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Análise do tipo penal de maus-tratos e consequências

2. Legislação brasileira e a proteção dos animais não humanos contra o

2.3 Constituição Federal de 1988, legislação animal em geral e crime de

2.3.1 Análise do tipo penal de maus-tratos e consequências

Por ora, indispensável a análise do tipo penal objeto do presente trabalho de monografia, qual seja a conduta de maus-tratos. Assim dispõe o artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. § 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. Em relação à sanção penal, conforme se infere, as penas são baixas, podendo serem substituídas por multa, em caso de condenação resulta em detenção, e não em reclusão. O que não parece razoável nem proporcional, tanto pela gravidade da conduta, quanto pelo bem jurídico que deveria estar sendo protegido, como também em comparação com as penas de outros crimes, menos graves e que não envolvem vidas.

A título de exemplo, para um simples furto - pode-se imaginar aqui qualquer objeto, como uma fiação elétrica da rede pública ou um par de tênis - o Código Penal7 prevê a pena de reclusão de 1 a 4 anos e multa. Ainda, se caso o agente cometer o crime durante o repouso noturno, aumenta-se mais um terço da pena. Não parece nem ao menos racional que um par de tênis seja mais bem protegido que a integridade física ou a vida de qualquer animal.

Sarlet explica que o princípio da proporcionalidade, levando em consideração outro princípio, qual seja o da proibição de insuficiência (este último “no sentido de

7 “Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro

anos, e multa. § 1º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno.

insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado”), deve ser aplicado analisando três etapas: se a medida é eficaz na proteção do bem jurídico; se há outra medida mais eficaz e menos interventiva em bens de terceiros; se riscos e ameaças podem ser suportados pelo coletivo para se preservar outros direitos e bens fundamentais individuais ou coletivos. Ou seja, para fazer juízo de proporcionalidade faz-se análise da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (SARLET apud MEDEIROS, 2013, p. 62-63).

Acerca da conduta, a lei não especificou o que configura maus-tratos. Diferentemente do já citado e revogado Decreto nº 24.645/34, o qual estabelecia um rol taxativo com 31 incisos. Esse fato caracteriza ofensa ao princípio do Direito Penal da taxatividade, aliás, a conduta delituosa deixada na generalidade prejudica a própria imputação do crime. Esse princípio determina:

Ao legislador a função de caracterizar com extrema clareza e precisão cada tipo penal, oferecendo um texto que prime pela determinação da conduta típica, dos elementos, circunstâncias e fatores influenciadores na configuração dos contornos da tipicidade e suas respectivas conseqüências jurídicas. O que se observa, entretanto, são expressões ambíguas, termos obscuros ou vagos, tendo como exemplo a expressão “ato de abuso”, empregada no artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais, que consiste num termo jurídico indeterminado e que exige do intérprete o preenchimento de seu conteúdo (TOLEDO, 2012, p. 202-203).

Frank Ascione utiliza uma interessante definição para os maus-tratos, sendo: “um comportamento social inaceitável que intencionalmente causa dor, sofrimento, estresse ou a morte do animal” (ASCIONE apud NASSARO, 2016, p. 44). Eric Hickey diz que maus-tratos aos animais ocorrem quando: “um animal é privado conscientemente de água, abrigo, socialização ou cuidados veterinários ou dolosamente torturado, mutilado ou morto” (HICKEY apud NASSARO, 2016, p. 44). “Também comete o crime de maus-tratos aquele que mantém animal em local inadequado, sem higiene, espaço e luz solar, dentre outras situações que impedem que ele tenha qualidade mínima de vida” (NASSARO, 2016, p. 45).

Somado a isso, parece haver uma confusão no artigo, pois o legislador deixou no mesmo tipo o gênero (maus-tratos), com os verbos “abusar, ferir e mutilar”, as quais parecerem espécies desse gênero. Sendo que a conduta de “abusar”, por vezes, pode não ser tão clara e visível quanto as outras:

[...] o abuso, por vezes, é conduta mais complexa porque não é tão perceptível e simples de ser identificada sem um profissional habilitado. O

abuso costuma ser interpretado como uma conduta que impõe ao animal uma situação que não respeite a sua natureza como, por exemplo, forçar um cavalo a puxar uma carroça com peso além de suas forças (NASSARO, 2016, p. 45).

