4. CONSTITUIÇÃO DO CORPUS E ANÁLISE QUANTITATIVA 97
4.3 Apresentação dos dados: análise quantitativa 109
composição do corpus, proceder-se-á a análise das ocorrências do termo bovarismo, a fim de se depreenderem as acepções e os domínios de significado associados. Acrescenta-se que as plataformas foram consultadas no período de fevereiro a junho de 2016. A apresentação dessas análises se dará de duas formas. A primeira delas, ainda neste capítulo, no próximo subtópico, será de natureza quantitativa. Nesse caso, sem que se priorizem plataformas virtuais, regiões do país e natureza do texto, as menções serão localizadas e sintetizadas de acordo com os campos do saber de onde partem e, sobretudo, com os sentidos gerais atribuídos ao bovarismo – identificados nesta pesquisa como domínios temáticos ou ainda grandes troncos de significação encontrados nas pesquisas brasileiras. Os dados e as palavras- chave associadas ao bovarismo serão sintetizados e apresentados. Posteriormente, no que se entende como análise qualitativa, a ser realizada nos últimos capítulos desta tese, as acepções serão demonstradas e comentadas, em paralelo com outros estudos. Nesse caso, a apresentação de citações e os comentários de textos selecionados permitirão que, com fluidez, seja desenvolvida uma exposição sobre cada grande tronco significativo – sendo que cada um deles abarca apropriações similares entre si.
4.3 Apresentação dos dados: análise quantitativa
As análises feitas resultaram em um quadro resumido de informações que dá a ver as características para as quais se busca chamar a atenção nos textos analisados. Além disso, as acepções, resultantes de apropriações feitas por estudiosos brasileiros e extraídas do corpus, foram organizadas com base em frases e caracterizações que formavam horizontes de ideias e significações (ou ainda confluências discursivas) que se tocavam, permitindo as conclusões abaixo expostas. Assim, vale uma leitura inicial desse sumo de informações antes do mergulho nos textos em si. Segue abaixo o quadro com informações básicas sobre os textos e, em seguida, os três grandes domínios (ou troncos) interpretativos encontrados a serem desenvolvidos nos capítulos seguintes seguidos de expressões, unidades discursivas recorrentes:
QUADRO 2 – Quantitativo de textos por área de estudo e tronco significativo
1) Psicologia, modernidade e histericização feminina: delírio de tornar-se
outro;; deficit emocional e narcísico;; migração para imaginário;; fuga da realidade;; querer estar em outro lugar ou contexto;; desejo de ser diferente;; faculdade mental de conceber-se outro;; ilusões;; personalidades que giram em falso pela dificuldade de rebaixarem-se;; supervalorização de si;; hipertrofia do eu;; falseamento;; abismo entre sonho e realidade;; busca por encarnar heróis romanescos;; ausência de senso crítico;; deformação da realidade;; soberba;; capacidade de imaginar-se melhor;; angústia de pertencer a uma sociedade dividida;; frustração feminina;; histeria;; afetação feminina;; desejo de viver amores intensos decorrente de intoxicação literária;; mulher que devaneia e idealiza;; personalidade imaginativa;; tendência emotiva;; enquadre fantasmático necessário para desmistificar ilusões;; simulacro.
2) Contemporaneidades, leitores e cultura de massa: identificação;;
primeiro estado de leitor;; leitor crédulo;; deixar-se afetar pela arte;; ideais
Tipo do Texto Quantitativo Campo do Conhecimento Conceituação
Dissertações de
Mestrado 47
Áreas de estudo Quantitativo Domínio Significativo Quantitativo
Letras** 57 1) Psicologia, modernidade e histericização feminina 27 Educação 12 2) Contemporaneidades,
leitores e cultura de massa 23 História*** 7 Sociologia 4 3) Identidade Nacional 42 Teses de Doutorado 45 Comunicação**** 4
Psicologia 2 *O quantitativo total de textos não equivale ao total de 96 textos, apresentado no quadro
anterior, pois quatro textos não foram classificados dentro dos três domínios significativos por motivos a serem explanados a
seguir.
