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2 TRADUÇÃO E O TEATRO EM LIBRAS: ASPECTOS TEÓRICOS

2.1 O TEATRO EM LÍNGUA DE SINAIS

2.1.1 A Libras na esfera artística

Rings é uma peça bilíngue que aqui foi traduzida como Luvanéis. Como minha tradução de Rings foi feita com a intenção de uma futura concretização cênica, apresento uma breve discussão sobre a língua de sinais em seu contexto artístico teatral.

Idealmente, a montagem teatral de Rings no contexto brasileiro deve ser pensada de forma bilíngue, ou seja, deve acontecer em Libras e em português. Libras para a personagem Norah, que aparecerá sinalizando e contracenando no palco, e português brasileiro nos monólogos do personagem do pai. Paralelamente, a peça deverá ter a presença de um intérprete de Libras, tanto para os pares linguísticos português-libras quanto libras-português abrangendo o público surdo e ouvinte.

Siobhán Rocks (2011) menciona que os surdos possuem uma identidade cultural e linguística distinta e que o aprendizado dos surdos é através de marcadores visuais. A língua de sinais não é feita apenas com as mãos. Funções como tom, humor e perguntas são transmitidas pela expressão facial simultaneamente à expressão manual. Essas características da língua de sinais são significativas ao pensar em um contexto teatral. Na língua de sinais, as expressões faciais são intrínsecas à língua, pois transmitem as emoções do indivíduo que quer se comunicar dentro de um determinado contexto. Elas nem sempre estão ligadas ao que o indivíduo está sentindo, mas ao que o indivíduo busca expressar. Em uma comunicação não verbal, a exclusão

64 Adoto a sigla “Libras” e não “LIBRAS”, pois a escrita correta para “Língua Brasileira de Sinais” é Libras. A própria lei que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais utiliza a forma “Libras”, sem acento. Informações disponíveis em: https://www.libras.com.br/libras-ou-libras Último acesso em 30 nov. 2020.

das expressões poderia comprometer a intenção comunicativa, diferentemente de uma língua oral, como o português. Em uma encenação apenas com a língua portuguesa, uma comunicação não verbal poderia ser substituída através de iluminação ou efeitos sonoros. Em uma peça bilíngue que envolve o português e a língua de sinais, as referências extratextuais devem ser pensadas de forma que conecte as duas línguas.

Na encenação de Rings, a peça utilizou o sistema de legenda oculta, conforme já exposto no capítulo anterior. Todavia, forneço mais uma opção para uma eventual montagem da peça no Brasil: a inclusão do intérprete de língua de sinais como mais uma opção a possíveis diretores. O sistema de legenda oculta não parece ser comum nos teatros brasileiros, e ainda é válido pensar nas questões orçamentárias para a inclusão dessa tecnologia. Além disso, com a presença de um intérprete, a peça também pode ser encenada em ambientes abertos e espaços públicos.

Rocks menciona que o teatro surdo é um campo relativamente recente, assim como a interpretação da língua de sinais. Ele reflete que é necessário que os intérpretes obtenham acesso ao texto semanas antes da encenação e que estejam presentes nos ensaios. Isso se deve ao fato de que é essencial a compreensão do diálogo da cena por parte do intérprete para que na sua interpretação o público surdo siga a trama, identifique temas e personagens. O intérprete deve estar visível no palco durante toda a encenação e sua interpretação deve corresponder ao que acontece no momento da cena.

No teatro, idealmente, o intérprete deve estar preparado a todo tipo de situação que possa ocorrer, como erros, improvisos e modificações espontâneas. Rocks menciona ainda que, embora a interpretação da língua de sinais no teatro possa parecer um evento mediado pelos intérpretes, ela não pode ser tratada como tal, pois a linguagem teatral e as interações não são as que ocorrem nas situações cotidianas de interpretação. De acordo com Rocks (2011, p. 75, tradução nossa):

O diálogo dramático é uma representação do discurso espontâneo. Não apenas o que os personagens dizem, mas também como eles participam do diálogo - seus padrões de interação, turnos e assim por diante - todos são significantes que fornecem informações para o público. E há uma característica adicional: o diálogo dramático não se destina aos interativos do drama, mas a terceiros - o espectador.65

65 No texto de partida: “Dramatic dialogue is a representation of spontaneous discourse. Not only what the characters say, but also how they participate in the dialogue – their interactional patterns, turn taking and so forth – all are signifiers providing information for the audience. And there is an additional feature: dramatic dialogue is not meant for the interactants in the drama, but for a third party – the spectator”.

No teatro, o público surdo tem dois focos de visualização: o diálogo sinalizado pelo intérprete e a performance. Rocks reforça que o intérprete deve ter acesso à gravação da performance para que o mesmo possa tomar decisões com bases nas interações de tradução, interpretação e performance. A interpretação precisa estar cronometrada para corresponder à declaração dos atores e também para fornecer tempo para o público testemunhar as atividades que são marcantes no palco. Rocks aponta ainda que o público surdo não vê o palco da mesma forma que um público ouvinte. Cabe ao intérprete analisar a cena em seu contexto e decidir se é o elemento falado ou visual que irá carregar mais significado para o público. Isso nos remete à tradução através de legendagem discutida no capítulo anterior. Na legendagem, o público pode não dar conta de ler as legendas ao mesmo tempo que a encenação ocorre, e a tradutora deverá decidir quantos caracteres deverão ser transmitidos e em que momento (por isso existem limites para o número de caracteres). Nos dois casos, o público deve ter tempo para visualizar o que está acontecendo no palco ao mesmo tempo que visualiza a tradução.

