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2 TRADUÇÃO E O TEATRO EM LIBRAS: ASPECTOS TEÓRICOS

2.2 A TEORIA DA TRADUÇÃO

2.2.3 A domesticação

Paulo Henriques Britto (2012), em seu livro A Tradução Literária, retoma as discussões iniciadas por Friedrich Schleiermacher sobre os diferentes métodos da tradução. Para Britto, “[t]rata-se de pesos relativos que devemos dar a duas forças que tendem a puxar o tradutor em direções opostas” (2012, p. 60). Britto cita que segundo Friedrich Schleiermacher, a tradutora opta ou por uma estratégia, ou por outra, e que as duas estratégias tradutórias formariam uma oposição. Trata-se de lados extremos. Contudo, Britto contesta o posicionamento de Schleiermacher, no sentido que é possível adotar posições intermediárias entre os dois extremos, e é nessa perspectiva teórica de Britto que me baseio em minha tradução ao optar pela domesticação de alguns termos do texto de partida.

Segundo Britto, na prática, a tradutora não segue apenas uma linha totalmente estrangeirizadora ou domesticadora. A tradutora geralmente adota uma posição intermediária entre dois extremos caracterizando o que o autor chama de “caminho intermediário”. Ele menciona que uma tradução radicalmente estrangeirizadora pode tornar o texto ilegível. Por outro lado, Britto aponta que o excesso de domesticação pode fazer com que o texto deixe de ser uma tradução. Nas palavras de Britto (2012, p. 62):

Pois uma tradução radicalmente estrangeirizadora, que mantivesse a sintaxe do idioma-fonte e cunhasse um termo novo cada vez que não fosse encontrada uma palavra que traduzisse com exatidão o termo original, provavelmente se tornaria ilegível, como essas traduções automáticas que fazemos através de sites de internet.

70 No texto de partida: “Translation is imitative yet transformative. It can and routinely does establish a semantic correspondence and a stylistic approximation to the source text. But these relations can never give back that text intact.”

Por outro lado, uma tradução que levasse a domesticação às últimas consequências também deixaria de ser uma tradução;

Para que o texto não se torne ilegível ou fuja do propósito de tradução parece-me necessário seguir um grau intermediário entre essas duas estratégias tradutórias. Britto destaca três exemplos de fatores que determinam o grau de estrangeirização e domesticação:

1) A tradutora tende a adotar uma tradução estrangeirizadora quanto maior for o prestígio do autor a ser traduzido: nesse caso, o reconhecimento crítico de um escritor implica na valorização da linguagem e estilo que o singulariza. Através disso, a tradutora irá procurar reproduzir na língua de chegada as características do texto de partida e irá aproximar-se mais da língua de partida);

2) O público-alvo influenciará na política adotada pela tradutora: quando a tradução se destina a um público com menos sofisticação intelectual ou a um público infanto-juvenil, a tradutora deverá adotar estratégias domesticadoras para não afastar o leitor. Segundo Britto, caso o leitor encontre uma dificuldade excessiva na leitura, ele/a poderá abandonar a leitura;

3) O meio de divulgação da tradução sofrerá influência na estratégia tradutória: um conto poderá ser estrangeirizador se, por exemplo, a tradução for feita para uma edição de livro que contém introdução, vida, obra do autor, notas e bibliografia. Esse mesmo conto poderá ser domesticador se a tradução for publicada para uma revista de grande circulação, sem espaço para notas.

Britto segue o posicionamento de que não há critérios que aconselhem a adoção de uma domesticação ou estrangeirização na tradução. O caminho intermediário entre as duas estratégias terá de ser adotado pela tradutora, após um exame cuidadoso de diferentes fatores que são relevantes para o texto. Por não restringir a minha tradução de Rings a um público específico, optei por seguir o “meio-termo” indicado por Britto. O público poderá ter contato com uma cultura que não é sua ao mesmo tempo que também se identifica com os personagens. A minha busca por uma mediação entre o grau de domesticação e estrangeirização também é uma estratégia para abranger o público sem conhecimento do universo irlandês dos Travellers. Para Britto, por mais estrangeirizante que seja um texto, ele passará por uma operação radical de reescrita em que as palavras são substituídas por outras de um idioma e normas sintáticas diferentes. Ele menciona que o maior risco que a tradutora corre é retirar a estranheza do que era para ser estranho, ou seja, quando a estranheza de um texto é um recurso utilizado propositalmente pelo autor. Segundo Britto (2012, p. 69):

