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CAPÍTULO III CONCEITOS E CONCEPÇÕES PARA A ANÁLISE DA FORMAÇÃO

4.1. A LDBEN/96 e o Sistema Pedagógico baseado nas Competências

A experiência do Sistema Pedagógico baseado em Competências é apresentada em vários países com diferentes resultados e ênfases. Tal diferenciação demonstra que certas experiências são influenciadas pelo contexto histórico-cultural de cada país.

Num país em desenvolvimento, como o Brasil, que traz a sua história educacional marcada pela subordinação aos projetos de desenvolvimento econômico e pela exclusão social e cultural, o Sistema de Competências adquire caminhos peculiares.

As bases do discurso do sistema de competência são competitividade, o desempenho e a descentralização orientando a necessidade de recursos humanos, resgatando aspectos centrais da teoria do capital humano para o desenvolvimento. Esta peculiaridade aumenta a dependência do ensino ao mercado de trabalho, principalmente frente ao crescimento do desemprego e da instabilidade dada pelo novo contexto globalizado e que se caracteriza com mais ênfase nos países como o Brasil.

Em palestra proferida aos representantes do Sistema Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), o relator das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional; Francisco Aparecido Cordão, explicou que:

O compromisso da educação profissional é essencialmente com o desenvolvimento de competências profissionais, com crescente grau de autonomia intelectual, em condições de dar respostas aos novos desafios da vida profissional. Esse é o grande compromisso de qualquer escola técnica. O compromisso central da escola técnica e que orienta toda a reforma da educação profissional no Brasil gira em torno da noção de competência profissional. (CORDÃO, 2003, p.5).

Tais palavras resumem a importância que o sistema pedagógico baseado em competências passa a ter para a educação profissional no Brasil. Este Sistema foi instituído com a LDBEN/964, através da regulamentação dos artigos referentes à

4 Antes da sua adequação no Brasil, o Sistema de Competências já vinha sendo utilizado para

educação profissional no Decreto 2208/97, no qual as competências são colocadas como necessárias para a formulação do currículo; e, mais especificamente, com a instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional (Parecer CNE/CEB no16/99 e pela Resolução CNE/CEB no 04/99).

Neste contexto o que determina a “nova” formação apropriada ao chamado cidadão trabalhador, está vinculada à construção de novos valores, conhecimentos e habilidades, conforme se observa na definição de competência na Resolução CNE/CEB n. 04/99:

Art. 6o Entende- se por competência profissional a capacidade de

mobilizar, articular e colocar em ação valores, conhecimentos e habilidades necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho. (Resolução CNE/CEB n. 04/99).

Desta forma, observa-se que a necessidade deste contexto consiste em uma formação que objetiva ir além do treinamento operacional para a execução técnica (e mecanicista) de uma profissão. Tal objetivo determina a preocupação em desenvolver capacidades como o pensar, o refletir, o agir, o comunicar, o integrar, entre outras, que dependem de atitudes muito mais subjetivas. Por isso que, a partir do Sistema de Competências, é pressuposto uma formação humana mais complexa. Este pressuposto é afirmado, definitivamente, a partir da instituição de seus princípios balizadores: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser, expressos no parecer no16/99 do CNE/CEB, aprovado em 5/10/99 através da estética da sensibilidade, da política da igualdade e da ética da identidade, nos quais se enfatiza uma formação humana ou personalista:

A estética da sensibilidade, campo propício ao aprender a conhecer (ênfase a ser dada na educação básica) e ao aprender a fazer (ênfase apropriada a educação profissional), permitiria estimular a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado, a afetividade, o gosto pelo belo e pelo fazer bem feito, facilitando a constituição de identidade capazes de suportar a inquietação, conviver com o incerto, o imprevisível e o diferente. A política da igualdade, plano do aprender a conviver, teria como ponto de partida o reconhecimento dos direitos humanos e o exercício dos direitos e deveres de cidadania, sendo expressa por condutas de participação e solidariedade, respeito e senso de responsabilidade pelo outro e

Ramos (2001), o sistema de competências começou a ser pensado como alternativa para o sistema educacional do Brasil desde 1975 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio do Centro Interamericano de Investigação e Documentação sobre Formação Profissional.

pelo público. Por fim, a ética da identidade é o principio do aprender a ser, pelo reconhecimento da identidade própria e reconhecimento do outro. A educação com base na ética da identidade teria como fim a autonomia, como condição indispensável para a realização de um projeto próprio de vida. (RAMOS, 2001, p.126).