Celina Nair Xavier Neta e Ângela Russo (2019, p. 127) apresentam o seguinte posicionamento sobre a tradução e interpretação em língua de sinais na esfera artística:

Apesar de o trabalho de tradução e interpretação em língua de sinais no contexto artístico-cultural tenha crescido no cenário brasileiro, as formas de atuações podem ser bastante diversas, a depender das propostas dos espetáculos e das iniciativas das próprias companhias teatrais. Os caminhos metodológicos encontrados por tradutores e intérpretes para a realização dos trabalhos também são igualmente diversificados. Há de se considerar que registros sobre essas práticas ainda são tímidos na área, mesmo eles sendo bastante urgentes e fundamentais de serem compartilhados e publicados.

A tradução em línguas de sinais na esfera teatral é um campo relativamente recente, mas que atualmente vem ganhando destaque. Carolina Fomin (2020), em seu artigo “A interpretação para Libras no teatro: do preparo ao posicionamento em cena”, aponta algumas considerações teórico-práticas relacionadas à atividade específica de interpretação para Libras no teatro. De acordo com Fomin, na esfera artística-cultural, os intérpretes atuam não apenas no setor educativo, como também em espetáculos teatrais, contação de histórias, shows de música, espetáculos de dança, entre outros.

Natália Schleder Rigo (2018) aponta que é recomendável que o intérprete comece a preparar seu texto a ser sinalizado assim que possível a partir do texto escrito. Rigo menciona que isso não pode ser funcional, pois o texto pode sofrer inúmeras alterações ao ser executado ao vivo. Segundo Rigo, é necessário saber como os atores irão interpretar o texto da peça e como os atores costumam se portar em suas performances como a velocidade de suas falas, o

tom emocional que querem transmitir em seus diálogos, detalhes de cada personagem e como estes se relacionam tanto com os demais personagens quanto com o público-alvo, a iluminação utilizada na cena, entre outros fatores. Os intérpretes precisam estudar e analisar a intenção real do texto, pois os textos teatrais podem conter informações implícitas.

Fomin menciona que no espetáculo teatral que envolve a língua de sinais, lidamos com a tradução interlingual e intermodal, pois a tradução do texto para ser interpretado em cena inclui duas línguas de modalidades diferentes, respectivamente português e Libras, sendo a primeira de modalidade oral-auditiva (Português) e a segunda de modalidade gestual-visual (Libras). Para Fomin (2020, p. 98):

Entendemos, todavia, a atividade do TILS no espetáculo como interpretativa, pois mesmo que o texto de partida da tradução seja um texto escrito em que há possibilidades de ensaios e de se “prever” (em certa medida) o que acontecerá em cena, no momento em que a cena acontece, o que será enunciado, o que será interpretado (no sentido dramatúrgico da palavra) pelos atores e recebido pelos interlocutores espectadores (surdos ou ouvintes) depende do momento em que acontece, e o texto de chegada é dado simultânea e visualmente em cena, e está sujeito às improvisações dos atores, interações com o público e imprevisibilidades da simultaneidade da interpretação.

É possível observar que na língua de sinais, assim como na tradução para palco de textos escritos, diversos fatores devem ser considerados além das transferências linguísticas. De acordo com Fomin, a interpretação deve levar em conta a cena como um todo que dialoga e se insere em uma cadeia discursiva. Ao interpretarem nos espetáculos teatrais, o intérprete mobiliza não apenas o texto escrito, mas tudo que envolve o teatro.

Fomin cita Nancy Frishberg (1990) ao mencionar que nos espetáculos teatrais a quantidade de intérpretes envolvidos em uma produção de um espetáculo teatral dependerá de algumas variáveis tais como: duração de espetáculo, quantidade de personagens e atores em cena, limites orçamentários, tamanho da casa de espetáculos, ou se a plateia terá como maioria surdos, ouvintes, ou se é uma plateia mista. O intérprete também pode atuar no palco ou nos bastidores. Se o público espectador for composto por surdos e os artistas não sinalizam ou não se comunicam diretamente com o público, o intérprete terá sua função no palco. Caso o elenco seja composto por surdos e o público for ouvinte, os intérpretes atuam na voz. No caso de Rings, o elenco é composto por uma personagem surda e um ouvinte e, em uma eventual montagem, a plateia poderá ser mista. Assim sendo, os intérpretes deverão atuar através da sinalização e da vocalização com um elenco é misto e sendo a peça feita para um público misto.

A partir das discussões do teatro para surdos e da língua de sinais na esfera artística, na próxima seção discuto as teorias da tradução que nortearam este trabalho nas decisões e nos problemas encontrados no decorrer do processo tradutório.