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Essa parte da pesquisa foi construída a partir da coloboração dos chamados mais velhos e com o uso da História Oral nos possibilitou deixá-los falar, contar, narrar a trajetória do Povo Karitiana ao largo da história, as estratégias de resistência, seus embates políticos. Alertamos que ao deixá-los narrar, significa que transcrevemos a fala literalmente e procuramos, na hora da interpretação de suas falas, manter o modo como categorizam alguns conceitos, como o de tempo e história, por exemplo, pois assim acreditamos poder entender mais como se organizaram social e politicamente para sobreviverem ao Estado.

Do parágrafo acima, depreende-se que atuamos com a memória, sendo essa uma construção que se dá a “[...] partir de um universo diversificado de marcas que poderão nos remeter ao relato de imagens, situações, acontecimentos ou a narração de experiências que são relembrados pela memoria voluntária [...]” (MONTENEGRO, 2018, (s/p), que, em sendo estimulada, a memória voluntária faz-nos narrar fragmentos do passado e que está de maneira invisível associada à memória involuntária. Cf. MOSER, 2018).

Nessa esteira, ao usarmos da história oral temos que ter consciência de que estaremos lidando com uma memória que antes de ser individual é, sobretudo, memória coletiva e, portanto, “[...] não é suficiente reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança” (HALBWACHS, 1990, p. 71) que, no caso do povo Kartiana “essa história contata de geração para geração, não é uma simples lembrança, não é um “amontoado” de peças justapostas, mas a história que faz parte de seu povo, de suas lutas e conquistas”( MOSER, 2018, p. 18.

Deste modo, ouvimos as narrativas dos entrevistados, deixando-os falar, sem esquecer que:

Na história oral deve-se considerar a sua relação com o próprio entrevistado que vive outro presente, diferente do passado, ele vive outros valores, devido a comportamentos, situações, pontos de vista tornando-se uma ameça, pois a imagem que se tem do no presente é muito diferente do passado. “Relembrar” é projetar publicamente um cenário a que a ótica do presente poderá oferecer inúmeras restrições. (MOSER, 2018, p. 18)

Dessa forma, percebemos que, para o povo Karitiana, a história é dividida em quatro tempos. O primeiro refere-se à história do ‘tempo muito antigamente’, contada

pelos mais velhos, homens e mulheres considerados como guardiões da memória. Essa história trata de acontecimentos que antecedem a existência de todos os seres humanos conhecidos na atualidade. O segundo tipo de história é denominado de história de ‘tempo antigamente’ que se refere aos acontecimentos que, embora, sendo antigos, estão vinculados a fatos não tão antigos, como por exemplo, as lutas dos movimentos indígenas para ter assegurada na Constituição de 1988 a demarcação de seus territórios. O terceiro, diz respeito a história que as crianças e os jovens aprendem com os não indígenas, em especial, aqueles conhecimentos advindos da escola. Ou seja, essa divisão da história consta no componente curricular e é repassada na escola pelos professores.

A última é a mais curiosa, pois trata-se da história contada para os pesquisadores que aparecem nas aldeias para desenvolverem estudos referentes aos povos indígenas e geralmente entrevistam os mais moços que, além de não conhecerem as história do “tempo muito antigamente, ou conhecerem pouco ou até mesmo não terem a função de repassar a história, sendo essa função exercida pelos sábios indígenas que geralmente são os mais velhosas, parecem ser treinados para contarem tal ou tais histórias invetadas por eles, em que contam diferentes versões para os eventuais visitantes. Lembro-me de um episódio em que dois alunos indígenas enganaram literalmente um visitante curioso. Um fingiu não conhecer a língua portuguesa e o outro fingia ser o tradutor. Neste episódio, falando na lingua Karitiana faziam brincadeiras com o visitante e na língua portuguesa, o “tradutor” falava sério. Depois que o vistante foi embora, chamei a atenção dos mesmos, perguntei qual o motivo de fazerem isso e eles me responderam que os “brancos” querem saber de coisas que não podem saber e como são curiosos, a gente se diverte com eles.

Desse modo, percebemos que, em relação ao povo Karitiana, a “fala é relacionada com o vivido. As entrevistas expressam experiências. A história que eles contam do seu povo, não é um discurso produzido, racionalizado para apresentar algum aspecto, mas é o cotidiano contado e revivido e por sua vez revisitado. (MOSER, 2018, p. 19)

Assim, dialogamos com a história oral27 e lançamos um olhar, ainda que na

27 A história oral (HO, sigla designativa do termo), resgata o tempo desaparecido, diante da aceleração

superficie sobre o campo da linguística para, com a descrição da trajetória do povo Karitiana, poder compreendê-la. No caso específico do Povo Karitiana, Aryon Rodrigues (RODRIGUES, 1986, p. 46), afirma serem falantes de uma língua da Família linguística Tupi- Arikém, sendo, até onde se sabe, os últimos falantes dessa família, uma vez que os outros povos falantes desta família são classificados como extintos.

A par disso, privilegiamos estudar a escola localizada na aldeia Kyowã que, embora, tenha, em seu quadro docente, professores indígenas, sabe-se que, como toda escola nas terras indígenas no Estado de Rondônia28, possui em seu quadro

docente, professores não indígenas e currículos não indígenas; tratando-se, portanto, de uma criação, do ponto de vista indígena, exógena, formatada por não indígenas. Sendo assim, pode-se entendê-la como um lugar que emerge como fronteira, um ambiente de transição, um hibridismo, como a definição de espaço dada por Platão29

mas que, ao contrário do grego, pensamos não ser, a condição de espaço, ao menos, este específico, o escolar, de todo negativo, mas, outrossim, uma oportunidade de construção de novas relações sociais, pois que diferentes conhecimentos estão a se confrontar neste espaço social pelo qual e no qual signos e significados estão em permanente disputas, apresentando aspectos múltiplos, em particular quando se tratar de uma instituição que esteja em uma aldeia, cujos discentes sejam os indígenas.

Nestes termos, a escola em uma aldeia indígena em si já representa um desafio no que se refere a buscar compreendê-la, ainda mais quando encontra-se localizada em um estado da Região Amazônica cujas características expostas no parágrafo anterior potencializam-se, tendo em vista que a Amazônia, como bem define José de Souza Martins (MARTINS, 214, p. 252), seja a última fronteira do mundo, o último recanto da terra em que povos desconhecidos estavam na iminência de um contato catastrófico com as forças corrosivas e genocidas da chamada civilização ou, mais corretamente, da sociedade moderna.

história: a problemática dos lugares. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, n. 10. São Paulo, dez.-1993, pp. 21-22).

28 Cf. Informações obtidas na Coordenação de Educação Escolar Indígena, em fevereiro de 2019. 29 Desde a Antiguidade Clássica, o conceito de espaço aparece de modo negativo. Platão conceituou o

espaço como khôra; a força motriz de todo processo de nascimento. Algo difícil de definição, pois trata- se de um ser que ainda não é. ( Platão, 39; 43; 45; 51 e 133). Platão, ainda o definiu como sendo um

lócus híbrido, enquanto Demócrito o conceituou como ‘o não ser’. Já Bergson, na chamada modernidade,

o classificou como um conjunto de pontos que podem ser confundidos com o espaço de nossa experiência cotidiana, (citado por Ana Lúcia de Morais Viera, pag 47, 48)