No âmbito da crítica brasileira, encontram-se menções ao termo bovarismo em heranças advindas da crítica francesa ou da interpretação de autores franceses a partir do mosaico teórico descrito nesta primeira parte do estudo.
123 “[...] don Quichotte prend des oranges pour des pommes quand Emma demande des oranges aux pommiers,
Oblomov se contente de demander des oranges aux orangers du domaine de son enfance Oblomovka, dont il réaménage, en rêve, les orangeries”. Essas analogias partem de uma frase muito conhecida escrita por Flaubert em correspondência à Louise Colet, em abril de 1852: “Demander des oranges aux pommiers leur est une maladie commune” – “Pedir laranjas às macieiras lhes é uma doença comum”. Segundo Leclerc (2004), na ocasião, Flaubert reprovava certas mulheres por seu “desejo de poetização”. Essa também passou a ser uma das frases bastante utilizadas em textos críticos sobre o bovarismo, por designar o desejo de alcançar, de uma realidade não favorável, desejos que acabam se tornando impossíveis. É pertinente lembrar ainda que maçãs e macieiras são bem mais comuns na Europa do que laranjeiras, sendo as laranjas frutas mais difíceis de conseguir, sobretudo no século XIX. Isso potencializa a frase flaubertiana, facilitando sua relação como bovarismo.
Outras acepções, como se verá, passaram também a compor o conceito, com base em ambiências que dizem respeito a modos culturais de países ex- colônias. Esta tese se propõe a observar essas ocorrências (apropriações dispersivas em contextos de estudo diversos) do termo, o que se fará nos próximos capítulos.
Existem, porém, três estudiosas brasileiras que se dedicaram ao bovarismo ou ainda a Jules de Gaultier em seus estudos como elemento basilar das investigações de pesquisa. Isso porque Gaultier como filósofo e o conceito do bovarismo não constituem tema central de textos crítico-teóricos no Brasil. Essas estudiosas não realizam apropriações dispersivas do conceito (tal como se verá nos capítulos seguintes), foco desta tese. Elas se detiveram a operar um estudo crítico-teórico do tema. Assim, até mesmo como forma de introduzir a segunda parte desta tese e como caráter documental, faz-se interessante situar tais estudos, que se afinam, de certa maneira, à natureza dos textos críticos franceses vistos até agora.
A primeira das estudiosas, Andrea Saad Hossne, publicou dois livros resultantes de sua dissertação de mestrado e de sua tese de doutorado – ambos na área de Letras, especificamente em teoria literária e literatura comparada, realizados na Universidade de São Paulo. São eles, respectivamente: Bovarismo e Romance - Estudo das obras Madame Bovary de Flaubert e lady Oracle de Atwood (1993) e A angústia da forma e o bovarismo - Lima Barreto, romancista (1999). Os dois trabalhos dedicam-se, em sua constituição teórica, a discutir, em certa medida, a teoria do bovarismo. O primeiro compara duas personagens de romance em seu bovarismo;; o segundo trata da escrita barretiana e de sua afeição à filosofia gaultieriana. Como em 1993 e em 1999 as obras de Jules de Gaultier não haviam sido reeditadas e eram raras (e consideradas arcaicas), Hossne realizou seus estudos tendo pouco acesso à obra de Gaultier na fonte, o que, como já se viu na história do conceito, acaba sendo possível, por suas diversas (re)leituras. O acesso ao pensamento gaultieriano se deu, como se lê em nota no primeiro livro, por longas citações diretas realizadas por estudiosos consultados por ela.
A outra referência é Eliana Maria de Melo Souza, graduada em Ciências Sociais (1977) pela Universidade de São Paulo e doutora em Estudos de Movimento Sociais (1986) pelo Laboratório de Pesquisas da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, Paris. Seu texto mais recente a respeito, o artigo “Itinerários do bovarismo” (2014), apresenta crítica à figura do filósofo Gaultier pelas imprecisões em sua trajetória acadêmica, o que a faz questionar se não seria o bovarismo uma “obsessão pessoal” do pensador. Segundo ela:
Consultas às obras de referência [...] sequer trazem informações precisas sobre a educação formal do autor ou sobre sua inserção profissional francesa. Encontramos apenas um pequeno artigo com ralas precisões numa edição antiga [...] do Grand Larousse Encyclopédique, que o trata como philosophe français [...]. Após listar oito títulos de livros publicados [...], o artigo conclui com uma frase que nos chamou a atenção: “J. de Gaultier insiste naquilo que nomeia bovarismo: disposição do homem a conceber-se diverso do que é, a mentir para si mesmo” [...]. Devemos entender que o uso do termo pelo articulista quer apontar para o esforço continuado do autor, que teria se destacado nas letras pela elaboração de uma teoria marcante ou entender que ele quer apenas sugerir talvez uma perseverança enfadonha por parte do philosophe français em assunto menor, quase uma vã obsessão pessoal? (SOUZA, 2014, p. 7).
