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O princípio dialógico – Authier-Revuz (2004)

No documento O discurso de outrem em retextualizações (páginas 72-75)

3.2 A ORIENTAÇÃO DIALÓGICA DOS ENUNCIADOS

3.2.3 O princípio dialógico – Authier-Revuz (2004)

Authier-Revuz (2004), ao tratar do princípio da heterogeneidade da linguagem, comenta sobre o alcance dos trabalhos do círculo de Bakhtin, em especial, aos de Bakhtin ou Volochinov (1929). De acordo com ela, os referenciais teóricos do referido pesquisador são comuns em trabalhos de linguística, semiótica ou literatura, cuja difusão se deu a partir do texto de J. Kristeva de 1966: Le mot, le dialogue, le roman (Kristeva, 1969). Para a pesquisadora, tal fenômeno não surpreende, visto que a reflexão multiforme sobre o dialogismo não é propriamente linguística, mas semiótica e literária. É essa característica, segundo ela, “que permite que atravesse campos que dizem respeito – e nos quais se enfrentam – à análise do discurso, às teorias da enunciação, à pragmática etc.” (AUTHIER- REVUZ, 2004, p.24).

A reflexão sobre esses trabalhos, destaca Authier-Revuz (2004), não está isenta de contradições, devido ao fato de serem marcadas pela abundância de formulações, hesitações e,

também, por problemas de tradução. Até mesmo a apresentação sobre a compreensão dialógica da linguagem que nos propõe, não foge, segundo ela, às suas próprias indecisões ou hesitações. Enfatiza que a única precaução que pôde tomar:

[...] foi a de tentar não separar os elementos concernentes ao discurso, ao sentido, do „elo‟ que os une aos gêneros literários em Bakhtin, terreno – o dos gêneros – construído sobre propriedades da língua e do discurso, em que o pensamento de Bakhtin encontra as formulações talvez mais dificilmente „manipuláveis‟ em seu vigor (Authier-Revuz, 2004, p.24, grifos da autora).

Segundo Authier-Revuz (2004, p.24-5), é “através de conceitos como o de

plurilinguismo18

, fronteiras19

, polifonia, pontos de vista, pluriacentuação20

, bivocalidade, interação verbal, que se elaboram, em um mesmo movimento, análises historicamente

ancoradas de formas e gêneros literários e uma teoria da produção do discurso e do sentido. Conforme a autora, um paradigma atravessa de modo coerente, os diversos campos abordados no duplo conjunto das obras escritas durante o período do círculo. Ressalta que, embora se multipliquem diferentes pontos de vista nesses diversos textos, todos têm em comum o lugar dado ao outro.

[...] o lugar dado ao outro na perspectiva dialógica, mas um outro que não é nem o duplo de um frente a frente, nem mesmo o diferente, mas um outro que atravessa

constitutivamente o um. É o princípio fundador – ou que deveria ser reconhecido

como tal – da subjetividade, da crítica literária, das ciências humanas em geral etc.(AUTHIER-REVUZ, 2004, P.24)

Qualquer atividade de linguagem, para Bakhtin, conforme Authier-Revuz (2004), é um processo marcado pela inscrição do outro no processo enunciativo. O sujeito que enuncia situa o seu discurso em relação ao discurso de seu interlocutor, para o qual ajusta o seu dizer, dizer esse também situado, necessariamente, em outros discursos já constituídos histórico- socialmente. É a partir dessa concepção que Authier-Revuz (2004) fundamenta a tese da

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É a partir de Bakhtin que Authier-Revuz define conceitos como o de plurilinguismo, fronteiras, polifonia, pluriacentuação e bivocalidade. Conforme a autora (2004, p. 30), plurilinguismo, são pontos de vista específicos sobre o mundo. “A vida social vivaz e o devir histórico criam no interior de uma língua nacional, abstratamente única, diversos mundos concretos, perspectivas literárias, ideológicas e sociais.” (BAKHTIN, 1970 apud AUTHIER-REVUZ,2004).

19 Authier-Revuz (2004), explica esse termo a partir de Bakhtin (1981). Para a autora, estar na fronteira é uma

situação comum ao ser humano, visto que não possui território interior soberano; ao olhar dentro de si, olha nos olhos do outro ou através dos olhos do outro.

