideração de interesses semelhantes, de Peter Singer.

Ao final do capítulo, visualizou-se a necessidade de se questionar costumes e valores, identificando e repensando práticas morais vigentes. Idealizou-se uma ideia de justiça inclusiva em seu rol de consideração moral e sem preconceitos. Assim, enfatiza-se Martha Nussbaum e o “enfoque das capacidades”, para que todos os animais sencientes, humanos e não humanos, sejam sujeitos de direitos. Para que todos tenham sua individualidade respeitada e características estimuladas ao florescimento e bem-viver.

No segundo capítulo, realçou-se que a lei é um reflexo da cultura vigente, porquanto o Direito tem influência da moral e seus valores, nesse sentido, destaca-se a importância da ética, que por sua vez envolve a reflexão e análidestaca-se da moral. A partir disso, analisou-se a legislação brasileira sobre o tema.

Primeiro, observou-se que o crime de maus-tratos está tipificado na Lei de Crimes Ambientais e, ao se analisar a legislação ambiental, bem como a Constituição Federal de 1988 (notadamente seu artigo 225), verifica-se que toda a cultura antropocêntrica que atinge os animais, também atinge o meio ambiente, pois sua proteção está voltada ao valor instrumental para interesses humanos, e não tanto por seu valor intrínseco ou como habitat de todos os outros animais, essencial às suas vidas. Nesse âmbito, analisa-se as “expansões éticas” do meio ambiente.

Seguidamente, foi sintetizada a legislação que versa sobre Direito Animal no Brasil. É realizado um diagnóstico do status jurídico dos animais e, no geral, verifica-se que há alguns avanços (como a proibição da farra do boi) e graves retrocessos (como a lei da vaquejada e rodeios) na proteção de direitos animais, inferindo-se que podem até mesmo serem maltratados com respaldo legislativo, sob a aparência de regulação de atividade. É feito um estudo do tipo penal do crime de maus-tratos (art. 32 da Lei 9.605/98) e, conclui-se que o bem jurídico a ser considerado protegido deveria ser o próprio direito do animal de não ser violado, sua dignidade, sendo

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injusto considerar qualquer outro como o “equilíbrio ecológico” ou o “sentimento humano”.

Ainda no segundo capítulo, foram observados estudos que apontam a relação do crime de maus-tratos com o nível de agressividade de presidiários. Ainda, apontam que é possível um ciclo de violência entre de maus-tratos e violência doméstica, abordando-se a Teoria do Link.

O terceiro capítulo intentou trazer novas formas de proteção aos animais. Propôs-se uma virada cultural no sentido de construir novos valores morais, que, por conseguinte, ensejariam a formulação de novas normas jurídicas. Defendeu-se que a educação moral é meio capaz de mudar as relações sociais entre seres humanos e destes com outras espécies, ao disseminar um novo pensamento ético para o cuidado dos animais e do meio ambiente. Mudando-se os indivíduos, mudam-se as estruturas sociais, propiciando a inserção de todos os animais não humanos na comunidade moral de consideração. Por meio de uma transformação cultural se mostra possível criar-se direitos positivos melhores, que atendam as demandas ora em questão. O Estado pode criar políticas públicas norteadas a essa justiça inclusiva, para tanto, sugeriu-se as propostas do ecofeminismo e da ética do cuidado.

Por fim, sugeriu-se que a intervenção estatal penal seria válida na função de inibir o crime pela majoração da multa, visando incentivar uma mudança de postura social em relação ao crime, assim como a valorização do bem jurídico protegido. Ao mesmo tempo, entendeu-se também válido, a criação de norma que regule o pagamento dos cuidados e tratamentos necessários à recuperação saudável do animal maltratado pelo próprio agressor.

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1. A EXISTÊNCIA DE JUSTIÇA PARA ANIMAIS NÃO HUMANOS

1.1 FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS ANIMAIS

O planeta Terra abriga incalculáveis criaturas, em suas diversas características, especificidades e peculiaridades. São as mais diversas linguagens, sons, sentidos, trejeitos, movimentos, corpos, cores e habitats. Cada criatura capaz de sentir, vê esse mundo ao seu jeito, com seus olhos. Sendo assim, sente do seu jeito, à sua maneira. Todas que nascem, possuem o bem da vida. Uma só, dessas incalculáveis criaturas, exerce poder e domínio inigualável sobre as outras. Somente essa única criatura, entre inúmeras outras, reservou a si o direito de exercer uma existência digna. Intenta o presente trabalho a necessidade dessa criatura questionar-se:

Pensar para além de si mesmo é uma prática imprópria para quem adaptou-se a condição a que Immanuel Kant chamou de “situação de menoridade” onde, por comodismo ou oportunismo, as pessoas não pensam por si e ficam submetidas ao pensamento dos outros. Reflete o autor que o contrário da situação de menoridade é o “esclarecimento”, para o qual só se evolui com o uso público e habitual da razão. Esclarecimento é “a combinação do conhecimento profundo sobre um assunto específico com a autonomia crítica do sujeito do conhecimento” (KANT apud PERTILLE; PERTILLE, 2017).

Durante toda a história da humanidade, ao longo do desenvolvimento das civilizações até os dias atuais, quase sempre foram negados direitos aos animais não humanos, direitos morais ou positivos de forma que se garantisse o mínimo respeito à existência destes e, embora se tenha uma considerável produção de ideias inteligíveis e coerentes a esse respeito (com diversos escritos e teorias de cientistas, filósofos, psicólogos e vários operadores do direito), como será explanado ao longo deste estudo, a humanidade está imersa em uma cultura antropocêntrica que continua a legitimar atitudes antiéticas e cruéis com animais tão sencientes quanto o próprio ser humano.

Ao invés de continuarem esses relacionamentos pautados pela luta por sobrevivência e poder, é razoável que sejam regulados pela justiça, a nível ético e jurídico, tendo em vista que seres humanos compartilham um mundo e seus

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recursos escassos com outras criaturas inteligentes, tendo muito em comum com elas, apesar das mais diversas diferenças (NUSSBAUM, 2013, p. 400).

