4. CONSTITUIÇÃO DO CORPUS E ANÁLISE QUANTITATIVA 97
5.1 Hipertrofia do eu: indivíduo moderno e sintomática burguesa 116
5.1.3 A leitura de literatura e os desejos burgueses 126
Madame de Staël, mesmo do jovem Lamartine”, deixara sua marca nas cadeiras consulares e cabeças de esfinge, e nas harpas, urnas e miríades de pequenos objetos, ornamentos e relíquias (PEREIRA, 2007, p. 166).
Bovarismo, aqui, sendo visto de relance pelos símbolos adotados pelo escritor, alude ao romantismo e ao escapismo que compõem atmosferas (e estratégias) de obras românticas e da vivência burguesa. Ele aparece, em alusões indiretas, quase ofuscado por elementos do presente que ainda permitem ver o passado. Um dos exemplos é retomar a obra Paulo e Virgínia através da ambientação de uma rua onde outrora o autor da obra teria morado e onde teria vivido a alta burguesia.
5.1.3 A leitura de literatura e os desejos burgueses
Adicionando-se mais um traço às temáticas burguesas – sua relação com a leitura de folhetins145 –, em A ficção camiliana: a escrita em cena, de Moizeis Sobreira de Sousa (2009), estudam-se dois romances camilianos, Amor de Perdição (1862) e Onde Está a Felicidade? (1856), enfatizando-se a recepção das obras do autor Camilo Castelo Branco. Segundo Sousa, as obras representam o mundo burguês. Em uma passagem, o bovarismo é evocado para caracterizar um personagem: Guilherme do Amaral. Para Sousa, ele tenta encarnar o impossível papel de herói romanesco, conflitando com a realidade: “[...] a imaginação de Guilherme compõe um conjunto de imagens, derivadas do referencial literário que lhe era apresentado na suas leituras [sic], a partir do qual busca orientar sua prática social” (SOUSA, 2009, p. 108). Sousa acrescenta que “esse arranjo envolve, em última análise, tanto a conjuntura social do universo burguês quanto o processo de constituição do romance [...]” (p. 108). Tal obra, como tantas outras (inclusive a flaubertiana), trata da relação entre ser humano e ficção. O personagem se vê “bovarizado” – sendo este um termo de Sousa – também ante uma mulher vulgar, que era, por ele, vista como ideal – ou seja, ser bovárico e tomar as coisas por outras
145 Sobre a leitura de folhetins já tratada de algumas maneiras (tanto aqui quanto evocando Rancière), discutir-se-á
mais no próximo capítulo, quando se tratará da relação com a leitura de textos literários – em épocas atuais sob algumas perspectivas vistas neste capítulo e ainda outras mais características do olhar contemporâneo. As referências deste capítulo, no entanto, foram reunidas por trazerem uma discussão que não se centra na relação com a leitura, mas em sua associação com os anseios de estetização da vida, próprios à burguesia e à modernidade.
que não são, como é o caso de iludir-se com a dita “mulher vulgar” para a moralidade da época. A realidade deturpada configura um dos elementos de evasão de Guilherme – no entanto, segundo o estudioso, diferentemente do que ocorre com Emma, o efeito aqui é cômico. Cabe relembrar que a diferenciação entre o bovárico trágico e o cômico já estava presente nos escritos gaultierianos.
No estudo de Sousa, as afirmações são baseadas em Hossne e em uma citação de Meyer146 para definir bovarismo: “[...] necessidade [...] segundo a qual toda atividade, ao tornar-se consciente da sua própria ação, tende a deformá-la no mesmo instante em que a incorpora ao conhecimento” (MEYER, apud SOUSA, 2009, p. 108). Perceba-se que a definição utilizada – escrita no início da década de 1950 e mais próxima do pensamento gaultieriano – sugere um olhar psicanalítico para o fenômeno do bovarismo, porém as justificativas dadas pelo estudioso e a própria utilização do texto de Hossne como base acabam por, na verdade, entender bovarismo como uma atividade imaginativa, gerada e incitada pela leitura de romances românticos – interpretação discutida na primeira parte desta tese. Basta, por ora, para apaziguar a questão, compreender que essa postura diante da leitura já foi vista tanto como uma tendência psicológica dos indivíduos (cedendo, portanto, à interpretação voltada para o domínio do psicopatológico) quanto uma reação de muitos – situados no seio das discussões sobre o homem moderno e o universo burguês – a uma dada situação sociológica, estética e política. De qualquer maneira, parece não ser fácil separar dois aspectos tão imbricados.