20 A pluriacentuação diz respeito ao sentido da palavra, não na polissemia, mas nos sentidos ideológicos

contraditórios conflitantes da palavra. A palavra é carregada de história, habitada por vários discursos, remete a outros contextos, ao inserir-se a um novo.

heterogeneidade constitutiva e da heterogeneidade mostrada da linguagem, conforme passagem citada pela autora:

O homem não possui território interior soberano, ele está inteiramente e sempre numa fronteira; olhando no interior de si, ele olha nos olhos do outro ou através dos olhos do outro, e isto, especificamente, segundo a autora, através das “palavras do outro”: tudo o que me toca vem a minha consciência – a começar por meu nome – desde o mundo exterior, passando pela boca dos outros (da mãe etc.) com sua entoação [...] (BAKHTIN, 1981 apud AUTHIER-REVUZ, 2004, p.25).

O discurso, nesse sentido, é tecido a partir do discurso do outro, que é o exterior constitutivo, o já dito sobre o qual qualquer discurso se constrói, o que permite dizer que o discurso não opera sobre a realidade das coisas, mas sobre outros discursos. De acordo com Authier-Revuz (2004, p.35-6),

[...] toda palavra remete a um contexto, ou a vários, nos quais viveu sua existência socialmente subjugada. Ela chega a seu próprio contexto, vinda de outro contexto, penetrada pelo sentido dado por outros. As palavras são carregadas, ocupadas, habitadas, atravessadas por discursos.

O dialogismo é, assim, condição de constituição do sentido, que se constrói no e pelo entrecruzamento dos discursos, não em torno de um núcleo de sentido comum, mas no dialogismo, na pluriacentuação da palavra. A linguagem é constitutivamente heterogênea. Não há, de acordo com Authier-Revuz (2004), possibilidade de comunicação sem a interdiscursividade, sem a palavra do outro, “somente o Adão mítico, abordando com sua palavra um mundo ainda não questionado poderia ter escapado à orientação dialógica inevitável com o já-dito da palavra do outro” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.25), em uma passagem em que faz alusão a Bakhtin quando esse tratava do princípio dialógico da linguagem.

Para a autora, o dialogismo do círculo de Bakhtin faz da interação com o discurso do outro a lei constitutiva de qualquer discurso que, em termos de interdiscursividade e de interlocução, inscrevem constitutivamente a presença das palavras do outros no discurso, sendo essa a condição para a realização da língua:

A língua só se realiza atravessada pelas variedades de discurso que se relativizam umas as outras em um jogo inevitável de fronteiras e de interferências; nenhuma palavra vem neutra “do dicionário”; são todas “habitadas” pelos discursos em que viveram “sua vida de palavras”, e o discurso se constitui, pois, por um

encaminhamento dialógico, feito de acordos, recusas, conflitos, compromissos...

pelo „meio‟ dos outros discursos, e entre esses outros discursos, aquele que o locutor empresta ao interlocutor determina, através de um parâmetro dialógico específico, o processo dialógico de conjunto. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.68. Grifos da autora).

Para explicar a heterogeneidade constitutiva, inerente à linguagem, Authier-Revuz (2004) recorre também à psicanálise, a partir da concepção de um sujeito do inconsciente, fundamentando-se em Lacan, que teve por base os estudos de Freud, para quem o sujeito é marcado pelas manifestações do inconsciente. A psicanálise “consiste em fazer ressurgir conflitos esquecidos, demandas recalcadas – eventualmente portadoras de sofrimentos – que agem, sem que o sujeito saiba, na sua vida presente” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 50). Assim, que por um olhar exterior à linguística, colocado sobre a linguagem, a fala, a psicanálise constitui o sujeito falante como um material e não um objeto próprio. A linguagem é a condição do inconsciente. Embora o sujeito, acredite ser fonte e origem de seu discurso, o sujeito reproduz o outro, ele só se institui pela linguagem, é efeito de linguagem, “é essencialmente representação, dependendo das formas de linguagem que ele enuncia e que na verdade o enuncia [...] o sujeito não é nada senão a ordem da linguagem na qual ele foi aculturado [...]”. (CLEMENT, 1975b apud AUTHIER REVUZ, 2004, p. 65).

Nessa perspectiva, ao depender da linguagem de que se utiliza, estruturada a partir dos discursos de outros, é que se pode falar em sujeito sujeitado ao desejo do outro, esse que muitas vezes deixa escapar pelos equívocos da língua o desejo inconsciente, trazendo pelo ato sua dimensão inconsciente. “O inconsciente é esta parte do discurso enquanto transindividual, que não está à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente [...] o inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um vazio ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado” (LACAN, 1953 apud AUTHIER-REVUZ, 2004, p.50)

Posição que contraria a imagem de um sujeito “pleno”, que seria a causa primeira e autônoma de uma palavra homogênea, sua posição é a de uma palavra “heterogênea que é o fato de ser um sujeito dividido, clivado, cindido, fendido (o que não significa nem desdobrado, nem compartimentado.” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.48).

No documento O discurso de outrem em retextualizações (páginas 72-75)