1.2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS ANIMAIS, NENHUM DIREITO A MENOS

Porque lutar pela causa animal e por direitos aos animais? Muitas pessoas questionam se é realmente necessária a preocupação com a vida de animais enquanto há muitos seres humanos também necessitados de muitas coisas, tanto necessidades básicas quanto acesso a direitos. Há pessoas morrendo de fome, de doenças, de guerra, de violência, de pobreza. Muitos acham que ao se dar atenção a uma causa animal ou conferir-se direitos aos animais, automaticamente se faz uma desvalorização da vida humana. Entretanto, o que acontece e o que precisa ser compreendido é que os Direitos Animais somam-se e aprofundam a tradição dos Direitos Humanos, os direitos de um não excluem direitos do outro, mas completam-se, para crescerem e prosperarem juntos (ANDRADE, 2010, p. 10):

Porque toda beleza e engenhosidade de que somos capazes torna-se uma futilidade diante do sofrimento e injustiça que perpetuamos no mundo, contra os indivíduos animais, humanos e não humanos. As duas lutas são as mesmas. Quando o ser humano reconhecer, enfim, o respeito que deve por outros animais, nesse dia não irá mais sacrificar seus semelhantes à futilidade da ganância e do poder. Não é que uma consciência venha antes da outra: as duas evoluem juntas; são uma só consciência (ANDRADE, 2010, p. 10).

É pensando nesse sentido, que os humanos começam a caminhar em direção ao “topo da consciência moral”, essa expansão é necessária antes que se extinga por completo tanto a própria vida humana quanto outras formas de vida em função da atual “miséria moral” em que a humanidade se encontra (ANDRADE, 2010, p. 10).

Embora os chamados Direitos Humanos não recebam a devida importância e não sejam efetivamente colocados em prática em muitos países ou situações, o reconhecimento, por si só, com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, já é uma grande conquista. É um “diferencial fundamental, pois fornece instrumentos legais para lutar contra violações dos direitos fundamentais praticados nesses países” (MÜLLER, 2010, p. 33). Salienta Bluwol:

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Tanto a opressão de animais não humanos como as entre humanos constituem em injustiças, violências desnecessárias baseadas em discriminações e preconceitos sem fundamentos sólidos e seguem a mesma lógica: um grupo acredita ser superior a outro grupo e crê que tal superioridade lhe dá autorização para subjugar e fazer com tal outro o que desejar. A aplicação desta lógica pode se dar, por exemplo, nas relações entre humano e animal, homem e mulher, heterossexual e homossexual, brancos e negros, ricos e pobres, europeus e africanos etc. (BLUWOL, 2014, p. 74-75)

Nesse aspecto, destaca-se brevemente a questão do assistencialismo. Essa prática não é capaz de solucionar a raiz dos problemas, sendo um mecanismo de enfrentar e amenizar, de alguma forma, um sofrimento ou obstáculo, de forma limitada - atende a alguns, não a todos os necessitados e conforme sua capacidade de “assistir” - e, temporariamente. Ainda assim, tem sua importância, pois em um dado instante conforta quem passa por alguma necessidade, ou doença, ou fome, ou frio. Quando se presta assistencialismo a um animal de rua ou humano morador de rua, por exemplo, não se muda o mundo, mas o mundo daquele animal ou daquela pessoa pode mudar no mesmo momento em que se oferece o que ele(a) urgentemente necessita, pode salvar uma vida (BLUWOL, 2014, p. 76).

O que se faz necessário na defesa de direitos animais, principalmente direitos fundamentais, como a vida, por exemplo, é entender que a questão vai além da aparência ou da empatia simplesmente, trata-se de uma questão ética. Não é preceito gostar de animais para ser favorável ao respeito para com eles, “o outro não precisa ter um rosto, não necessita ser próximo para que eu me oponha, desaprove, não contribua nem aceite que lhe coloquem em situação indigna” (ZABKA, 2014, p. 107).

De qualquer forma, assim como os direitos aos animais não excluem direitos aos humanos, o assistencialismo não exclui a busca pela efetiva solução dos problemas, todos devem caminhar juntos. Para quebrar essa barreira de preconceito ou resistência ao desenvolvimento e expansão de direitos animais, é de suma importância a utilização do raciocínio lógico e a força do argumento racional, visto que o que se objetiva desconstruir é uma cultura que existe desde os primórdios da humanidade. Assim leciona Müller:

O raciocínio lógico e a força do argumento racional são fundamentais para difundir os direitos animais e convencer a maioria dos interlocutores [...] a falta de conhecimento pode levar à incoerência nas ações e à confusão no discurso, reduzindo significativamente a força e a eficácia do ativismo pelos animais. Para defender nossos princípios, o primeiro passo é buscar

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compreender aquilo que fundamenta nossas escolhas éticas. (MÜLLER, 2010, p. 30)

Portanto, para se efetivar um novo pensamento voltado para os animais, que seja enxergado como “válido”, ou, importante (tanto quanto as questões humanas), é necessário uma construção lógica que pressuponha a identificação e análise da fundamentação das escolhas éticas humanas, para que se falar de animais humanos e não humanos seja igualmente importante. Sobre escolhas éticas humanas, cabe uma analogia do tema com a explicação de “tacocracia”, por Thaís Pertille e Marcelo Pertille:

O produto da tacocracia é uma sociedade de moral sem questionamentos, que apenas reproduz o costumeiro, que, numa espécie de autofagia, se alimenta exclusivamente de sua própria moral, de sua própria cultura, de seus próprios medos e, por consequência, de suas próprias ilusões. A mudança é vista com maus olhos e tudo o que constituí o diferente passa a ser simplesmente eliminado para que não gere desconforto, para que não exija reflexão, porque, afinal, pensar pode ser emocionalmente desgastante, incômodo. Refletir a ponto de pôr em xeque costumes e hábitos dói, promove desconfortos [...] Do contrário, políticas inclusivas, leis que prevejam isonomia e alterações culturais em quaisquer medidas são de pronto rechaçadas, pois deslocam os seres de suas zonas preestabelecidas (PERTILLE; PERTILLE, 2017).

1.3 ANTROPOCENTRISMO NA HISTÓRIA E NA FILOSOFIA E O PENSAMENTO ÉTICO

Mas afinal, de onde surgiu essa visão de mundo antropocêntrica? Como ela se perpetuou na humanidade ao longo do tempo? Segundo Souza, as origens histórico-filosóficas que consolidaram a ideia de dignidade centrada no ser humano são encontradas tanto nos pensamentos antigo, medieval e moderno. Salienta que a expressão dignidade está culturalmente atrelada ao conceito de pessoa humana e Direitos Humanos, de modo que se torna difícil modificar esse pensamento para se propor ou estabelecer a ideia de dignidade também aos animais não humanos (SOUZA, 2017, p. 79-80). Conforme Bluwol:

Há um tipo nefasto de consenso em nossa sociedade de que animais não humanos são inferiores aos humanos. Esta é uma tradição milenar e encontrou guarida, por exemplo, em filosofias que consideram a razão, aos moldes humanos, como o parâmetro para o merecimento ou não de respeito, assim como em diversas cosmologias que consideram os seres humanos como o centro do mundo. A redução de animais a puros serviçais

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é muito antiga e nas atuais sociedades industrializadas são praticamente reduzidos a máquinas ou matéria-prima. (BLUWOL, 2014, p. 73)

Dentre as escolas antigas de pensamento ético, a que mais influenciou sobre a questão dos animais fora o estoicismo, sendo entre as greco-romanas, a mais distante da possibilidade de inserir-se animais em um estatuto ético (NUSSBAUM, 2013, p. 403).

