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A língua e a linguagem

No documento O discurso de outrem em retextualizações (páginas 63-65)

3.1 A teoria enunciativa

3.1.3 A língua e a linguagem

Ao refletir sobre a linguagem, Benveniste (1976) parte de algumas considerações de Saussure a respeito do objeto de estudo do linguista, a linguagem. Em seu estudo, Saussure comenta sobre o erro em que se envolveu a linguística desde que estuda a linguagem como uma coisa, como um organismo vivo ou como matéria que se analisa por uma técnica instrumental ou, ainda, como uma criação livre e incessante da imaginação humana. Segundo Benveniste (1976), considerar a linguagem dessa maneira justificaria uma volta aos fundamentos para reconhecer que ela precisa ser descoberta e a nada pode ser comparada. Para Saussure:

É só o ponto de vista que cria o objeto de estudo da linguística. Todos os aspectos da linguagem que temos como dados são o resultado de operações lógicas que praticamos inconscientemente [...] não há um aspecto da linguagem que seja um dado fora dos outros e que se possa pôr acima dos outros como anterior e primordial. (SAUSSURE apud BENVENISTE, 1976, p. 44).

Benveniste (1976), em outra passagem, condena a noção de que a linguagem é apenas instrumento de comunicação por ser essa uma noção bastante simplista. Falar de instrumento é opor o homem à natureza. Vista dessa maneira, a linguagem poderia ser considerada como uma flecha ou uma roda, que não estão na natureza, são produções.

Para ele, a linguagem não foi criada pelo homem, ela está na natureza do homem. Não há como separá-lo da linguagem e nunca o veremos inventando-a. A linguagem é inerente ao ser humano e é adquirida no convívio social, condição que permite ao homem dela se utilizar para comunicar, é a linguagem que o institui como homem, que o define.

As considerações anteriores reforçam o fato de que “a língua é um evento humano, pois o instrumento de interação da vida mental e da vida cultural da linguagem é o próprio homem” (BENVENISTE, 1976, p.17). “É a língua que fornece o instrumento de um discurso no qual a personalidade do sujeito se liberta e se cria, atinge o outro e se faz reconhecer por ele” (op.cit. p.84). Do mesmo modo, ao se utilizar da configuração da linguagem através da escolha de palavras, o indivíduo constitui a condição do diálogo, possibilitado pelo fato de a língua ser uma estrutura socializada, um sistema comum a todos, que a palavra sujeita a fins individuais e intersubjetivos. Ao se apropriar da linguagem, o indivíduo lhe acrescenta um perfil novo e estritamente pessoal, viável, exclusivamente no interior, e por intermédio da linguagem (1976).

Na abordagem saussuriana, de acordo com Benveniste (1976), há um princípio de que a linguagem, como quer que se estude, é sempre um objeto duplo, formado de duas partes, cada uma das quais não tem valor a não ser pela outra, tais como a dualidade articulatória/acústica: do som e do sentido; do indivíduo e da sociedade; da língua e da fala; do material e do não substancial; do memorial (paradigmático) e do sintagmático; da identidade e da oposição, do sincrônico e do diacrônico etc., porém nenhum dos termos assim opostos têm valor por si mesmo, o valor está na oposição de um ao outro, não há nada na linguagem que possa residir em um termo, pois os símbolos linguísticos não têm relação direta com aquilo que devem designar. Para Benveniste, a linguagem é o que há de mais paradoxal no mundo.

A linguagem representa uma faculdade inerente à condição humana, a faculdade de simbolizar, representar o real por um signo e de compreender o signo como representante do real, de estabelecer uma relação de significação.

Para explicar o signo, Benveniste (1979), remete ao autor da teoria do signo linguístico, Saussure, para quem o signo é antes de tudo uma noção linguística, que mais largamente se estende a certas ordens de fatos humanos e sociais, cujo domínio compreende, além da língua, os sistemas homólogos ao da língua.

Quanto à função, tem o papel de representar, de tomar o lugar de outra coisa, evocando-a a título de substituto. Um signo só será visto como tal se associar uma imagem acústica, um significante, a um significado, conceito; essa característica, porém, é o que o torna arbitrário, segundo Saussure, pois a representação da coisa, o significante, não tem qualquer relação com o significado, nenhuma ligação natural na realidade. “O signo linguístico une não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica” (op.cit., p.53-4).

Ao analisar sobre a arbitrariedade do signo, Benveniste (1976) destaca uma contradição: Saussure esqueceu um terceiro termo, não compreendido na definição inicial do signo, a coisa em si, a substância. Por exemplo, um animal: boi, o nome é o significado; a imagem acústica do animal, o significante; mas o animal em si, como se designaria? “Eis aí, pois, a “coisa”, (grifo do autor) em princípio, expressamente excluída da definição do signo, e que nela se introduz por um desvio e aí se instala para sempre a contradição”. Benveniste defende que o conceito (significado) boi, utilizado por Saussure como exemplo, é idêntico, na consciência de quem conhece um boi, ao conjunto fônico (significante) boi. Isso se justifica por terem sido impressos juntos no espírito de quem reconhece um boi como sendo um boi. Essa é a razão pela qual se evocam mutuamente em qualquer circunstância, distinção

permitida graças à língua, pois nada é distinto, conforme Benveniste (1976), antes do aparecimento da língua, considerada, nesse caso, como forma, não como substância, objeto.

Quanto à arbitrariedade que questiona em Saussure, Benveniste (1976) a delimita ao signo. Refere-se ao fato de que cada signo se aplica a determinado elemento da realidade e não a outro. Questiona, porém, a criação de um problema quanto a isso, visto que não seria possível resolvê-lo. Para o falante há adequação completa entre a língua e a realidade, o signo encobre e comanda a realidade, ele é essa realidade. O domínio do arbitrário ficaria, assim, relegado para fora da compreensão do signo linguístico.

No documento O discurso de outrem em retextualizações (páginas 63-65)