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1 ROSALEEN MCDONAGH E RINGS NO CONTEXTO IRLANDÊS

1.2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL: OS TRAVELLERS

1.2.1 A língua Shelta

A língua Shelta, conforme anteriormente citado, também conhecida como Cant ou Gammon, é a língua falada pelo povo irlandês que pertence à comunidade dos Pavees ou Irish Traveller. Essa língua vem do gaélico e sofre influência do inglês. Segundo a organização voluntária de desenvolvimento comunitário que trabalha em parceria com Travellers e pessoas sedentárias, a língua é chamada de vários nomes que variam de acordo com a família a que o Traveller pertence.46 A língua Shelta é também conhecida pelos nomes de Sheldru, Shelru, Bog Latin, Minkyers’Tari, Minklers’Tari, Gammonch, Gammin, Tikers’Cant, Bawconi Jib, Hinditemeskri Jib, The Cant, Irish Traveller Cant, Cair. Segundo Hildo Couto (2002), esse

45 No texto de partida: “The most common reason offered by Travellers for arranged marriages was the avoidance of marriages with non-Travellers. Such marriages, I was told, were extremely risky because there was no way of knowing whether your partner would be suitable until it was too late. ”

46 Fonte: http://www.travellerheritage.ie/traveller-heritage-culture/language-cant-gammon-shelta/ Último acesso em 24 jan 2020.

idioma surgiu na Irlanda, porém, devido às migrações, atualmente é falada também nos Estados Unidos, Austrália, Grã-Bretanha, África do Sul, Nova Zelândia, Canadá e no Caribe.

Segundo Couto, a língua Shelta, termo mais usado pelos linguistas, antigamente apresentava uma escala originalmente da língua gaélica e uma segunda variação influenciada pela língua inglesa, todavia, atualmente só existe a variação do inglês. Para Maria Rieder (2015), a combinação da língua Shelta com a gramática irlandesa e com o inglês permite que os Travellers tenham conversas privadas em situações em que a sociedade sedentária esteja presente, como em situações de negócios ou comerciais. A preservação da língua Shelta também contribui para que os Travellers protejam sua identidade em relação à sociedade sedentária.

Anthony Grant (1994) menciona que o número exato de falantes da língua Shelta é desconhecido e que não se sabe quantas pessoas conhecem uma ou mais variedades do Shelta. Esse número pode estar entre 10 e 1.000 pessoas residentes na Irlanda, Irlanda do Norte, Grã-Bretanha e outros ainda espalhados através nas migrações como nos Estados Unidos, Austrália, Canadá e África do Sul. Nas palavras de Grant: “Nossa incerteza quanto às estimativas do número de falantes da língua destaca o fato principal sobre a função de Shelta: é uma língua secreta que não deve ser revelada aos buffers (não-Travellers) e cuja existência é uma questão de sigilo”47 (1994, p. 123, tradução nossa). A língua era desconhecida pela academia até ser descoberta em 1876 pelo escritor americano Charles Godfrey Leland. A partir disso, destaco algumas especificidades da língua Shelta relatadas por Grant em seu artigo “Shelta: the secret language of Irish Travellers viewed as a mixed language”.

No que se refere à sua estrutura e léxico, a língua pode ser caracterizada por um léxico irlandês dentro de uma estrutura gramatical inglesa. Um grande número de morfemas derivam do gaélico e todos seus os prefixos e grande parte dos sufixos estruturais derivam da língua inglesa. Assim, a maioria das palavras funcionais derivam do inglês, enquanto suas palavras léxicas (conteúdo) vêm do irlandês ou de desenvolvimentos internos da língua Shelta. A língua é incompreensível para falantes do irlandês gaélico, não possui palavras semelhantes e apenas quem conhece as palavras do Shelta são aqueles que podem entender este idioma. Ainda, o

47 No texto de partida: “Our uncertainty about estimates of the number of speakers of the language highlights the key fact about the function of Shelta: it is a secret language which is not meant to be revealted to the Buffers (non-travellers), and whose very existence is a matter for secrecy.”

Shelta tem como seus componentes principais: a estrutura do inglês, especialmente do Hiberno English,48 e as formas lexicais não inglesas que vieram do gaélico.

Em relação ao contexto geográfico e social da língua, as palavras de conteúdo são incompreensíveis para os falantes de língua inglesa e são de difícil entendimento para falantes do escocês gaélico e do irlandês gaélico. Grant menciona que devido ao pouco conhecimento da existência do Shelta, a língua não é estigmatizada embora os falantes o sejam.

Os falantes de Shelta aprendem a língua juntamente com o inglês desde muito cedo. Grant (1994) menciona que questões sobre primeira ou segunda língua não são essencialmente relevantes entre os falantes da língua. Em razão de motivos econômicos, todos que falam a língua são bilíngues e com competência no irlandês-gaélico (ou no escocês gaélico dependendo da região que o falante vive), ou no inglês como segunda língua, nunca se restringindo apenas ao Shelta. Nas palavras de Grant: “O Shelta foi adquirido como uma língua do lar, sigilo e intimidade, e como um marcador de identidade étnica, mas nunca foi adotado como a língua da comunidade monoglota” (1994, p.141, tradução nossa).49

O Shelta moderno é, portanto, o que o Grant define como uma “língua mista” de acordo com sua natureza, léxico e distribuição dos componentes inglês, irlandês e outras fontes. É uma língua da qual elementos linguísticos foram removidos e que passou por uma reformulação em sua gramática, do inglês para o irlandês, e do irlandês para outras línguas não identificadas.

Em Rings, a língua Shelta é mencionada em um dos monólogos de Norah quando a personagem relata que na escola a sua professora mencionou que havia lido sobre Shelta, conforme cito abaixo:

NORAH: Nós nunca podíamos nos comunicar. A professora chamou isso de mundo exterior, mas eu sabia que ela se referia ao mundo dos que eram de fora. Esse era o mundo dela, não o meu. Ela dizia que tinha lido um pouco sobre a língua Shelta, mas que não ‘tava convencida de que seria útil pra nós. (2010, p. 309)50

No exemplo acima é possível perceber uma discriminação por parte da professora de Norah em relação à língua Shelta. Na peça, também é possível encontrar palavras da língua

48 Também chamado de Irish English ou Inglês Irlandês, forma variada da língua inglesa falada na Irlanda. Para mais detalhes ver: https://www.thoughtco.com/irish-english-language-variety-1691084. Último acesso em 30 jan 2020.

49 No texto de partida: “Shelta was acquired as a language of home, secrecy and intimacy, and as the marker of ethnic identity, but it has never been adopted as the language of monoglot community.”

50 No texto de partida: “We’d never be able to communicate. The teacher called it the outside world but I knew she meant the Buffer world. That was her world not mine. She was saying that she’d read a little bit about Cant Pavee language, but she wasn’t convinced it would be any use to us.”

Shelta, que serão abordadas mais detalhadamente nos comentários da tradução no capítulo 3 deste trabalho. Cito como exemplo a palavras buffer, presente na peça de McDonagh. O termo é usado pelos Travellers para se referirem à população sedentária irlandesa ou a todos aqueles que não fazem parte da comunidade Travellers, ou seja, os “não-Travellers”.

A partir da minha explanação acerca dessa minoria étnica irlandesa presente na peça, no próximo tópico discuto Rings de uma forma mais detalhada e abordo questões de produção, como: elenco, direção, local e condições que a peça foi encenada, sistema de legenda oculta presente na encenação e história da peça.