Os aristotélicos defendiam que tudo na natureza formava um continum, e que todas as criaturas vivas mereciam respeito e até mesmo admiração [...] Os epicuristas argumentaram que os seres humanos, como todos os animais, são compostos de corpos mortais e almas corporificadas que desintegram na morte. Mas tais doutrinas, que pelo menos rompem com o sentido de santidade única em torno da vida humana, foram rejeitadas por judeus e cristãos [...] acharam no estoicismo um aliado natural (NUSSBAUM, 2013, p. 403)

Ainda no período antigo, tem-se o filósofo grego Pitágoras, o qual defendia uma ética não antropocêntrica, era adepto ao vegetarianismo e à metempsicose (crença na possibilidade da alma migrar do homem para o animal) e, condenava tanto a violência quanto a morte de animais (SOUZA, 2017, p. 81). O pensador acreditava que o homem, ao não comer carne animal, estaria mais apto a alcançar maiores níveis de consciência e, considerava igualmente bárbaro derramar sangue de animal humano como o de não humano (ARIOCH, 2019).

Nussbaum explica que a tradição judaico-cristã, doutrina segundo a qual ao ser humano foi dado o domínio sobre todos os animais e plantas, influenciou todos os filósofos de tradição ocidental moderna, independente de suas crenças religiosas (NUSSBAUM, 2013, p. 402). No período medieval, importante lembrar que a religião cristã perpetuou a ideia de que “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança”, e foram nesse sentido os influentes da época, como Santo Agostinho e Tomás de Aquino (SOUZA, 2017, p. 81-82).

Entre outros grandes pensadores da História que sustentaram o discurso de inferioridade animal está René Descartes, filósofo e matemático francês que, com crenças cristãs, concluiu em 1637 Discurso do Método, no qual salienta que a grande diferença entre o homem e o animal está na “alma”, ao considerá-la privilégio exclusivo do ser humano e que se exterioriza pela linguagem. Para ele, animais são meras máquinas, autômatos, desprovidos de sentimentos de prazer e dor. (SOUZA, 2017, p. 85-86). Assim, desprovidos de consciência e sentimentos, assemelhava

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sons vocais e ruídos emitidos pelos seres vivos ao ranger de uma engrenagem necessitada de lubrificação (CARVALHO, 2016, p. 16).

Para os defensores dos direitos dos animais a temática cartesiana é muito problemática e equivocada, por diversas razões. Primeiro, a linguagem não é pré-requisito para ser consciente. Os bebês humanos, por exemplo, não nascem falando, mas ao longo da vida vão desenvolvendo a linguagem e, mesmo aqueles que não a desenvolvem podem ser conscientes. Na aplicação da tese de Descartes, esses seres humanos estariam vulneráveis, não possuiriam direitos como de fato possuem. Aliás, atualmente, com todo o conhecimento científico que se dispõe, é inegável que animais não humanos sejam sim capazes de sentir dor e prazer (MÜLLER, 2010, p. 35):

O nosso conhecimento atual sobre os animais evoluiu tanto que sequer podemos seriamente discordar de que eles são dotados de raciocínio, de linguagem - muitas delas extremamente complexas, como no caso de baleias e elefantes -, do contrário eles não buscariam conscientemente evitar situações dolorosas e não perseguiriam situações que foram fonte de prazer no passado. (MÜLLER, 2010, p. 35)

Em contrapartida, também na Idade Moderna, destaca-se o renomado cientista Charles Darwin, que em sua obra A Origem das Espécies, publicada em 1871, reconheceu que os humanos não estão em lugar de destaque ou diferenciado, provando que as diferenças existentes entre animais humanos e não humanos são meramente de grau e não de categoria (SOUZA, 2017, p. 90).

Apenas poucas pessoas atualmente negam que os animais possuam algum poder de raciocínio. Os animais podem constantemente ser vistos ao parar, deliberar e resolver. É um fato significativo o de que quanto mais os hábitos de um animal particular são estudados por um naturalista, mais ele os atribui à razão e menos a instintos inatos (Darwin, 1952, p. 292).

As teorias de contrato social surgiram dentro de uma cultura judaico-cristã mais geral, e a questão dos animais deixou de ser uma questão ética relevante, com era para gregos e romanos pelo menos até o século XVIII. Nussbaum faz a análise das teorias dos contratualistas Kant e John Rawls e conclui que o problema está na própria estrutura da doutrina do contrato (NUSSBAUM, 2013, p. 404 e 409).

A crítica da referida filósofa parte do pressuposto de que há inteligência em outros animais e, não aceita a ideia de que “animais não podem ser os sujeitos primários da justiça, porque não podem ser autores de contratos”, e, da mesma maneira, de que “somente aqueles que podem participar de um contrato como iguais

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podem ser sujeitos primários, não derivados, de uma teoria da justiça” (NUSSBAUM, 2013, p. 412 e 402).

Sobre a problemática da cultura antropocêntrica, atrelada ao contratualismo, leciona Müller:

Essa visão que nega direitos aos animais não humanos é fundamentada numa leitura contratualista conservadora, que afirma que só têm direitos aqueles indivíduos que também têm deveres. Os direitos e deveres são firmados por meio de um contrato - logo, só tem direitos quem for capaz de firmar contratos. Direito, nessa concepção, é um benefício que o indivíduo obtém em troca de um compromisso, pelo qual ele está obrigado a oferecer, em troca, algum outro benefício, por meio do qual se garante, assim, o convívio harmonioso e pacífico e, em última instância, a sobrevivência e prosperidade de toda a sociedade. (MÜLLER, 2010, p. 31)

Como fez Nussbaum, Müller aponta problemas na filosofia contratualista, tanto de ordem ética quanto moral, salientando que essa teoria não está nem perto de garantir direitos, uma vez que exclui grande parte das pessoas da comunidade de direitos. O contratualismo condiciona a ética à política, assim, a lei determina o que é ético e o que não é, até mesmo se a lei for injusta (MÜLLER, 2010, p. 31).