**A área de Letras do quadro representa os seguintes segmentos: Teoria Literária e Literatura Comparada;; Língua e Literatura espanhola;; Teoria da Literatura;; Literatura Brasileira;; Literatura em Língua Portuguesa;; Estudos de Língua, Literatura e Tradução em Francês;; Literatura Espanhola e Hispano-
Americana.
***Encontrada tanto como História ou História Social.
**** Encontram-se, na área de Comunicação, nomes de programas diferenciados: Comunicação e Expressão;; Comunicação e
Artes;; ou ainda Ciências da Comunicação. Estudos de Linguagem 2 Arquitetura e Urbanismo 1 Total 92* Direito 1 Antropologia Social 1 Arte 1
com os quais se mede a vida cotidiana;; literaturificação do mundo;; uso da literatura;; leitura por gozo imediato;; devaneio ao ler;; leitura imaginarizada;; condicionar vida real a mundos inventados;; devaneio necessário a uma educação da subjetividade;; participar da leitura;; memória incorporada e criada pela leitura;; falsa memória que a literatura pode produzir;; mimetização;; roubo de histórias alheias;; construção de memória e modelagem da subjetividade operadas pela cultura de massa;; subjetividade produzida por enredos e imagens e desejos oferecidos;; fomentação de sonhos de consumo e anseios de paixão pelos meios de comunicação massivos;; necessidade de ilusão;; má consciência de uma época;; simulação/dissimulação;; insatisfação;; chance de expressão do que não se é.
3) Identidade Nacional Brasileira: ideias fora de hora e lugar: mal-estar
da brasilidade;; busca do nacional;; mera cópia / cópia banal / desejo de cópia;; servilismo intelectual;; imitação;; importação;; artificialismo;; ilusão;; busca por temas do outro;; afrancesamento/francesismo;; embelezamento;; elitização;; afetação;; anseio progressista;; provincianismo;; posição periférica;; ostentação bajuladora;; ávido novo-riquismo;; nacionalismo ingênuo;; aspirações distantes do permitido pelas condições sociais;; cultura importada;; ornamentação;; apagamento de diferenças;; empréstimos;; devaneio nacional provinciano;; subordinação à hegemonia intelectual de países avançados;; deslocamento;; desidentificação;; inquietação;; desenraizamento;; desterramento;; mal-estar intelectual brasileiro;; inclinação à teatralização da vida.
Antes de comentários sobre o que se estudará nos capítulos seguintes, há que clarificar que quatro dos 96 textos encontrados para o corpus não puderam ser classificados nos três domínios temáticos observados, por isso não foram contabilizados na tabela acima que traz a análise quantitativa mais detalhada dos textos. Tais textos130 apenas traziam o termo bovarismo em
130 O primeiro estudo em questão é a tese O estudo pós-graduado no Brasil: problemas e perspectivas (2011), de
Maria Janaína Foggetti, em que o termo aparece apenas na referência à dissertação O bovarismo de Jules de
Gaultier, na ficção e na vida: fontes e vertentes (2008) que antecede os estudos desta tese. O segundo e o terceiro – A condição feminina no matrimônio delineada pela ficção (2009), de Rita Mara Netto de Moraes, e Nora, Capitu:
encontros e desencontros (2008), de Barbara Macedo Soares de Araújo –, outras duas teses, trazem o termo ao fim do texto, ao referenciarem a obra de Andrea Saad Hossne. O quarto deles – a dissertação Das memórias às veredas: Revisa USP – letras, cenas e sons (2008), de Lúcia de Oliveira Almeida – traz o termo ao reproduzir ao fim do estudo um dos artigos publicados na Revista da Universidade de São Paulo. O artigo citado é “O bovarismo e o realismo em xeque?” (1994), do professor de literatura francesa Philippe Willemart, em que se questionam dois clichês existentes
uma referência bibliográfica ou ainda citando uma tese ou dissertação, sem apropriarem-se de fato do conceito ao longo das ideias desenvolvidas.