Nassaro (2016, p. 45) aduz também possível interpretar como abuso a zoofilia, “na medida em que impõe ao animal uma situação sexual que não respeita sua natureza, muito menos suas condições físicas”, assim como a utilização de cães como guardas por empresas de segurança privada.

No que toca os sujeitos do tipo, trata-se de crime comum, vez que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. Aqui, há uma ampla discussão na doutrina acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica, porquanto a Lei nº 9.605/98 impõe expressamente8 a responsabilidade nas esferas administrativa, civil e penal. Alguns doutrinadores entendem que tal dispositivo é inconstitucional ao gerar uma dupla imputação. Ou, ainda, que a responsabilidade penal da pessoa jurídica ofende ao princípio da legalidade, visto que não houve previsão de condutas a serem praticadas por pessoas jurídicas:

Houve apenas uma previsão genérica das penas na parte geral para os entes coletivos, os quais devem ser considerados como sujeitos de imputação, e não sujeitos de ação, por lhes faltarem os elementos “vontade” e culpabilidade. O homem recebe os comandos normativos, sendo que as penas privativas de liberdade serão impostas aos representantes legais das empresas, enquanto que a estas lhes serão impostas medidas acessórias, como multa, ou ausência de benefícios fiscais [...] Deste modo, o ente coletivo não pode sozinho praticar uma ação, devendo prevalecer o entendimento de que não há possibilidade de entes coletivos serem sujeitos ativos de delitos (TOLEDO, M. 2012, p. 214-215).

Essa corrente não parece prosperar, pois o dispositivo infraconstitucional vai ao encontro da Carta Maior, no seu art. 225, §3º 9, estando ambos em harmonia. Percebe-se que o legislador ordinário estabeleceu requisitos para tal responsabilização, exigindo uma “vontade institucional”:

Isto quer dizer que exclusivamente a atividade da pessoa jurídica deliberada e determinada pelos seus representantes - em última instância pelas pessoas físicas que comandam - possui o condão de acarretar sanções de cunho penal. Além desta exigência, determina também a legislação que a

8 “Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o

disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.”

9 “Art. 225 [...] § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os

infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”.

decisão vislumbre, almeje benefícios à entidade (SALVADOR NETTO; VELLUDO SOUZA, 2009, p. 99).

Desse modo, quando ocorre responsabilidade penal da pessoa jurídica, nada impede que as pessoas físicas envolvidas (em coautoria ou participação) também respondam pelos crimes ambientais. Ou seja, “a punição de um agente (individual ou coletivo) não permite deixar de lado a persecução daquele que concorreu para a realização do crime seja ele co-autor ou partícipe” (SHECAIRA apud CALHAU, 2001, p. 6).

As sanções penais10 foram devidamente previstas, mas ainda restam dúvidas ao intérprete. Os tribunais brasileiros, assim como Superior Tribunal de Justiça, chegaram ao entendimento de que a responsabilidade penal da pessoa jurídica deve necessariamente ser acompanhada de responsabilidade pessoal. Já Supremo Tribunal Federal (1ª Turma. RE 548181/PR, rel. Min. Rosa Weber, julgado em 6/8/2013), entendeu que é admissível a condenação de pessoa jurídica pela prática de crime ambiental, ainda que absolvidas as pessoas físicas ocupantes de cargo de presidência ou de direção do órgão responsável pela prática criminosa. Para o Supremo, subordinar uma responsabilização à outra, não foi propósito do § 3º do art. 225 da CF/88.

O debate acima é pertinente a casos como o do cão Manchinha, que em dezembro de 2018 fora agredido a pauladas com uma barra de alumínio, após ter sido envenenado, por funcionário do hipermercado Carrefour, em Osasco/São Paulo, e mesmo socorrido acabou morrendo em consequência da hemorragia.