Entre indivíduos que não podem assinar contratos e, consequentemente, contrair obrigações, tem-se como exemplo: recém-nascidos, crianças, pessoas com certos tipos de enfermidade ou problemas de ordem neurológica ou cognitiva. O filósofo e também teórico político Jean-Jacques Rousseau, em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, publicado em 1775, discorre sobre a questão dos animais não celebrarem contratos:

Dessa maneira, não se é obrigado a fazer do homem um filósofo, em lugar de fazer dele um homem; seus deveres para com outrem não lhe são ditados unicamente pelas tardias lições da sabedoria; e, enquanto não resistir ao impulso interior da comiseração, jamais fará mal a outro homem, nem mesmo a nenhum ser sensível, exceto no caso legítimo em que, achando-se a conservação interessada, é obrigado a dar preferência a si mesmo. Por esse meio, terminam também as antigas disputas sobre a participação dos animais na lei natural; porque é claro que, desprovidos de luz e de liberdade, não podem reconhecer essa lei; mas, unidos de algum modo à nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que devem também participar do direito natural e que o homem está obrigado, para com eles a certa espécie de deveres. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal a meu semelhante, é menos porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem, deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro. (ROUSSEAU, J.-J., 2005, p. 28-29). Grifou-se.

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Já para Immanuel Kant, animais “são meramente meios para um fim. Este fim é o homem (...) Nossos deveres perante os animais são meramente deveres indiretos diante da humanidade”. Portanto, Kant até admite a necessidade de deveres indiretos para com animais, ou, necessidade de gentileza, dizendo que “quando somos gentis com os animais, reforçamos nossas tendências para a gentileza; quando somos cruéis com os animais, alimentamos as tendências para sermos cruéis com os seres humanos”. Contudo, isso se deve a uma simples questão de analogia e não deixa de ser antropocêntrica e instrumental, pois não enxerga dignidade animal ou nele valor intrínseco, preocupa-se com o próprio homem (KANT apud NUSSBAUM, 2013, p. 405).

John Rawls não é extenso em seus apontamentos sobre a questão animal, para ele, há deveres morais para com os animais, os quais denomina “deveres de compaixão e humanidade”, ou seja, não é uma questão de justiça (essa reservada aos humanos), mas apenas de dever moral, por motivo de animais sentirem prazer e dor. Nussbaum esclarece que a condição rawlsiana para celebrar contrato, qual seja a de que nenhuma das partes seja suficientemente forte para dominar ou matar a outra, não é satisfeita. Ademais, animais não fazem contratos, logo, a justiça que ela pretende para eles não se dará através de um contrato (NUSSBAUM, 2013, p. 410-413).

Diferentemente, para Nussbaum essas são questões de justiça e não, simplesmente, de “compaixão e humanidade”. Alega que podemos sentir compaixão em diversas situações, mas isso não gera responsabilização, não gera necessariamente justiça, não envolve o pensamento de que alguém deva ser responsabilizado por determinado sofrimento, “a compaixão, por si mesma, omite o elemento essencial da culpa por ter feito algo de errado: esse é o primeiro problema” (NUSSBAUM, 2013, p. 413).

Tanto Rawls quanto Kant não concebem o animal não humano como sujeito, agente de justiça, como fim em si mesmo. A compaixão é importante, entretanto, “uma resposta adequada envolve uma compaixão de tipo especial, uma compaixão que foque na ação injusta e veja o animal como um agente e um fim”. Como afirma a filósofa, “quando digo que os maus-tratos aos animais são injustos, quero dizer não somente que é errado para nós tratá-los dessa forma, mas também que eles têm o

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direito, um direito moral de não serem tratados dessa forma. É injusto para eles (NUSSBAUM, 2013, p. 414 e 415).

1.4 ESPECISMO E SENCIÊNCIA

Há quem diga que Humpry Primatt tenha sido o primeiro filósofo abolicionista animal. Em sua obra Disseration on the duty of mercy and sin of cruelty to brute animals, de 1776, posiciona-se a favor da igual consideração entre os animais humanos e não humanos. Escreve que os humanos possuem noções de uma moralidade universal, instigadas tanto na religião como na justiça, que abarcam somente membros da espécie humana. Segundo ele, fundamentos morais cunhados pelas tradições filosófica e religiosas colaboraram para essa concepção e limitação de moralidade. Aponta que a religião limitou o amor de Deus para as criaturas humanas e conferiu a elas o poder de escravizar os outros animais (SILVA, 2018, p. 106-107).

Destarte, Primatt critica o limite dessa universalidade moral, qual seja a espécie. Também pensava que quanto mais os humanos estudavam sobre eles mesmos, suas próprias características, mais reforçavam essa superioridade moral. Assim, suas ideias se aproximam muito do conceito que mais tarde foi cunhado por Richard Ryder, o especismo, conforme se depreende do colacionado abaixo:

Embora, os homens possam diferir em relação a pontos específicos da religião, a justiça é uma regra de extensão universal e obrigação invariável. Reconhecemos que esta é uma verdade importante nos assuntos com que o homem se preocupa, mas a limitamos apenas a nossa própria espécie (PRIMATT apud SILVA, 2018, p. 106, grifou-se).

Silva aponta o desenrolar dessa universalidade moral pautada somente na consideração de humanos:

A consequência disto é que todos os animais não humanos tornam-se objetos de propriedade para que os humanos usufruam de seu trabalho e corpo, de maneira moralmente aceita pelas teorias disponíveis, ignorando que os outros animais também podem ser felizes, saudáveis e que possam ter um espaço adequado para exercer sua afetividade de maneira respeitosa (SILVA, 2018, p. 107).

Ryder, grande autor para a ética animal, principalmente, como já mencionado, porque cunhou o termo especismo. Tal termo significa, resumidamente, o

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preconceito contra qualquer espécie, podendo se revelar contra uma ou várias espécies. Por exemplo, é muito comum no ocidente pessoas defenderem somente os cães e gatos, isso não deixa de ser especista. A sociedade se comove muito mais com notícias de crimes contra esses animais, mas, ao se preferir alguma espécie em detrimento de outras, sem justificativa moral, o preconceito está subentendido. “Se não há maneiras de justificar a escolha de uma determinada espécie, todas, com características e interesses semelhantes são consideradas” (SILVA, 2018, p. 108-109).

Peter Singer é outro respeitável filósofo na história da ética animal. Seus principais fundamentos teóricos são o princípio de igual consideração de interesses semelhantes e o princípio utilitarista. As teorias utilitaristas incluem, de certa forma, os animais não humanos nos cálculos morais, dado que o aspecto moral relevante para considerar alguém como paciente moral é o sofrimento, a capacidade de sofrer. Entretanto, foi Singer quem de fato buscou adicionar as preferências dos animais, defendendo que seus interesses têm o mesmo peso que os dos humanos. Tais preferências englobam a capacidade de desfrutar a vida e de sofrer, assim como vontade e planejamento do futuro em continuar vivendo (SILVA, 2018, p. 125).