Feitas essas colocações, pode-se afirmar que os três troncos temáticos sintetizados não deixam de se cruzar, ainda que se delimitem. Os dois primeiros dizem respeito, respectivamente, a acepções associadas à ambiência do século XIX e a temáticas contemporâneas. O primeiro liga-se a uma visão psicologizante e/ou mesmo negativa do bovarismo, que, entendido de várias formas que se complementam, dizem muito sobre questões que povoaram mentes a respeito da constituição da personalidade, da individualidade e da intimidade – temas amplamente de discussão sobre o modo de vida burguês. Isso implica, inclusive, a posição da mulher diante da sociedade, do homem e da leitura. Esta última, inclusive, era considerada nesse horizonte interpretativo como uma atividade perigosa e fútil às mulheres ou a ditos espíritos mais frágeis. O segundo trata também de temáticas relacionadas à leitura e dos efeitos que a leitura de textos ficcionais causa nos indivíduos;; no entanto, o modo de pensar a atitude bovárica associa-se mais aos novos olhares e estudos lançados sobre a subjetividade. Além disso, incorporam-se aí elementos contemporâneos, como, por exemplo, o advento da internet e de outros meios de comunicação massivos.
O terceiro domínio diz respeito ao uso do termo de maneira divergente, ainda que guarde relações com as formas de compreensão anteriores. Trata-se de buscar caracterizar o comportamento dos brasileiros e sua relação com a identidade nacional. Nesse sentido, os pesquisadores brasileiros alinham-se mais a pensadores de outros países – Haiti, México, Argentina etc. – que outrora foram colonizados, diferenciando-se um pouco e refletindo sobre a própria realidade do país em analogia com o conceito e com o pensamento de estudiosos de países que foram colonizadores. O que se verá adiante são os três domínios significativos explanados.
em relação da Flaubert: 1) o bovarismo como caracterização de um comportamento feminino que se resumiria a fugir da realidade através do sonho;; e 2) a filiação de Flaubert ao realismo. Willemart aponta que Flaubert cultiva em sua obra o ódio ao real. Isso porque o real seria apenas uma “referência universalmente garantida de uma ilusão coletiva” (p. 137), a partir da qual se medem todas as outras ficções. Assim, se a vida é ficção, “todas as manifestações de vida são fictícias e dependem de acordos para se tornarem reais” (p. 137), o que permite questionar a filiação realista de Flaubert e a clássica definição de bovarismo.
5. PSICOLOGIA, MODERNIDADE E HISTERICIZAÇÃO
FEMININA
[...] Flaubert, sem enunciar claramente que tivesse consciência disso, articulou em Emma Bovary dois modos de subjetividade: o da mulher e o do burguês.
Maria Rita Kehl131
Os textos selecionados para compor este primeiro domínio mostram apropriações da noção de bovarismo como elemento relativo ao truncamento de possibilidades que Emma Bovary reúne, por representar o sujeito moderno, o sujeito burguês e, ainda, a mulher – especificamente a oitocentista. Este domínio temático representa a ambiência do século XIX e da primeira metade do século XX e as extensões de significado adquiridas a partir dela. Relaciona-se às ramificações de apropriações feitas dos primeiros textos gaultierianos, pelo campo da psicopatologia, e do texto flaubertiano, pelo “bovarismo das letras”. Essas acepções se estendem de personagens – flaubertianos ou não – para seres reais132.
Os textos deste capítulo citam o bovarismo para definir tendências psicológicas de certos indivíduos (a exemplo do “bovarismo individual”), grupos (como o “bovarismo de coletividades”) ou, ainda, seres humanos em geral (“bovarismo metafísico”). Essas significações não são exclusividades de textos acadêmicos, sendo muito recorrentes em outros gêneros discursivos, como dicionários, notícias jornalísticas etc. Tal fenômeno, disperso, não é uma especificidade das comunidades interpretativas brasileiras. Nesse sentido, serão vistas, imbricadas umas nas outras, formas de entender o bovarismo resultantes de tensões descritas na primeira parte desta tese.