146 A obra de referência é Preto e branco (1956), de Augusto Meyer, jornalista, ensaísta e poeta. Trata-se de primeira
obra da coleção de publicações do Instituto Nacional do Livro, intitulada “Biblioteca de Divulgação Cultural”. Isso se dá, segundo José Renato Santos Pereira, na apresentação da obra, como iniciativa de “maior difusão do livro entre camadas estudiosas da população” (p. 7). Entre os diversos artigos está “Bovarismo: a confidência de um filósofo” em que Meyer reflete sobre o bovarismo a partir da curiosidade que o termo pode incitar nos leitores. A primeira impressão é que o termo representaria “uma dessas fragatas embandeiradas, para encher o olho do leitor incauto. [...] toma ares de falsa profundidade, de esperteza [...]” (MEYER, 1956, p. 128). Mayer desconsidera a necessidade de leitura da obra de Gaultier para indicar a leitura de Palante – La philosophie du bovarysme – que, segundo ele, resumiria as significações do termo na crítica literária, ou ainda suas aplicações “psicológica, individual ou social”. Meyer define o bovarismo, se considerado psicologicamente: “representa muitas vezes o esforço para transformar em estado consciente as obsessões de certos estados da sensibilidade” (p. 129). No sentido filosófico, para ele, trata-se da definição ofertada pelo estudo de Sousa no corpo do texto citada. Resta mencionar que Meyer considera as preocupações do filósofo expostas em sua filosofia do bovarismo como resultantes de estados, não revelados claramente, que remontam à sua infância. Tal conclusão é alcançada a partir de uma “confidência de Gaultier”: “Vivi então esse problema, tão intensa e misteriosamente [...] que ainda hesitaria em divulgá-lo hoje [...]. (GAULTIER, apud MEYER, 1956, p. 131). Meyer conclui: “[...] o desejo absorvente de perfeição moral cedia [...] diante da certeza de não conseguir [...] realizá-lo integralmente [...]. concebê-lo [...] já era deturpá-lo” (p. 131). Em conclusão o ensaísta relaciona o bovarismo ao “mal romântico da imaginação antecipada à ação” e caracteriza Gaultier como “filósofo de calças curtas e ideias compridas” (p. 132).
Insere-se nesse contexto o estudo em que Alessandra Maria Moreira Gimenez apresenta definições de um bovarismo tratado pelo campo da psicopatologia, embora traga à baila elementos contextuais relativos ao leitor de romances acometido por essas influências. Em sua tese Machado de Assis e a crítica à escola de seu tempo: uma ideia de formação nos contos “Um cão de lata ao rabo”, “O programa” e “Conto de escola” (2014), ao tratar do personagem Romualdo, do conto machadiano “O programa”, Gimenez traça aspectos dessa persona: queria ser ministro e, para isso, seguiu os passos de seu mestre Pitada, almejante a professor, que injetava em seu projeto doses de romantismo, extraídas de suas leituras de romance. Com base nessas colocações, Gimenez chama a atenção para a ironia (o bovarismo de Romualdo) que aí se instala, pela distância entre o sucesso garantido das histórias dos romances e as possibilidades do personagem. Para clarificar, a pesquisadora se baseia no artigo “Madame Bovary e a realidade paralela”, publicado na Revista Mente e Cérebro, escrito por Sebastian Dieguez, neuropsicólogo147. O bovarismo seria um conjunto de estados de espírito estudado largamente pela psicanálise. Assim, é caracterizado como
um desdobramento da vida consciente, entre imaginário e realidade”, [...] ora no mundo real, ora [nas] fantasias. [cujos] sintomas [são] “o
falseamento exagerado da concepção de si e a ausência de senso crítico em relação a um erro cometido” [...]. De acordo com
o criador de Madame Bovary, Flaubert, “o bovarismo patológico não passa da falta de capacidade de se adaptar à realidade”. [...] Outras características do bovarismo são a superestimação de si mesmo, erro de julgamento, a capacidade de imaginar a si mesmo melhor do que se é (e não apenas diferente) (GIMENEZ, 2014, p. 76, grifo nosso).