Nesse viés, pensa-se a moralidade através de um cálculo para se alcançar as melhores consequências para todos os envolvidos, de modo imparcial. No utilitarismo, é possível o cálculo resultar em dano e a escolha certa a se fazer é a com menor risco de dano, que causa menor impacto, menos dor aos envolvidos (SILVA, M., 2018, p. 127).

Tendo em vista ser uma filósofa de vertente abolicionista, Nussbaum faz algumas críticas ao utilitarismo, apesar disso, aprecia a importância dessa vertente. A autora considera o utilitarismo como a que mais contribuiu para reconhecer a crueldade do sofrimento animal ao longo da história (NUSSBAUM, 2013, p. 415).

Souza explica que o princípio da igual consideração de interesses semelhantes, encontrado em Libertação Animal (de 1975), se aplica a todos, independente da aparência ou das capacidades dos seus destinatários, de serem humanos ou não humanos. Ademais, frisa que o princípio não impõe um tratamento idêntico, ou, padronizado a todos, mas sim de igual consideração (SOUZA, 2017, p. 97-98).

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Para Singer, o referido princípio revela que o fato de uma espécie não pertencer a outra não concede à primeira o direito de explorar a segunda. Ainda, que não é por conta do ser humano, supostamente, possuir mais inteligência que outro dado animal, que deva deixar de levar em conta os interesses deste último. E, enfim, afirma que o pré-requisito para se ter interesses é a senciência (SINGER, 2009, p. 66).

“Senciência é um mecanismo de defesa típico do mundo animal, que serve como um alerta para situações potencialmente nocivas à vida do indivíduo. Ao desencadear-se o mecanismo da dor, o indivíduo protege-se, afasta-se da dor, para preservar sua vida”. Esse ato de fuga da dor se deve ao próprio instinto dos animais, humanos e não humanos. É o caso de quando uma pessoa rapidamente retira a mão do fogo, reação que ocorre antes mesmo dela interpretar o estímulo racionalmente ou conscientemente (MÜLLER, 2010, p. 37).

Nessa hipótese, ao se questionar uma pessoa do porquê de ela não permitir ter seu braço queimado com ferro em brasa, seguramente ela não responderia “porque eu sou inteligente”, ou “porque eu tenho grande habilidade de comunicação”, ou ainda “porque existe um acordo tácito entre nós para que não causemos dano um ao outro”. Simplesmente nenhuma pessoa quer ter seu braço queimado porque isso causaria dor, sofrimento, danos físicos ou ligados à qualidade vida. Incontroverso, desse modo, que tratando-se de seres sencientes, independente de quais sejam: “a inteligência, a fala ou a capacidade de firmar contratos não podem ser usadas como parâmetro para avaliar eticamente ações que comprometam a vida de outros seres” (MÜLLER, 2010, p. 37). Singer aponta:

A inteligência nada tem a ver com muitos interesses importantes que os seres humanos têm, como o interesse em evitar a dor, desenvolver as próprias aptidões, satisfazer as necessidades básicas de alimento e abrigo, manter relações amigáveis e amorosas com os outros e ser livre para realizar seus projetos sem a desnecessária interferência alheia. A escravidão impede que os escravos satisfaçam esses interesses do modo como gostariam, e as vantagens que confere aos donos de escravos mal podem ser comparadas, em importância, ao mal que faz aos escravos (SINGER, 2009, p. 32).

De acordo com o filósofo, à luz da senciência, é arbitrário demarcar a tal fronteira moral com características como inteligência ou racionalidade:

Se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificativa de ordem moral para nos recusarmos a levar esse sofrimento em consideração. Seja qual for a

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natureza do ser, o princípio de igualdade exige que o sofrimento seja levado em conta em termos de igualdade com o sofrimento semelhante – até onde

possamos fazer comparações aproximadas – de qualquer outro ser

(SINGER, 2009, p. 65-66).

Abordando a inteligência de animais, Medeiros relata várias pesquisas nesse sentido, entre elas uma que foi realizada na costa oeste da Austrália, em que pesquisadores de várias universidades do país observaram, dos anos 1984 a 2000, o comportamento do golfinho nariz-de-garrafa. Verificaram que a espécie aprendeu uma maneira estranha de obter alimento: arrancando um pedaço de esponja do mar e colocando no rosto, a fim de utilizar como ferramenta para mexerem no fundo do oceano e obter pequenos peixes e crustáceos. Constatou-se com exames que a ferramenta não era da genética da espécie, e sim algo extrínseco. Além disso, viu-se que tal técnica era repassada entre mãe e filha, ou seja, consistia em um aprendizado e uma transmissão cultural (MEDEIROS, 2013, p. 125).

Merece destaque, outrossim, a Declaração de Cambridge sobre Consciência (The Cambridge Declaration on Consciousness), de 2012, na qual fora enunciado o seguinte:

A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não-humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não-humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos (CAMBRIDGE, 2012). Traduziu-se.

Tendo em vista o relatado acima, Müller conclui que:

[...] o dano que causamos ao tirar a vida ou comprometer a integridade de outro ser não é consequência da sua capacidade intelectual. Devemos proteger aqueles seres que, por sua vulnerabilidade, são dotados da capacidade de sofrer - um sofrimento que é físico e psíquico. Em outras palavras, têm direitos fundamentais aqueles indivíduos que são seres sencientes - seres que têm uma consciência individual, ainda que em diferentes graus de complexidade, pois são capazes de perceber ameaças diretas à sua vida; e também dotados de sensações individuais de prazer (MÜLLER, 2010, p. 37).

E prossegue: “Por que então, se não por pura hipocrisia, exigir-se-ia dos animais, para serem portadores de direitos fundamentais, critérios e pré-requisitos que não são exigidos dos seres humanos?” Neste contexto, fica claro que se trata de

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um tipo de preconceito, pois dado tratamento diferente sem fundamento e, logo, irracional (MÜLLER, 2010, p. 36).

Por fim, corroborando o que foi defendido no subtítulo “1.2”, Singer argumenta que o princípio moral básico da igual consideração de interesses é necessário para o alcance da igualdade entre os próprios humanos, tendo em vista a existência de diferenças e desigualdades entre esses. Embora a igualdade entre os próprios seres humanos ainda não tenha sido alcançada, é possível e digna a preocupação com a igualdade para com animais não humanos, na medida em que também é preconceito não levar a sério os interesses destes, tão infundado quanto outros preconceitos entre humanos: “Para nós, é fácil criticar os preconceitos de nossos avós, dos quais nossos pais se libertaram. É mais difícil nos distanciarmos de nossos próprios pontos de vista” [...] (SINGER, 2009, p. 65-66).

