4. CONSTITUIÇÃO DO CORPUS E ANÁLISE QUANTITATIVA 97
4.1 Direcionamentos teóricos para formação do corpus 98
como o conceito) do bovarismo, quais teóricos sobre ele se debruçaram e que domínios do conhecimento se apropriaram dele conferindo significações diferentes, é possível iniciar o trabalho sobre as apropriações124 feitas desse conceito na comunidade acadêmica brasileira, uma vez terem essas duas comunidades muitas conexões. Isso se dá, certamente, pela influência, direta ou indireta, das discussões francesas sobre quaisquer comunidades interpretativas que venham a se apropriar do bovarismo.
4.1 Direcionamentos teóricos para formação do corpus
Como o objetivo da tese é investigar os usos da noção de bovarismo na produção de pesquisadores brasileiros, será necessário observar a ocorrência do termo em trabalhos acadêmicos, mesmo que sejam poucos os desenvolvimentos teóricos específicos sobre o conceito. É importante notar, de modo amplo, essas apropriações do conceito, a fim de se observar seu alcance no âmbito da crítica brasileira e como opera nesse meio. As buscas pela constituição de um corpus de análise trarão à tona a dispersão do conceito nos diversos domínios do saber. Tal fato se explica pela enormidade de compreensões do bovarismo, resultante das apropriações distintas feitas por comunidades interpretativas já na França e, também, em outros países, como é o caso do Brasil. Assim, coexiste uma pluralidade de acepções a mapear e examinar.
Para se constituir um corpus de textos acadêmicos que se utilizam da noção, recorremos à noção de arquivo, tal como define Foucault:
O arquivo é de início a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como com acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se recomponham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas [...] (FOUCAULT, 1987, p. 149).
124 Confirma-se aqui mais uma vez o embasamento deste trabalho nos estudos de Roger Chartier. No caso, o termo
apropriação, já discutido na primeira parte do estudo, é central para desenvolvermos o estudo do conceito do bovarismo na comunidade interpretativa brasileira.
Segundo Miranda e Navarro, a partir de Foucault, o arquivo
se insere em um feixe de relações resultando em formações discursivas ao serem capturadas em sua dispersão;; ainda que paradoxalmente, elas formem uma regularidade possibilitando a emergência de um arquivo sobre o qual o analista se debruça para identificar e descrever [...] a existência acumulada de discursos (MIRANDA & NAVARRO, 2014, p. 85).
Será possível, então, tendo como ponto central menções ao bovarismo, obter uma cartografia das acepções produzidas do conceito do bovarismo no escopo da crítica brasileira, considerando-se que entender suas relações e os caminhos tomados por ela é tarefa deste trabalho. Buscar-se-á estudar não a origem ou o traço histórico bem delineado e contínuo para o conceito, mas sim “começos relativos, instaurações e transformações” (MIRANDA & NAVARRO, 2014, p. 73), realizando-se um levantamento de enunciados que podem ser postos em relação quando se observa o uso do conceito de bovarismo e os discursos que o atravessam.
Ao lançar as hipóteses sobre como se podem agrupar discursos em uma formação discursiva, Foucault nos previne sobre a convivência de heterogeneidades. No caso deste estudo, assume-se que se lida com subconjuntos de formações discursivas de distintos domínios – literatura, história, arquitetura, artes, filosofia etc. – que lançam mão de alguma acepção do bovarismo. Assim, o arquivo em si já traz características de heterogeneidade. O foco do olhar analítico, nesta tese, na maioria das vezes trata de menções, por vezes ligeiras, a um conceito que, por seu trânsito, igualmente admite recepções e interpretações múltiplas.
As divergências e os deslocamentos do conceito e dos saberes que recorrem a ele existem como um sistema de dispersões que:
[...] não se organizam como um edifício progressivamente dedutivo [...]: [ocorre] uma ordem em seu aparecimento sucessivo, correlações em sua simultaneidade, posições assinaláveis em um espaço comum, funcionamento recíproco, transformações ligadas e hierarquizadas (FOUCAULT, 1987, p. 43).
Portanto, identificar-se-ão nesses discursos as muitas (re)formulações e significações do bovarismo, uma vez que não se pode, nem se pretende, apontar qual autor ou acepção do conceito, por exemplo, sejam mais
adequados – dado o interesse na riqueza mesma de suas aparições dispersivas:
[...] os elementos recorrentes dos enunciados podem reaparecer, se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em determinação, ser retomados no interior de novas estruturas lógicas, adquirir [...] novos conteúdos (FOUCAULT, 1987, p. 67).