Embora algumas teses e dissertações deste domínio tratem de temas e épocas mais atuais, o bovarismo, nas definições reportadas, surge atrelado às maneiras de fazer crítica delineadas no contexto finissecular de onde despontou. Após definirem o bovarismo, os textos podem tanto reforçar sua carga significativa – mantendo visões já existentes no século XIX – como
131 A frase é da obra Deslocamentos do feminino (2008).
132 Não se aterá novamente a essa discussão, no entanto cabe novamente alertar que alguns dos estudos evocados
também farão – de maneira semelhante a Gaultier, em suas aporias, criticadas por Jayot na primeira parte desta tese, subtópico 3.1 intitulado “Gaultier: influências, tensões e críticas às obras” – um intercâmbio entre ficção e realidade. Faz-se quase uma análise psicológica de personagens com elementos usado na clínica de seres reais.
combatê-las. Da diversidade de acepções, compreendem-se: caracterizações tomadas como psíquicas do indivíduo ou de todos seres humanos (criadores de ilusões, que fogem à realidade, que deliram etc.);; especificidades de seres influenciados pela ética e pela estética românticas (sendo Romantismo entendido como movimento artístico-literário oitocentista);; posturas assumidas por indivíduos, como efeito colateral, gerado, sobretudo, por conflitos – de classe e de personalidade – e sentimento de deslocamento que envolve o sujeito moderno e suas inquietações;; e caracterizações do gênero feminino – sua condição psíquica e/ou social, seja representada em personagens, seja em seres humanos reais, no século XIX ou não. Em certos casos, duas ou mais dessas acepções se cruzam.
Sobre a síntese de informações deste capítulo, veja-se o quadro abaixo:
QUADRO 3: Domínio temático 1
É importante ressalvar que, no corpus, embora se façam contextualizações históricas propícias, há textos que atribuem a característica bovárica exclusivamente a mulheres (ou mais comum nelas);; ou seja, bovarismo é entendido como um traço feminino devidamente ou não analisado em confluência com elementos sociológicos. Preferiu-se, então, subdividir este tronco de significações. Em um primeiro subtópico, serão examinadas as apropriações relativas a caracterizações gerais dos seres. No segundo subtópico, serão analisadas as ocorrências atreladas às questões do gênero feminino, mesmo que ainda se retomem discussões (como a do indivíduo moderno ou a da leitura) realizadas no primeiro tópico.
DOMÍNIO TEMÁTICO 1
Quantitativo de textos
Dissertações Teses
14 13
Total 27 Números de páginas Entre 84 e 603 Período de publicações Entre 1996 e 2015
Áreas de pesquisa
Letras, Estudos da Linguagem, Educação, Comunicação e
Essas questões revelam que o impasse referente às diferenças entre homens e mulheres, gerado antes da gênese do bovarismo e até mesmo das discussões acerca de Madame Bovary, permanece e não foi apaziguado. Há quem se questione em que medida e sob quais circunstâncias o bovarismo pode ser masculino ou feminino, como se notou nas palavras do estudioso Yvan Leclerc (2002), ainda que tenha havido estudos de crítica que reconhecessem o bovarismo em personagens masculinos (até flaubertianos, mesmo em estudos gaultierianos) ou ainda que o bovarismo tenha sido estudado, em analogias, entre grupos, nações etc. O fato é que Emma suscita discussões sobre dilemas humanos por representar elementos para tal, todavia serve às discussões sobre condições femininas, por representar uma mulher. Não se pode esquecer ainda sua inserção histórico-social. Não há a pretensão de responder ou dirimir tais questionamentos;; pelo contrário: quer- se dar visibilidade às possíveis facetas do conceito na crítica brasileira. Principia-se, portanto, analisando as ocorrências do bovarismo visto no contexto da psicologia e dos conflitos do homem moderno.
5.1 Hipertrofia do eu: indivíduo moderno e sintomática burguesa
Parte dos textos selecionados associam o bovarismo ao sentido psicopatológico e psicanalítico, o que sugere interesse na constituição da personalidade (emergente na época de cunhagem do bovarismo), nos desejos humanos e nos aspectos da inserção social dos indivíduos. É possível haver o deslizamento do sentido psíquico para o moralizante, vista a tradição, herdada do século XIX, de associar comportamentos moralmente questionáveis a problemas genéticos, médicos ou psicológicos. A crítica dos brasileiros, porém, pouco se centra no aspecto puramente médico do bovarismo, dando, quando é o caso, preferência para uma abordagem psicanalítica. Trata-se de 18 textos do total de 27 deste capítulo. Esse conjunto apresenta um bom panorama dessas apropriações do bovarismo.
Pode-se iniciar por um texto que enxerga o bovarismo dentro do campo da psicologia. Isso se dá porque o interesse central da pesquisa não é, de fato, a