1.5 A BUSCA POR UMA IDEIA DE JUSTIÇA PARA TODOS OS ANIMAIS (HUMANOS E NÃO HUMANOS)

Justiça e ética são esferas intimamente correlacionadas para os pensadores do Direito Animal. Assim, pensando sobre o que fundamenta as escolhas éticas humanas, Sônia T. Felipe explica que as práticas institucionalizadas arraigadas pela moral vigente subsistem escondidas até que alguém torne visível e questione a tal moralidade, ao esclarecer conceitos e identificar “a matriz cognitiva a partir da qual formamos nossa teia de valores, segundo a qual interpretamos o lugar dos humanos e dos demais animais nesse planeta, podemos delinear novos valores e romper com a mores [costumes] ou tradições” (FELIPE, 2010, p.17).

Nesse sentido, a ideia dos diferentes lugares que os animais humanos e não humanos respectivamente ocupam no planeta praticamente não sofreu uma análise crítica racional por muito tempo, perdurando simplesmente a noção intuitiva da moral antropocêntrica, a qual é majoritária em todo mundo e norteia as escolhas éticas (FELIPE, 2010, p.14).

Pode-se dizer que moralidade é “o costume sustentado coletivamente”, entretanto, “noções intuitivas do certo e do errado seguem um curso acrítico” e

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somente “juízos críticos podem fazer a limpeza da teia de conceitos intuitivos com a qual operamos e com os ecossistemas naturais” (FELIPE, 2010, p.14).

Ou seja, mesmo que algo seja costume não quer dizer que automaticamente está correto ou seja eticamente aceitável, ou ainda, inquestionável, o que vai de encontro com a equivocada e popular expressão “ é assim porque sempre foi assim”, nessa lógica, esclarece Felipe:

É preciso admitir que as intuições morais nos fazem cometer erros. Mas eles vêm disfarçados de costumes, um termo que em latim quer dizer

mores, de onde deriva a palavra moral e, por extensão, moralidade. A

intuição moral de nossos bisavós lhes dizia que era natural negros nascerem para servirem brancos. A mesma intuição moral deles lhes dizia que era natural mulheres cuidarem apenas dos assuntos da casa e da procriação. Essas práticas tornaram-se “morais” por conta da intuição (mentalidade formatada por padrões conceituais e valorativos herdados acriticamente) (FELIPE, 2010, p.15).

O conceito de justiça pode se dar das mais diversas formas, todavia, enfatiza Nussbaum, em sua obra Fronteiras da Justiça, uma justiça denominada “justiça global”, a qual requer a inclusão de pessoas e grupos que não estão tipicamente incluídos como sujeitos plenamente iguais da justiça. Ou melhor, que muitas vezes não têm ou não tiveram condições de serem sujeitos de direito de justiça ou pacientes morais de acesso à justiça. Ela exemplifica: os pobres, pessoas de classe baixa, membros de minorias religiosas, étnicas e raciais, mulheres, assim como pessoas com deficiências físicas e mentais (temporárias ou permanentes). Ainda, inclui nesse conceito de justiça global que a relação entre as nações de todo o mundo seja pautada além de questões de guerra e paz, mas também justiça econômica e redistribuição material (NUSSBAUM, p. 495-496).

Para completar, Nussbaum afirma que uma “justiça verdadeiramente global” exige que “olhemos tanto em nossa própria nação quanto em todo o mundo, por outros seres sencientes cujas vidas estão entrelaçadas inseparável e complexamente às nossas”. E insere o enfoque das capacidades, que “começa com uma admiração eticamente sintonizada por todas as formas de vida animal, oferece um modelo que faz justiça à complexidade das vidas animais e suas lutas por florescer” (NUSSBAUM, p. 497).

Não obstante, “as leis e os princípios políticos são feitos pelos seres

humanos. Sendo assim, como podem os animais ser sujeitos plenos de justiça, quando não estão entre aqueles que participam da formulação de seus princípios?”

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(NUSSBAUM, 2013, p. 429). Para responder a essa questão, Nussbaum discorre sobre o enfoque das capacidades, que, ao identificar os princípios políticos que regulam o relacionamento entre humanos e animais, tem como objetivo geral que nenhum animal senciente seja afastado da chance de uma vida plena, contando com o tipo de dignidade primordial para sua espécie, além disso, devem usufruir de certas “oportunidades positivas para florescer”. Assim, “com o respeito devido por um mundo que contêm muitas formas de vida, levamos em consideração, com interesse ético, cada tipo característico de florescimento, e esforçamo-nos para que não seja interrompido ou se torne estéril” (NUSSBAUM, 2013, p. 431).

Ao pensar animais como seres ativos que possuem um bem (seja a vida, a dignidade, integridade física, etc), leva-se consequentemente a noção de que eles têm direito a perseguir esse bem. Nessa lógica, será mais fácil ver como injustos os danos que os humanos causam, impedindo-os de perseguir seu próprio bem (NUSSBAUM, 2013, p. 414).

“Para Kant, somente a humanidade e a racionalidade são dignas de respeito e admiração [...] O enfoque das capacidades, ao contrário, acredita, igual ao biólogo Aristóteles, que há algo maravilhoso e admirável em todas as formas complexas de vida.”(NUSSBAUM, 2013, p. 427). Logo, esse enfoque requer a obrigação direta de justiça para os animais, tratando-os como sujeitos e agentes, não apenas objetos de compaixão. Difere do contratualismo, ao passo que, nenhum indivíduo pode ser usado como meio para fins de outrem, preocupa-se em encontrar princípios políticos voltados para capacitação ou proteção, e não com uma definição geral de “vidas animais boas” (NUSSBAUM, 2013, p. 431-432).

Sobre o assunto, elabora o seguinte pensamento: “todas as descrições literárias das vidas dos animais são feitas por humanos, e é muito provável que toda a nossa imaginação empática das experiências dos animais seja moldada por nossos sentidos humanos de vida” (NUSSBAUM, 2013, p. 434).