Partindo para outro aspecto, talvez o problema mais grave no tipo penal seja a definição da coletividade, ou o Estado, como sujeito passivo do crime. Enquanto

10

Art. 21. As penas aplicáveis isolada, cumulativa ou alternativamente às pessoas jurídicas, de acordo com o disposto no art. 3º, são: I - multa; II - restritivas de direitos; III - prestação de serviços à comunidade.

Art. 22. As penas restritivas de direitos da pessoa jurídica são: I - suspensão parcial ou total de atividades; II - interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; III - proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações. § 1º A suspensão de atividades será aplicada quando estas não estiverem obedecendo às disposições legais ou regulamentares, relativas à proteção do meio ambiente.

§ 2º A interdição será aplicada quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com violação de disposição legal ou regulamentar. § 3º A proibição de contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou doações não poderá exceder o prazo de dez anos.

Art. 23. A prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica consistirá em: I - custeio de programas e de projetos ambientais; II - execução de obras de recuperação de áreas degradadas; III - manutenção de espaços públicos; IV - contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.

que, para o direito animal, deveria ser sujeito passivo o próprio animal, se este fosse considerado como sujeito de direito e sujeito-de-uma-vida, dotado de valor intrínseco. Greco ratifica tal entendimento, aduzindo que “a proteção dos animais é individualista: ela se ocupa do animal individualmente considerado, enquanto a proteção do meio ambiente é holística, já que nesse âmbito trata-se do equilíbrio de um sistema como um todo” (GRECO, 2010, p. 52).

Todavia, o que acontece é que os animais (silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos) são classificados como mero objeto material do crime. Soa absurdo, mas o que está na norma é que o cão é um meio para que se cometa um crime contra ele mesmo, sendo a vítima do crime o coletivo. Para a norma, a sociedade é a principal prejudicada:

O Direito Penal Ambiental no Brasil ainda vê a tutela jurídica dos animais de uma maneira ampla, de modo que não se consideram os animais individualmente, mas sim membros da “fauna”, um importante elemento para o equilíbrio do meio ambiente, em especial visando à sadia qualidade de vida do ser humano. Desta forma, tem-se, equivocadamente, que o bem jurídico a ser tutelado é o meio ambiente, sendo os animais não-humanos meros objetos materiais dos delitos, e os humanos os detentores de direitos (TOLEDO, M. 2012, p. 202).

Ao identificar o bem jurídico tutelado pelo crime, inicia-se outra questão polêmica. Parte da doutrina nacional considera como sendo o meio ambiente, ou o equilíbrio ecológico, há também os que consideram como sendo a dignidade ou algum interesse da pessoa humana.

Como não há na doutrina penal um consenso sobre o próprio conceito de bem jurídico, tomar-se-á, por base, algumas definições consideradas mais adequadas ao tema, pois muitas limitam a definição para o universo das tutelas de interesses humanos. Assim, o que se defende é a proteção do bem jurídico do animal não humano como a vida, a integridade física, sua dignidade, ou qualquer interesse que lhe seja singular.

Francisco de Assis Toledo leciona sobre o conceito de bem jurídico no direito penal “em um sentido muito amplo, é tudo o que se nos apresenta como digno, útil, necessário, valioso. [...] Os bens são, pois, coisas reais ou objetos ideais dotados de “valor”, isto é, coisas materiais e objetos imateriais que, além de serem o que são, “valem” (TOLEDO, 1994, p. 15).

E complementa, sintetizando que “bens jurídicos são valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas” (TOLEDO,1994, p. 16).

Precisamente sobre o bem jurídico tutelado pelo delito de maus-tratos presente no artigo 32 da Lei n. 9.605/98, Sirvinskas (2011, p. 179) defende, como muitos, que o bem jurídico tutelado é o meio ambiente, a “preservação do patrimônio natural, especialmente da fauna silvestre, doméstica ou domesticada, nativa ou exótica, ameaçada ou não de extinção.” Os autores que defendem essa ideia, partem do pressuposto que se os animais pertencem ao meio ambiente, então a proteção dos animais se dá pela proteção ao meio ambiente.

