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A língua guineense nas produções literárias e culturais

CAPÍTULO II – APRESENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A

2.5 Crioulo Guineense, símbolo de identidade nacional

2.5.3 A língua guineense nas produções literárias e culturais

O fato da língua guineense estar inserida numa sociedade multilingue e de até hoje não ter havido uma regulamentação para sua escrita ocasiona uma grande insegurança quanto à maneira de grafá-la, sendo natural um certo número de variações e incertezas, a começar pela própria denominação:

crioulo, criol, kriol, kiriol são algumas variantes mais frequentes (AUGEL,

2006, p. 74, grifo do autor).

A pesquisadora brasileira Moema Parente Augel, referência para a literatura africana e em especial da Guiné-Bissau, morou entre 1992 e 1998 no país, onde deu grandes contribuições. No seu ensaio O desafio do escobro, a autora, procura entender a trajetória literária desse território, detectando o papel que os seus escritores assumem na significação ou ressignificação da auto-afirmação da identidade nacional. Augel faz um mapeamento dos primeiros jovens escritores guineenses a tomarem as iniciativas inovadoras após a independência em escrever na língua guineense.

Segundo Augel, os escritores Manuel e Fernando Júlio conquistaram o público leitor com as suas obras como: Tris N’kurbados32 e Ntori Palan, como também os dois cadernos de Fernando Júlio, o primeiro com título Lutu na polon di Bra33 e o segundo Panha ku mon. Para a autora, os temas refletem a realidade cotidiana e urbana guineense. Augel (2006, p. 81) também fala do Espaço crioulo, que foi um dos espaços que mais divulgou os poemas guineenses. Como ela mesma afirma “o Espaço crioulo, a mais extensa parte da segunda coletânea de poemas publicada no país: momentos primeiros da construção. Antologia dos jovens poetas (1978)”. A autora destaca que muitos dos poemas agrupados são de qualidade superior em relação a os de língua portuguesa, além de trazer a temática importante ligada à vida do povo. A própria escolha do vocabulário traz maior liberdade, leveza e criatividade.

Augel destaca que Félix Sigá (poesia) e Abdulai Sila (prosa) contribuíram com muita originalidade e vitalidade ao texto literário.

Segundo Augel, os poemas eram publicados em crioulo na revista guineense Tcholona. Ela lembra que uma das primeiras, e importantes ferramentas da divulgação da escrita literária guineense, depois da independência, foi a Editora Nimba, que editou contos da oralidade em crioulo, como, por exemplo, Lubu ku lebri ku mortu i utrus storya di Guiné-

32 Segundo Augel (2006), título que aqui poderia ser traduzido como “Os três malandros”. Ntori Palan, personagem criada na década de 1980, ainda muito conhecida.

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Guerra na Polon de Bra e me pega com a mão, os quadrinhos narram os acontecimentos da guerra civil 07de

Junho de 1998/99, onde as principais personagens são os chefes de dois partidos em conflito, apresentando todo o decorrer dessa guerra de forma caricatural.

Bissau,34 de Augusto pereira. De acordo com Augel, também foi oferecido ao público o livro Kebur,35 Barkafon36 di poesia na kriol (1996). Segundo a autora, a publicação dessa coleção contribuiu grandemente para que este espaço fosse cada vez mais ampliado e respeitado pelo público. Nas suas palavras Augel, (2006) afirma que:

Tony Tcheka escolheu para abrir seu primeiro livro individual (1996) uma

série de dez poemas que denominou “Kantu Kriol”. Odete Semedo decidiu-

se por uma publicação bilingue (1996a), com poemas em português e em crioulo. Nas suas obras posteriores (Histórias e passadas que ouvi contar, 2000a e 2000b; 2003a) e (No fundo do canto, 2003b), já procede de forma diferente, lançando mão com frequência do guineense, inserido na tessitura textual em português. Da mesma forma, Filinto de Barros, em Kikia Matcho (1997), respinga seu romance com uma centena de termos em crioulo, explicados no final em um glossário (p. 83, grifo do autor).