Para Kuenzer (2000), o Sistema Pedagógico baseado em Competências poderia representar a aproximação entre a formação humana e a profissional (que conduz a um estreitamento da relação entre educação e trabalho), para superar, assim, a dicotomia entre a racionalidade técnica e a formação de características subjetivas. Desta maneira, a formação do profissional implicaria no desenvolvimento de características individuais, como iniciativa, capacidade de comunicar-se ou de enfrentar problemas, ultrapassar as dificuldades encontradas durante o desenvolvimento do trabalho e, na medida em que essas características humanas façam parte do conhecimento e do desenvolvimento do trabalho, a importância do simples “fazer” para um “fazer” que exija reflexão, discernimento teórico.

A prática [o fazer], portanto, compreendida não como mera atividade, mas como enfrentamento de eventos, não se configura mais como simples fazer resultante do desenvolvimento de habilidades psicofísicas; ao contrário, se aproxima do conceito de práxis, posto que depende cada vez mais de conhecimento teórico. (KUENZER, 2004; p.85).

Isto levaria a um maior estreitamento da relação teoria-prática na educação dos trabalhadores. No momento em que a prática, em seu fazer tenha significativa importância para a formação do trabalhador, entenderia que ela é tão relevante quanto o resultado do conhecimento, ela é o próprio processo.

No entanto, esta possibilidade tem sustentação porque há um entendimento de competência que, segundo Kuenzer (2004), desloca o referencial da qualificação do emprego para a qualificação do indivíduo. A autora salienta que este deslocamento conceitual leva a educação profissional a centrar seus esforços no desenvolvimento de comportamentos transversais supostamente comuns a todos os postos de trabalho (como ter iniciativa ou comunicar-se), com uma maior ênfase ao desenvolvimento comportamental do indivíduo. Segundo a autora, isto não significa que o desenvolvimento destes comportamentos não é importante. A questão está em desenvolver tais comportamentos para que o indivíduo/trabalhador desenvolva, a partir destes comportamentos, conhecimentos transversais, ou seja,

conhecimentos mais complexos para o “saber” do trabalho.

Segundo Ramos (2001), o discurso que apresenta a ênfase ao desenvolvimento comportamental do indivíduo, tentando recorrer a um humanismo abstrato na educação, está de acordo com a compreensão que se tem da sociedade nesta nova fase do desenvolvimento do capital. Ela é caracterizada pela desindustrialização, pela nova estruturação produtiva e pela precarização do trabalho. Tomando como base, as mudanças exigidas por uma fase de inovação tecnológica e padrões de desenvolvimento de países membros do núcleo orgânico da divisão mundial do trabalho são:

[...] construir novos valores apropriados ao processo de adaptação do cidadão-trabalhador a instabilidade da vida, a individualização do trabalho e das formas de sobrevivência, características da sociedade pós-industrial. A função educativa começa a ser marcada também por uma função individualizante e adaptativa da sociedade as incertezas da contemporaneidade.” (RAMOS, 2001, p.131)

A estas incertezas junta-se o distanciamento do Estado em muitas das suas obrigações.

O perigo de pensar desta maneira é disseminar um ensino que ignore a visão crítica: tudo parece instituído, cabendo ao indivíduo reconhecer e aceitar suas limitações, tornando-o responsável pela “escolha” de sua trajetória profissional e de formação profissional. Em outras palavras, a mudança do foco do ensino para o indivíduo elimina o entendimento de que as diferenças e limitações para o mundo do trabalho capitalista são constituídas socialmente.

O MEC/SEMTEC justifica a reforma da educação profissional pela necessidade deste ensino adquirir organização própria e, assim, oferecer referências formativas aos jovens e adultos interessados em enfrentar os novos desafios do mundo produtivo. Admitindo que a entrada e o avanço de novas tecnologias microeletrônicas, da robótica e de novas formas de organização do trabalho, contrapõem-se à rigidez excessiva do taylorismo/fordismo, o MEC difundiu a ideia de que o modelo preconizado na Reforma atenderia aos anseios do mercado produtivo, que e exige uma formação que desenvolva a pessoa para lidar com o mundo das novas tecnologias.

Ministro da Educação e do Desporto - Paulo Renato. O País necessita de um sistema técnico amplo diversificado e ágil para oferecer alternativas de profissionalização aos nossos jovens que sejam concretas, atraentes e consequentes (BRASIL, 1997, p.08).

À primeira vista, o que originou a Reforma foi a necessidade de oferecer um sistema ágil que dispusesse de um leque maior de opções para que os jovens se profissionalizassem. Ainda sob o entendimento do ex-ministro, a nova configuração do País, incorporado ao mundo globalizado e competitivo, foi o fator determinante para a insurgência de uma reforma em todo o sistema educacional, conforme expressa o mesmo documento:

A nova configuração, imposta pela ordem econômica mundial, impõe ao nosso sistema educacional e, em particular, à educação Profissional, urgentes mudanças para que possamos acompanhar os avanços científicos e tecnológicos. Nesse sentido a implantação da Reforma da Educação profissional torna-se urgente e necessária (BRASIL, 1997, p.08).