Assim, por exemplo, não basta que o tradutor conheça o sentido das palavras do original: é preciso também que ele saiba reconhecer quais as palavras consideradas pelos nativos como comuns, não marcadas, palavras que eram de esperar naquele contexto específico, e quais as que são inesperadas, rebuscadas, até mesmo impróprias no contexto – pois a impropriedade e o erro são recursos de os escritores lançam mão com frequência.

É importante, portanto, avaliar quais são as marcas específicas da autora e quais características estão relacionadas à natureza do idioma. Rings é escrita em língua inglesa, porém apresenta palavras da língua shelta, uma língua falada e compreendida apenas entre os Travellers. McDonagh, dramaturga Traveller, optou pela inserção dessas palavras em sua peça mesmo não sendo comuns para público falante da língua inglesa. Entendo que essa seja uma escolha da dramaturga para marcar as características dos personagens, assim como enfatizar a cultura Traveller, o que possivelmente causa estranhamento num público irlandês, ou anglófono de um modo geral, não-Traveller. Em minha tradução, optei pela manutenção de alguns termos shelta com o objetivo de fazer a manutenção dessa estranheza, o que será discutido em maior detalhe no capítulo 3.

O próximo aspecto mencionado por Britto se refere à expressão “efeito verossimilhança”. Trata-se de traduzir diálogos de modo que soem mais “naturais”. Para Britto, as marcas devem criar o efeito ilusório de que o texto é uma fala de uma pessoa no português brasileiro, porém não devem evocar nenhuma região do Brasil. Todavia, Britto menciona que não há um português genérico e que muitas vezes não há um termo genérico no Brasil que seja comum em todas as variantes linguísticas de todos os Estados. O autor sugere trabalhar com regionalismos da região Sudeste por ser um uso de linguagem mais “neutro”, conhecido em televisões, cinemas e rádio. Discordo do posicionamento do autor, no sentindo de que alguns termos do Sudeste causam estranhamento para mim, tradutora que tem como base o linguajar nordestino. Optei, na medida do possível, pelo uso de expressões já utilizadas em livros e peças teatrais que são conhecidas na maioria das regiões do Brasil. Contudo, estou ciente de que minha tradução poderá sofrer alterações de acordo com o local em que a peça for encenada.

Britto cita alguns exemplos de marcas de oralidade que caracterizam uma linguagem coloquial. Cito aqui as marcas que utilizei na minha tradução de Rings:

1. Palavras e expressões gramaticais restritas à fala: marcas de oralidade que só aparecem na escrita formal, como, por exemplo, o uso da partícula expletiva aí, usada para desencadear um discurso;

2. Próclise em vez de ênclise: trata-se da anteposição do pronome clítico ao verbo. Nesse caso, Britto aconselha que a tradutora leia em voz alta a passagem para averiguar qual a forma mais usada;

3. O uso do pronome reto na posição de objeto: marca de oralidade utilizada cotidianamente por grande parte dos falantes do português brasileiro;

4. Uso não redundante de pronome sujeito: essa marca de oralidade busca evitar o uso do pronome sujeito quando ele é redundante. Britto enfatiza que a repetição excessiva pode incomodar o leitor e que efeito de oralidade diverge da transcrição da fala oral;

Outras formas de marcas de oralidade citadas por Britto incluem: a) a substituição do verbo “haver”, no sentido existencial, por “ter”; b) a substituição do pretérito-mais-que-perfeito e o futuro do presente por formas analíticas (auxiliar juntamente com um verbo principal); c) uso de eventuais termos de gírias encontrados por coloquialismos já estabelecidos no português brasileiro; e d) a utilização de formas contraídas de preposição com artigo.