Sendo assim, crucial inserir um elemento de projeção, observar os fatos além de como são dados, em virtude de, na natureza existir, dentro de cada espécie, vidas com fins múltiplos e heterogêneos. Por isso, o enfoque das capacidades exige um esforço a mais de “imaginação empática” (NUSSBAUM, 2013, p. 435):

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[...] imaginar a vida dos animais os torna reais de um modo primário, como sujeitos potenciais de justiça, enquanto uma abordagem contratualista, focada na reciprocidade entre seres dotados de um tipo especificamente humano de racionalidade, está obrigado a torná-los apenas derivativamente importantes”. (NUSSBAUM, 2013, p. 436-437)

Para explicar o enfoque das capacidades, importantíssimo ressaltar que a palavra “capacidade” (do inglês, capacity) não foi exatamente a escolhida por Nussbaum, na verdade ela utiliza o termo capability, mas, “capabilidade” não tem tradução para o português, ficando o sentido mais próximo, pois, “capacidade”. O termo que Nussbaum usa exprime uma ideia de habilidade a ser desenvolvida, mediante estímulo. É considerado um conceito político e, refere-se à necessidade que cada indivíduo possui para ter uma vida boa, conferindo-lhe dignidade. Diz respeito ao que tem valor para o indivíduo, que o proporciona desfrutar da vida de todas as suas possíveis formas. “É a capacidade de se envolver emocionalmente, cuidar da prole, caminhar, comunicar-se, expressar estratégias e tudo o mais que importa para a sobrevivência” (SILVA, 2018, p. 174).

Essa abordagem à questão dos direitos animais se mostra muito adequada pois:

Porque é capaz de reconhecer uma ampla gama de tipos de dignidade animal e de necessidades correspondentes de florescimento e porque está atento à variedade de atividades e objetivos que as criaturas de muitos tipos perseguem. A abordagem é capaz de produzir normas de justiça interespécies sutil e exigente, envolvendo direitos fundamentais para criaturas de diferentes tipos (NUSSBAUM, 2013, p. 401).

Ademais, sobre o objetivo do enfoque da capabilty:

Seu objetivo básico é abordar a necessidade de uma grande diversidade de atividades da vida. Com Aristóteles e Marx, a abordagem insistiu em que há desperdício e tragédia quando uma criatura viva com a capacidade inata ou ‘básica’ para algumas funções que são avaliadas como importantes e boas nunca tem a oportunidade de desempenhar essas funções (NUSSBAUM, 2013, p. 346).

Como saber que habilidade cada indivíduo pode desenvolver? Cada espécie tem necessidades e normas próprias e estudando o que é importante para cada uma é possível visualizar o que tem de valor para o seu respectivo desenvolvimento. Por isso, a defesa dos direitos animais não é uma defesa pela ecologia, é “pelo olhar do indivíduo”. A pensadora chega a formular listas de capabilities, humanas e não humanas. Mas, salienta que são listas prematuras, abertas, gerais, ou seja, que

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podem sofrer alterações em vista da evolução do conhecimento científico e da singularidade de cada espécie.

Silva analisa cada lista e, por ora, colaciona-se o observado sobre as capabilities dos animais não humanos:

i. Vida: [...] O direito à vida aos animais sencientes é o mais básico de todos. A vida é respeitada e mantida frente a qualquer circunstância como esporte, crueldade, para itens luxuosos ou coisas do gênero. [...]

ii. Saúde do corpo: [...] proibição total de práticas cruéis e leis banindo a negligência de tratamento com outros animais, sobretudo em locais com finalidades definidas como zoológicos, por exemplo. A alimentação e os espaços devem ser adequados, respeitando necessidades de liberdade. [...], há uma notória diferença entre a maneira como os animais para o abate e os demais são entendidos nas leis. Há que eliminar a diferença e tratar todos igualmente;

iii. Integridade física: Independente do tipo de relação com os animais, jamais pode resultar violência de tipo algum. Os animais são detentores do seu corpo e cabe aos humanos cuidar para que sua integridade e florescimento adequado a cada espécie sejam mantidos. [...] A integridade sexual também é mantida. Nussbaum questiona as castrações que rompem com o prazer sexual dos animais. Entretanto, há que alcançar alternativas para o direito de florescer esta capability sem dor, ao mesmo tempo que se implante o controle reprodutivo, em alguns casos;

iv. Sentidos, imaginação e pensamento: [...] Há que oferecer livre trânsito em ambientes naturais com variedade ambiental e de relações convenientes. Então, proteger a capability também significa proteger o meio ambiente, necessário para seu florescimento;

v. Emoção: A autora afirma que os animais sencientes desfrutam de uma grande gama de emoções como raiva, gratidão, inveja, alegria, medo e, alguns, de uma subjetividade mais complexa, até mesmo de compaixão. Assim sendo, manter os laços afetivos e um bom convívio num espaço livre de opressão básico. Muitos animais ao serem submetidos a relações violentas e ficarem trancafiados por um período apresentam claros quadros de depressão. [...]

vi. Razão prática: [...] Ao saber que existem, o direito consiste em manter um espaço livre e suficiente para o movimento e gerar as atividades desejadas. [...]

vii. Afiliação: [...] para gozar de oportunidades de estabelecer afetivas e também o direito a relações não tirânicas e respeitosas com humanos. [...] viii. Outras espécies: [...]. Os animais humanos não podem usar e explorar as outras espécies por serem mais fortes ou possuirem alguma característica que permita a violência com os mais vulneráveis. Todos os animais humanos ou não humanos têm o direito de conviver de maneira interdependente e de maneira recíproca também. [...]

ix. Lazer: Todos os animais sencientes precisam exercer suas atividades de lazer livremente e com a interação de outros da mesma espécie. Faz-se necessário um espaço adequado para este direito ser exercido;

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x. Controle sobre o próprio ambiente: [...] É importante salientar que os animais não humanos, por mais que sejam representados juridicamente por humanos, são os que, de fato, possuem o direito. Assim, estas políticas elaboradas, de maneira direta, para a proteção dos animais são, realmente, destinadas a eles e não aos interesses dos humanos que se relacionam com eles. Análogo ao direito de propriedade, os animais têm o direito ao seu habitat natural não invadido (NUSSBAUM apud SILVA, 2018, p. 181-183, grifou-se).

Portanto, ao se pensar a justiça para os animais não humanos, cumpre, primeiramente, estabelecer um conceito de ideal de justiça. Como fez Nussbaum, esse conceito deve integrar todos os seres, ao menos todos os sencientes, incluindo quem normalmente não participa ou não se beneficia das decisões políticas, do contrário não será justiça. Ou seja, o ideal de justiça não pode ser antropocêntrico, tampouco especista. Em contraponto ao ideal de justiça da filósofa, existe a justiça tal como está posta, prática e real, a qual, enquanto fenômeno cultural é reflexo da moralidade predominante e vigente, que por sua vez é formada por valores e costumes.

Em vista de que a posição humana na natureza, estabelecida topo da hierarquia, se formou em uma construção cultural mental, pelos próprios humanos desejando obter o controle sobre toda a Terra, é possível também construir uma nova posição, baseada não mais no domínio e na posse, mas sim na responsabilidade. Assim, redefinindo-se o estatuto moral dos animais no sistema ético humano (FELIPE, 2010, p.17).