Em outra perspectiva, tem-se a definição do bem jurídico como o sentimento humano:

Nesse último caso – maus-tratos, atos de abuso ou de crueldade aos

animais domésticos –, o bem jurídico tutelado vem a ser o legítimo

sentimento de humanidade (piedade, compaixão ou benevolência) de que é portadora a sociedade diante de atos dessa natureza, tendo em vista que constitui dever de todo ser humano respeitar aos demais seres vivos –

in casu animais irracionais vertebrados (PRADO, 2009, p. 176). Grifou-se.

As duas definições de bem jurídico ilustradas para o tipo em questão, meio ambiente e sentimento humano ligado à compaixão, ainda não tratam da questão animal como sujeito de direito e valor intrínseco, consistindo, como explica Teixeira Neto (2017, p. 167), em formas de proteção indireta. Assim, ele conclui que a dogmática jurídico-penal tem como raiz um antropocentrismo-radical significativo:

O antropocentrismo-radical na dogmática jurídico penal é um modo de compreender as coisas do direito penal em que está em causa apenas a proteção do ser humano. Toda e qualquer forma de proteção, por meio do direito penal, nesse modo de compreensão, possuiria – ao fim e ao cabo – um único destinatário: o homem. [...] Falar num tal paradigma é reconhecer a existência de uma compreensão jurídico penal que, em regra, ignora o que está para além do humano (TEIXEIRA NETO, 2017, p. 66). Grifou-se.

Apesar disso, necessário lembrar de dois princípios norteadores do direito penal. O princípio da subsidiariedade, como critério de ultima ratio, que implica em utilizar esse ramo quando outros (cível ou administrativo) forem insuficientes ou falharem. E o princípio da fragmentariedade, o qual determina que o direito penal

deve proteger os bens jurídicos mais relevantes em todas as áreas de conhecimento, em todas as relações jurídicas. Nessa linha:

Para selecionar o que deve merecer a proteção da lei, o Direito Penal, como

ultima ratio, busca incriminar somente as condutas mais graves praticadas

contra bens relevantes para a sociedade [...] A tarefa legislativa deve vincular-se a certos critérios positivados na Carta Magna que consistem em marcos de referência de bens jurídicos e a forma de sua garantia (TOLEDO, M. 2012, p. 205).

Sem dúvidas, após toda reflexão produzida até o momento, pode-se garantir que o bem jurídico que se quer tutelar no crime de maus-tratos é de extrema relevância (penal e ética) e merece maior cuidado. O direito penal tem sua função de demonstrar reprovação social e coibir condutas de acordo com a gravidade, mas sozinho não produz os melhores efeitos.

Quando o penalista Alexandre Morais da Rosa escreve sobre controle social via direito penal, ele explica que as agências de controle são variadas, que não se restringem ao Sistema Penal, existindo sistemas de assistência social, saúde, educação, psicológico, religioso, familiar, dentre outros que deveriam agir numa “perspectiva coletiva de respeito” (ROSA, 2017, p. 95).

Toledo entende a pena de multa como uma alternativa à pena de prisão, destacando seu efeito inibidor:

Levando-se em conta as atuais sanções aplicadas aos crimes ecológicos, pode-se dizer que há muitas falhas no sentido de se efetivamente atingir fins de prevenção geral e especial, uma vez que as penas são constituídas por penas privativas de liberdade, as quais geralmente são convertidas em prestação de serviços, e multa. Desta forma, poderia ser dada maior relevância à pena de multa, para que ela consista realmente num ônus ao delinquente, desencorajando o mesmo e também prováveis infratores a causar danos ao meio ambiente. Somente assim funcionaria como uma boa alternativa à pena de prisão, podendo sem dúvida ser aplicada como pena única, em certos casos (TOLEDO, M. 2012, p. 203).

2.4 REFLEXÃO ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE CRIME DE MAUS-TRATOS AOS