O MEC/SEMTEC passaram a justificar e propagar a Reforma da Educação Profissional a partir de uma suposta emergência de um novo cenário econômico e produtivo, caracterizado pela novidade tecnológica, flexibilidade, baseado na racionalização sistêmica, com seu marco inicial no final da década de 1980 e início dos anos 1990. Numa demonstração de sintonia, o Conselho Nacional de Educação apresenta o mesmo entendimento em relação à Reforma, mediante o Parecer n° 17/97, referente às diretrizes para a ed ucação profissional. Por este parecer, a educação assume importância vital para que as sociedades atinjam pleno desenvolvimento:

A educação profissional, por seu turno, não substitui a educação básica e sim a complementa. A valorização desta, entretanto, não significa a redução da importância daquela. Ao contrário, uma educação profissional de qualidade, respaldada em educação básica de qualidade, constitui a chave do êxito de sociedades desenvolvidas. (BRASIL, 2001, p.85).

A justificativa da Reforma passou pelo discurso do ajuste às mudanças velozes da suposta “sociedade do conhecimento”, onde o volume de informações é constantemente superado, exigindo a redefinição na formação escolar: aquisição de conhecimentos básicos e desenvolvimento da capacidade de utilizar diferentes

tecnologias. Reclamava-se também a capacidade de se buscar informações, analisá-las e selecioná-las, em vez de simplesmente memorizá-las.

Nas duas últimas décadas, tem ocorrido uma crescente inserção de ciência e tecnologia nas políticas públicas de educação. Na visão do MEC/SEMTEC, as tecnologias assumem o papel de estabelecer quebra de paradigmas nos processos de ensino-aprendizagem, por isso, a introdução de novas tecnologias na escola.

O discurso do MEC/SEMTEC, na justificativa da Reforma, tanto da Educação Profissional quanto do Ensino Médio, apoiou-se nos pressupostos da sociedade tecnológica, na qual as informações ganharam velocidade cada vez maior, levando novos parâmetros para as pessoas ante o conhecimento constantemente em superação.

Essas ideias repercutem no âmbito educacional, funcionando como elemento desencorajador da pedagogia que valorizava o acúmulo de conhecimento. Nesse sentido, o MEC/SEMTEC reitera a noção de que a formação do aluno deve ter como alvo principal a aquisição de conhecimentos básicos, a preparação científica e a capacidade de utilizar as diferentes tecnologias relativas às áreas de atuação (BRASIL, 1999, p.14).

Encontra-se presente, na justificativa para a reforma da educação profissional, a alusão de que é a revolução da informática que promove mudanças efetivas no conhecimento. Referindo-se a uma “nova sociedade”, O MEC/SEMTEC entende que surge uma sociedade do conhecimento em decorrência da revolução tecnológica que promove mudanças na produção e na área da informação.

Assim, centra-se o discurso na necessidade de preparar as pessoas para um mundo em mutação. O saber é entendido pelo MEC/SEMTEC como mera informação, e, por isso, torna-se menos requerido do que saber mobilizar competências. Neste sentido, importa essa capacidade de utilizar a informação em situações imprevisíveis que exijam discernimento e decisão. Sob essa perspectiva, nos documentos do MEC/SEMTEC tem sido dada ênfase à pedagogia das competências como metodologia capaz de conferir a capacidade de aprender a aprender do educando visando ao "desempenho eficiente e eficaz das atividades requeridas pela natureza do trabalho" (BRASIL, 2001).

A Reforma da Educação Profissional (Decreto 2.208/97 e suas regulamentações) possui um cunho claramente mercadológico/produtivista, carregando a marca da dualidade do ensino que tem caracterizado o tipo de educação existente no Brasil conforme assinalam autores como Frigotto (1997) e Kuenzer (2000).

A intenção é desenvolver competências para potencializar o indivíduo ao ingresso no mercado de trabalho competitivo. Desse modo, o enfoque adotado pela Reforma centra-se num novo perfil do cidadão como ser flexível, sendo-lhe atribuída toda e qualquer responsabilidade pela sua desqualificação profissional.

Nesta perspectiva, o modelo da reforma estabelecida pelo então Decreto 2.208/97 contribui para estabelecer o divórcio entre o saber e o fazer, ao determinar a separação da formação geral e técnica, o que representa um certo antagonismo em relação ao perfil de formação que se delineia em função das mudanças no mundo produtivo.

A Reforma instituída pelo Decreto 2.208/97 carrega o ônus do aprofundamento da separação do fazer e do pensar. Além disso, assenta-se no aspecto da racionalização ou redução dos gastos de produção a partir da minimização dos dispêndios com a produção e reprodução da força de trabalho.

Conforme já explicitado, a formação profissional técnica separa-se do ensino médio. Trata-se, portanto de uma mudança profunda, afetando a sua estrutura anterior vinculada, imbricada ao ensino médio.