A partir da compreensão de que animais não humanos possuem cultura, senciência e consciência, aliada ao esforço do pensar ético, tem-se desdobramentos capazes de desconstruir todo o discurso antropocêntrico que sustenta o especismo. Pensando nesse sentido e, tendo em vista que a cultura mundial, tal como está posta, leva a injustiças como situações de maus-tratos contra animais, segue-se o estudo acerca da inserção dos animais não humanos como beneficiários de direitos morais e, também, de direitos positivos.

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2. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E A PROTEÇÃO DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS CONTRA O CRIME DE MAUS-TRATOS

2.1 LEI COMO REFLEXO DA CULTURA E INFLUÊNCIA ENTRE DIREITO E MORAL

O primeiro capítulo discorreu basicamente acerca de direitos morais para os animais, ao mesmo tempo em que se fez uma retrospectiva histórica e filosófica apontando razões pelas quais eles foram excluídos da comunidade moral mundial. Já neste segundo capítulo, pretende-se examinar acerca dos direitos positivos, ou, direitos legais para os animais no Brasil, tendo em vista a influência entre moral e direito.

Então, inicialmente, cumpre diferenciar direito e moral. Comumente, diz-se que a norma moral precede o direito. Assim, a norma moral não é imperativa ou coercitiva, visto que não dispõe de poder punitivo de uma autoridade pública para se fazer valer. Dessa forma, conta com sanções diferentes das sanções jurídicas, como por exemplo consciência, rejeição social, ou vergonha. Além disso, a norma moral não é promulgada, mas também é válida, pois acontece informalmente pela prática social, “possui sentido, encontrando reforço de manutenção, durabilidade, constância e obediência no consentimento popular” (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 424).

De outro modo, as normas jurídicas, ou, normas estatais, regulamentam-se “dentro de um procedimento formal, complexo e rígido, com o qual se dá publicidade aos mandamentos jurídicos”, portanto, contando com promulgação e sanções coercitivas (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 423).

Conclui-se, assim, que “o direito se alimenta da moral, tem seu surgimento a partir da moral, e convive com a moral continuamente, enviando-lhe novos conceitos e normas, e recebendo novos conceitos e normas”, ambas estão intrínsecas e complementam-se na orientação do comportamento humano (BITTAR; ALMEIDA, 2001, p. 427).

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Igualmente, o direito resulta das demandas criadas em razão de transformações na estrutura social, o Estado possui necessidade de criar normas jurídicas que acompanhem essas modificações. De acordo com cada contexto histórico, tem-se a causa de respectiva produção legislativa (MEDEIROS, 2013, p. 49).

Como ilustrado no capítulo anterior, os valores e direitos morais existem e perduram de acordo com a cultura e costumes existentes e nada mais natural que a legislação, num estado democrático de direito, ser resultado e reflexo dessa cultura, a qual apresenta-se majoritária e historicamente antropocêntrica.

Nesse sentido, Thaís Pertille e Marcelo Pertille (2017) ao discorrerem sobre o papel da ética envolvendo as razões dos processos de escolhas vividas pelos humanos, ensinam que Ética “é reflexão, é a análise da moral que permeia uma cultura”, é quando se pratica um conjunto de exercícios “no sentido de compreender até que ponto determinada moral de fato está guiando um grupo de pessoas para o melhor que seu potencial autoriza”. Frisando a moral, enquanto “conjunto de hábitos e costumes de determinada sociedade em determinado tempo”, terá o Direito como importante ferramenta de proteção ou alteração dessas culturas. Desta forma, o Direito é tido como indispensável na instrumentalização da ética, porquanto há hábitos, leis e estratégias políticas que devem ser questionados ou tutelados.

2.2 CONSTRUÇÃO DA LEI AMBIENTAL A PARTIR DA IDEIA DE DIVISÃO ENTRE SER HUMANO E NATUREZA

Antes de adentrar no tema de direitos positivos para animais, necessário analisar o direito ambiental brasileiro, mesmo porque o crime que se pretende estudar, qual seja os maus-tratos, está inserido na chamada Lei de Crimes Ambientais. Muito do que se estuda sobre o meio ambiente, num viés histórico e filosófico, aborda a questão cultural da relação entre ser humano e meio ambiente, principalmente a forma como a humanidade sempre lidou com a questão, sempre colocando interesses humanos e econômicos à frente, ocasionando-se diversos impactos negativos. Sobre a temática do meio ambiente, Singer escreve:

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De acordo com a tradição ocidental dominante, o mundo natural existe para o benefício dos seres humanos. Deus deu a eles o domínio sobre o mundo natural e não se importa com a maneira como o tratamos. Os seres humanos são os únicos membros moralmente importantes desse mundo. Em si, a natureza não tem nenhum valor intrínseco, e a destruição de plantas e animais não pode configurar um pecado, a menos que, através dessa destruição, façamos mal aos seres humanos (SINGER, 2009, p. 283). Medeiros, em Direito dos Animais, leciona que para compreender a relação existente entre animais humanos e não humanos e a relação destes com o ambiente, é oportuno conhecer as correntes da ética ambiental. Assim, propõe a análise do antropocentrismo radical e do moderado, e as chamadas “expansões éticas” como sensocentrismo, biocentrismo e ecocentrismo (MEDEIROS, 2013, p. 34).

O antropocentrismo radical enxerga os humanos como uma categoria especial de animais, dotados de uma vida com valor inigualável, enquanto os outros tipos de vida possuem pouco ou nenhum valor moral, significando apenas bens, propriedades ou recursos para os humanos (NACONECY apud MEDEIROS, 2013, p. 35). Defende que os demais animais não possuem nenhuma racionalidade, autonomia e moralidade, ou, não possuem da mesma forma a humana. Aliás, sendo esses os mesmos critérios utilizados há pouco tempo para inferiorizar mulheres, negros, indígenas e judeus (MEDEIROS, 2013, p. 35).

O antropocentrismo moderado defende que somente humanos possuem valor moral relevante e, uma vez que fazem parte de um todo, a natureza e seus outros seres, este todo merece proteção. Ou seja, protege o ambiente por conta do seu valor instrumental ou utilitário, mas em verdade para atender interesses e bem estar humano (MEDEIROS, 2013, p. 35).

Portanto, as duas correntes do antropocentrismo utilizam-se de lógicas utilitaristas e definem a natureza como algo instrumental, subjugado ao humano, que, por sua vez, é o ser superior do universo.

Conforme o passar dos anos e o aumento da ocorrência de tragédias ambientais causadas pela ação antrópica, surgiu-se uma conscientização mundial com relação à saúde ambiental e uma preocupação com a preservação da natureza que, igualmente, influenciou o direito no desenvolvimento de leis de proteção ambiental (MEDEIROS, 2013, p. 36).

Referências

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