A partir daí, o corpus de enunciados com as referências ao termo e as relações que permearam a constituição da noção de bovarismo no Brasil serão colocados em discussão, de modo a produzir entendimento sobre as acepções existentes – criadas, recriadas, sempre erigindo novas teias de significação.
Os textos encontrados na formação do corpus fazem parte de um contexto de publicação e de um recorte temporal específico, como adiante se explicará. Isso os aproxima em muito;; contudo, ainda assim, neles poderemos enxergar significações, para o conceito, heterogêneas e até contraditórias. Explica-se esse fenômeno pelo fato de que cada autor, tendo estabelecido o seu contato com o bovarismo (por suas fontes, suas pesquisas e autores diferentes), apreende as ideias, compreende-as e se apropria delas (até como senso- comum) no ambiente de suas pesquisas para dizer algo que o conceito acabou, em alguma medida, permitindo dizer. Desse modo, encontram-se, em meio ao rico espectro formado, questões ligadas a tempos e olhares críticos diferentes, também resultantes das formas como, entre críticos de países e épocas distintos, Emma Bovary e o bovarismo foram compreendidos.
Um exemplo disso é que o bovarismo, num contexto de análise do campo da psicologia ou da psiquiatria – o primeiro domínio que o acolheu ainda no século XIX –, surge, mesmo em estudos contemporâneos, colado a sua interpretação ainda do início do século XX. Isso ocorre também, para se apresentar outro exemplo, na constante associação, nascida no período histórico de fins do século XIX e início do XX, do bovarismo à condição feminina e/ou ao pensamento romântico oitocentista. Como é de se esperar, tanto nesses casos como em outros em que o bovarismo surge, suscitam-se contextualizações histórico-sociais nesses estudos pertencentes a domínios
científicos diferentes125 em que se aglomeram elementos de análise: papel da
educação (formal ou não), diferenças de papéis sociais, a relação leitor/leitura, relação sujeito/sociedade etc. Todas as acepções, resultantes de numerosas variáveis – época, tensões, regras e práticas sociais, recepção, domínio do saber, elasticidade do conceito, dificuldades de localização da filosofia gaultieriana etc. –, coexistem no conjunto de textos que se pretende analisar.
Expõe-se, mais uma vez, o que a História Cultural do já evocado estudioso Roger Chartier nos ensina: as relações entre os seres e as entidades são constituídas por forças e tensões que culminam em práticas na sociedade, a partir de/gerando representações sociais. Essas instâncias de tensão, construídas por relações de poder, submissão e subversão, por ora, não serão tratadas, todavia oportunamente serão retomadas, quando se revisitarem os contextos de onde emergem determinadas significações do bovarismo. Na verdade, isso foi já sugerido quando se tratou da trajetória pessoal e artística de Gustave Flaubert, dos estudos de Jules de Gaultier e, também, da comunidade interpretativa francesa – sendo este conceito, o de “comunidades interpretativas”, também pertencente aos estudos chartierianos. As discussões do historiador sobre a produção dos discursos e das representações revelam uma preocupação com as formas de leitura desses discursos (e com os resultados materializados deles). Isso porque muitas leituras podem ser condicionadas a uma visão almejada por grupos minoritários que os produzem no intento de deter e gerar controle sobre grupos posicionados como menos favorecidos. Por outro lado, considera-se também o olhar “não ingênuo” dos leitores que produzem as mais diversas reflexões e promovem usos antes impensados, criativos e, por isso, subversivos para os discursos – instituídos e estrategicamente produzidos – aos quais estão sujeitos. Nesse sentido, Chartier acrescenta elementos que podem enriquecer o olhar, oferecendo formas diferentes de interpretação da constituição dos textos e da sua relação com os leitores de perfis distintos, atravessados por suas condições na sociedade. Em A história ou a leitura do tempo (2010), Chartier adverte:
A força dos modelos culturais dominantes não anula o espaço próprio da recepção. Sempre existe uma brecha entre a norma e o
125 Jules de Gaultier já promove desde os primeiros textos essa confusa relação inicialmente com a psiquiatria e,
vivido, o dogma e a crença, as normas e as condutas. Nessa brecha se insinuam as reformulações, os desvios, as apropriações e as resistências (CHARTIER, 2010, p. 46-47).