Segundo Augel, Semedo (1996), no seu poema bilingue com título na kal lingu ke n na skirbi nel – Em que língua escrever, destaca o que seria escrever na língua do colonizador e na língua da própria tradição cultural, em que as raízes estão ligadas às memórias. Assim, Semedo (2000, p. 19), no seu livro Histórias e passadas que ouvi contar, em dois volumes, cada um, contendo cinco contos, explica que “são histórias, algumas delas inspiradas em histórias tradicionais que muitos de nós tivemos o privilégio de ouvir em crianças; umas basearam-se em piadas, ditos ou provérbios escutados”. Assim, lembra Augel (2000):

Na área da chamada literatura oral de Guiné-Bissau, são dignos de destaque, sobretudo, os trabalhos de Teresa Montenegro e Carlos de Morais, publicaram, duas obras: N sta li n stala, um livro de adivinhas (1979), cujo

título significa literalmente “estou aqui e estou lá”, referência à presença

simultânea em mais de um lugar, sugerindo assim a ambiguidade e a multi- valência das adivinhações. No mesmo ano, os dois estudiosos lançaram

Djunbai, com a história do que se passara em Bolama. Djunbaié um termo do crioulo guineense que significa “convívio”, e, com esse título, os autores

quiseram fazer sobressair o caráter comunitário de interação social (AUGEL, 2000, p. 11, grifo do autor).

Para a autora, esses contos ajudam a interpretar o mundo a partir da realidade e da existência, conhecendo melhor as raízes da tradição. Da mesma forma, os contos contribui para a regularização da língua guineense elevando-a, a conquistar a língua escrita e fazendo-a

34 Lobo com Lebre com morte e outras estórias da Guiné-Bissau.

35 Segundo Augel (2006, p. 83) „o título Kebur, que também foi o título da primeira cartilha de alfabetização depois da independência, mas que depressa foi posta de lado, significa “colheita”‟.

36 Barkafon “espécie de mala de mão ou cesto, com tiracolo e normalmente com tampa, para transportar os artigos de uso pessoal e os seus mantimentos” (SCANTAMBURLO, 2002, p. 66).

sobressair como a legítima expressão literária. A série No bai37 – coleção de storias de animais, organizada e editada por Montenegro, em edição bilingue, em crioulo e em francês também contribuíram grandemente para a difusão desse espaço.

O fato de não haver uma regulamentação na escrita gerou consequências que podem ser notadas até hoje. Existe um conflito entre duas variantes de alfabeto em crioulo: alfabeto de origem bantu38 e de origem lexical portuguesa.39 Houve várias tentativas a respeito da unificação da escrita; em 1987 foi criada, pela direção geral de alfabetização do Ministério da Educação, uma “Proposta para unificação da escrita crioula”, com uma ortografia fonética.

Augel (2006, p. 55) lembra que “apesar das dúvidas a respeito da codificação da escrita, existe um número cada vez maior de publicações em guineense, entre elas, sobretudo, trabalhos envolvendo a tradição oral ou publicações de cunho religioso”. Para a autora, as igrejas têm investido muito na evangelização da palavra, por meio da língua guineense, através dos textos bíblicos, livros didáticos, Bíblia e entre outros, não só no crioulo, mas nas outras línguas étnicas, como Balanta, Papel, etc. Apesar da não regulamentação da escrita, a língua guineense vem conquistando o código de língua escrita. Como escreve Scantamburlo:

Paralelamente, o léxico está numa fase de enriquecimento: há uma capacidade de assumir e de moldar novos vocábulos que ajudam o Crioulo Guineense a ser o instrumento adequado de comunicação, frente às mudanças da vida moderna e às necessidades dos locutores com línguas maternas tão diferentes entre si (SCANTAMBURLO, 2013, p. 35-36).

Luigi Scantamburlo deu importante contribuição ao escrever o Dicionário40 guineense-português, dando a legitimação da língua guineense. Scantamburlo lembra que a gramática ainda está num processo de padronização.

Vale lembrar que tanto a língua crioula quanto algumas línguas étnicas41 têm escritas. Os alunos do Ensino Básico, não são alfabetizados nestas línguas, exceto no caso da alfabetização de jovens e adultos que é feita nas línguas maternas. Todas elas, com o mesmo estatuto de LM. Diante disso, nas turmas observadas percebemos como essas línguas interferem nos processos de alfabetização e letramento face à língua escrita (portuguesa).

37

Vamos.

38 Na origem bantu a letra C tem o som de TCH. Por exemplo, escreve-se a palavra CHUBA (chuva), de origem bantu, que é igual à palavra TCHUBA, de origem lexical portuguesa.

39 Na origem lexical portuguesa, por exemplo, escreve-se a palavra “TCHUBA” em vez de CHUBA. 40

“Infelizmente a grafia que tenho adotado não é uma grafia oficial” (p. 253).

41 Há Bíblias Sagradas escritas nas línguas étnicas, livros, manual do aluno e do professor, no processo de alfabetização de jovens e adultos.