147 Tal artigo em seu subtítulo sugere que Emma lança mão de sonhos e imagens românticos para encobrir uma vida
repleta de insatisfações, fato que pode ter decorrido das crises de epilepsia e das alucinações que, segundo Dieguez, fizeram Flaubert refletir sobre a “força da fantasia” – vê-se aqui a conhecida associação Flaubert-Emma. O conceito de bovarismo, após exposto com citações de Gaultier e ter sido considerado por Dieguez o motivo do interesse pela vida “banal” de uma mulher comum, é caracterizado como um “funcionamento psicológico, típico da espécie humana”. O autor do artigo separa duas formas de bovarismo, sendo uma “normal” e uma “patológica” (“bovarismo clínico”) sendo esta o “falseamento exagerado da concepção de si” e a “ausência de senso crítico”. Para ele, “a intensidade imaginativa” é um lado positivo do bovarismo, enquanto que “os sintomas” que dele decorrem são o lado negativo. Em sua escrita, o articulista aproxima, de Emma, Flaubert e suas crises. Aponta que Flaubert critica, sobretudo, o tédio e a estupidez. Ao longo do artigo, cita nomes como paranoia, neurose, histeria etc., concluindo que os estudos sobre esses temas eram numerosos na época, o que o leva a crer que Gustave Flaubert teria estudado sobre histeria, por exemplo. Mais à frente no texto, conceitua: “Podemos considerar que o bovarismo consiste em um desdobramento da vida consciente, entre imaginário e realidade”. E acrescenta:
Flaubert estava, portanto, familiarizado com a ideia de que existem dois caminhos no pensamento humano: o das sensações ordinárias, da realidade, e o de um universo produzido como se fosse um paralelo do outro. [...] Emma nunca teve consciência do único talento que compartilhava com Flaubert – sua sensibilidade exacerbada. [...] Flaubert, ao contrário, tinha profunda consciência dessa dor – conseguiu catalisá-la
em sua obra. (DIEGUEZ, 2010, disponível em
http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/emma_bovary_e_a_realidade_paralel a.html)
Nota-se a intepretação corrente do bovarismo tal como no século XIX: uma patologia relativa à capacidade imaginativa. Separa-se aparentemente sem dificuldades o que pode ser tido como negativo e o que se considera positivo, como se essas duas instâncias fossem estanques. Expressões como “falseamento”, “falta de senso crítico”, “capacidade de imaginar a si mesmo melhor do que se é” trazem o tom do discurso médico que vê a “negatividade” da patologia bovárica. É imprescindível realçar aporias e deslocamentos que, assim como se viu em Gaultier e em alguns de seus críticos, Dieguez, fonte de pesquisa de Gimenez, opera: 1) Emma, personagem, e Flaubert, ser real e autor, são aproximados em suas supostas problemáticas psicológicas;; 2) há a crença do interesse flaubertiano na histeria com base em interpretações de sua obra;; e 3) a afirmação “De acordo com o criador de Madame Bovary, Flaubert, ‘o bovarismo patológico não passa da falta de capacidade de se adaptar à realidade’”, que atribui a Flaubert escritos de Jules de Gaultier e dos críticos do bovarismo. É sabido que o escritor de Madame Bovary, embora tenha usado o termo bovarista, jamais teorizou sobre bovarismo, menos ainda no campo da psicopatologia.
5.1.4 Contextos da modernidade
Ariane Andrade Fabreti, na dissertação da área de estudos literários intitulada Traumas e paixões da modernidade: o materialismo lacaniano lê Madame Bovary (2013), com base em Lacan e nas “premissas do Materialismo Lacaniano advindas das teorias do filósofo esloveno Slavoj Žižek” (p. 7), discute “impasses da modernidade no romance [...]. A partir da observação deste período no contexto da Europa no século XIX pelo filósofo estadunidense Marshall Berman e pelo sociólogo britânico Anthony Giddens” (FABRETI, 2013, p. 7). Faz-se o percurso histórico do período para, enfim, debruçar-se sobre as personagens flaubertianas e dar visibilidade a “problemas gerados pela artificialização das relações sociais e pela violência cotidiana” (p. 7). O contexto histórico mencionado ainda no primeiro capítulo desta tese é desenvolvido por Fabreti em sua dissertação. É nessa ocasião