Com base nessa ideia, está-se mais aberto para entender como, do contexto finissecular saído da escrita filosófica de Gaultier, o bovarismo, que aparentava ser uma característica negativa, uma patologia, transitou por acepções distintas, passando a ser entendido, também, como uma característica subversiva e transformadora – neste último caso, pensa-se em uma das vertentes de análise comuns no século XXI, como veremos. Isso se dá pelas transformações de pensamento e pelas tais brechas sobre as quais Chartier fala em seus estudos e que permitem que a leitura tenha enfoques diferenciados.
Em seu raciocínio, o historiador cita Foucault e Bourdieu como importantes estudiosos por estabelecerem um olhar mais atento aos textos, entendendo-os não em seus aspectos linguísticos apenas. Os textos são articulados com posições sociais “que caracterizam, em suas discrepâncias, [que] os diferentes grupos sociais não são apenas um efeito do discurso, mas, antes, também designam as condições de possibilidade” (CHARTIER, 2010, p. 49). Ao tratar disso, Lopes de Carvalho (2005) confronta os pensadores:
O conceito de “apropriação social dos discursos”, proposto por Michel Foucault, não levaria em conta as pluralidades de leituras, já que os textos seriam tomados como “confiscados” e fora do alcance dos não-competentes ou desprivilegiados de posições sociais. A antinomia entre a filosofia do sujeito (Ricoeur) e estruturalismo (ou pós-estruturalismo;; Foucault) e a necessidade de superá-la aparecem [...] no pensamento de Chartier, que encaminha suas pesquisas [...] seguindo mais de perto as contribuições de outros autores, como Michel de Certeau e D. F. Mckenzie. Nesse sentido, Chartier pergunta pelo confronto entre, de um lado, o fazer-crer da “vontade prescritiva” dos responsáveis pelos textos e, de outro, as crenças, os investimentos, precisamente as leituras, sempre rebeldes, dos mesmos textos [...]. As apropriações são entendidas
por Chartier como práticas de produção de sentido, dependentes das relações entre texto, impressão e modalidades de leitura, sempre diferenciadas por determinações sociais
(CARVALHO, 2005, p. 155, grifo nosso).
Observando-se essas questões e as já levantadas na primeira parte desta tese, pretende-se notar, a partir do arquivo, acepções difundidas do termo resultantes de apropriações de leitores especializados, sobretudo das áreas de humanidades. Tais acepções, portanto, surgem de interpretações situadas
em percursos específicos: pressupõe-se quem fala, de onde fala e as relações existentes nesses lugares. Trata-se do discurso acadêmico formal, produzido no Brasil, país com suas determinantes históricas próprias. Não se pode ignorar, porém, influências do pensamento de outros países e, até mesmo, a histórica discussão da subserviência intelectual brasileira (e não só brasileira, como se sabe). É a partir dessas constatações que se buscará examinar que sentidos o bovarismo veste e a partir de quais influências. Será possível descobrir acepções assentadas com a crítica francesa (seja a oitocentista, seja a contemporânea), por exemplo, e outras mais adaptadas a um contexto brasileiro.
4.2 Metodologia de formação do corpus
Para se ter dimensão das significações assumidas pelo conceito do bovarismo na produção acadêmica brasileira, é preciso examinar ocorrências do termo em textos elaborados dentro das relações legitimadas pelo ambiente acadêmico, mais facilmente identificado nas publicações relacionadas às universidades. Afirma-se isso pois há outros contextos de utilização do termo (no âmbito do senso comum, estando ou não atenta à preocupação acadêmica) que ofereceriam estudos igualmente interessantes. Alguns exemplos disso são jornais impressos ou virtuais, blogs, sites de internet, revistas etc. Não é o caso de comprometer-se com esses usos aqui – por já se entender tratar-se de um outro trabalho complexo –, a não ser como acréscimo ou curiosidade quando convier. Desse modo, três possibilidades se delineiam para a composição do corpus que oferecerá meios de ler o bovarismo em estudos acadêmicos brasileiros: livros e capítulos de autores e teóricos já estabelecidos no ambiente acadêmico;; dissertações e teses produzidas por alunos de pós-graduação das universidades do país;; e artigos acadêmicos.
A base do corpus serão, portanto, de acordo com a escolha feita neste trabalho, teses e dissertações, textos diretamente relacionados a programas de pós-graduação e mais acessíveis no ambiente virtual. Frisa-se a importância das buscas em ambiente virtual, uma vez entender-se a