Após ter constatado, ao longo de sua pesquisa, poucos textos dando importância à teoria do bovarismo, Souza afirma a insignificância “do conceito para a posteridade” e a “irrelevância das obras do autor”, confirmadas pelo “desaparecimento do philosophe français no panteão das letras” (2014, p. 7). Ela cita estudos de pesquisadores sobre referências ao bovarismo nunca encontradas da tese de Lacan – o que contradiz afirmações de Jayot – como forma de comprovar a pouca importância de Gaultier e seu desaparecimento, considerado como justo por sua pobreza intelectual. Assim, Souza (2014, p. 8) enumera os poucos elementos dos quais o bovarismo, para os franceses, de acordo com suas pesquisas, ficou sendo referência: 1) Jules de Gaultier como um dos primeiros divulgadores de Nietzsche, ao disseminar o nitzscheísmo de direita (inclusive, existe uma forte crítica neste artigo de Sousa a respeito do direitismo de Gaultier);; 2) O espírito ultraconservador dos anti-dreyfusards, “de práticas e de representações antissemitas, nacionalistas e autoritárias”;; 3) “Na compreensão da incorporação do nacionalismo e do catolicismo como valores fundamentais no ideário de direita na França”;; 4) Papel da imprensa na
França;; 5) “[...] rivalidade política e social entre universitários X académiciens – membros das Academias Francesas”;; e 6) “estilo do mau ensaísmo dos franco-atiradores”. A pesquisadora comenta alguns trechos do livro de 1892, Le Bovarysme: La psychologie dans l’oeuvre de Flaubert, relembrando que a edição fora feita por uma editora menor. Sobre o desenvolvido nessa obra, tem-se:
O estilo da escrita é rebarbativo. Frases alongadas. Excesso de adjetivos. Digamos então que se trata de um mau ensaísmo, pelo menos aos olhos de hoje. Exemplos do mundo natural, vegetal e animal (flores, abelhas, mares etc.), bem ao gosto, como se sabe, dos positivistas franceses do século XIX, que reconhecemos particularmente em Comte [...]. A concepção de uma evolução natural, necessária e obrigatória, do espírito humano, vem acompanhada de uma soberba despreocupação política e social [...]. (SOUZA, 2014, p. 9)
Segundo ela, a filosofia apresenta “uma apreciação negativa das qualidades intelectuais humanas”, deixando entrever “pessimismo sobre o caráter de uma boa parcela da espécie humana, aquela menos favorecida pelas luzes do saber, menos dotada de riqueza material e distante dos prestígios parisienses” (p. 11). No entanto, é fato que, reconhece a articulista, o livro de 1902 apresenta-se mais embasado, devido ao espaço de tempo de dez anos que separa as duas obras, o que ajudou a segunda a ser mais complexa e “de alcance metafísico”, sobretudo pela influência do caso Dreyfus e do pensamento de Nietzsche. No parágrafo abaixo citado, nas palavras de Souza, alcançamos a presença de Gaultier no círculo de sua época:
[...] a carreira de escritor prolífico começara antes deste segundo livro [...]. Já em 1895 [...] encontramos Gaultier escrevendo regularmente para a Revue Blanche [...]. [Nela] escreve uma série de artigos intitulados Introduction à la vie intellectuelle. Poucos anos depois, em 1898, começa a escrever crônicas para a Revue du Mercure de France, onde se torna responsável pela rubrica de Filosofia entre 1907 e 1911. Mas também encontramos artigos de sua autoria na Revue Hebdomadaire, na Revue Philosophique, em Monde Nouveau e na Revue de Métaphysique et de Morale (SOUZA, 2014, p. 13).
A produção gaultieriana compreende outras introduções de livros e prefácios, entre eles um dedicado ao estudo de uma jovem sobre quiromancia, o que assusta a articulista, pela aparente falta de critério encontrada nos temas dos textos do filósofo: “Mesmo enfrentando um tema tão esdrúxulo, Gaultier não perde a oportunidade de chamar sua teoria do bovarismo para explicar que no cerne da quiromancia existe ‘um aspecto fugidio e aproximativo’” (p. 13).
Segundo Souza, ele teria publicado, até 1926, 13 livros, sendo que em sua vida intelectual houve dois hiatos sem publicações. Um deles entre 1913 e 1922, provavelmente por conta da Primeira Guerra, e outro entre 1926 e 1942, ano de sua morte. Na concepção de Souza, esse segundo hiato teria se dado “provavelmente porque o pano cai tragicomicamente” (2014, p. 14).
Centrada em conceitos próprios à crítica flaubertiana, Maria Elvira Malaquias de Carvalho defendeu, em 2014, diante do programa de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, na linha de pesquisa de Teoria Literária e Literatura Comparada, sua tese Bovarismo, epifania, bêtise: exercício de metacrítica flaubertiana. Cada um dos três conceitos é desenvolvido, sendo o primeiro capítulo, “Os destinos do bovarismo”, uma investigação da “relação entre a construção teórica do bovarismo e os estudos flaubertianos, por meio da comparação dos modos de interpretação e da utilização do conceito de bovarismo nos campos retóricos da França e do Brasil” (CARVALHO, 2014, p. 5). Em seu texto, preocupa-se em apontar aporias surgidas das análises à filosofia gaultieriana e clarificar que existem diferenças na utilização do conceito devido a apropriações mais ou menos comprometidas com o conhecimento exaustivo deste. A estudiosa reconhece também “o hiato entre a difusão do conceito e a carreira de seu inventor” (CARVALHO, 2014, p. 21). Baseada nos estudos de Delphine Jayot, traça a história do conceito na França, não deixando de diferenciar os campos de estudos que dele trataram, bem como de apontar a problemática postura reacionária de Gaultier. A pesquisadora sinaliza, na teoria do bovarismo, fecundas trocas e grandes atritos entre literatura e filosofia.
O capítulo finda com a análise de como o conceito se difundiu no Brasil e sua relação com o sistema intelectual brasileiro. Em suma, comenta que a “falta de inquietação intelectual” dos brasileiros de maneira geral resulta em uma constante adaptação de ideias recebidas de países estrangeiros: “A adulação às ideias estrangeiras chega a ser um topos recorrente na história da crítica literária brasileira” (p. 49). Comentam-se obras capitais relativas à temática da identidade nacional e do modernismo brasileiro para problematizar o tema. Carvalho ainda traça, na ocasião, um percurso da literatura comparada no
Brasil. Esses últimos pontos, no entanto, serão melhor desenvolvidos, juntamente com Carvalho e outras referências, no último capítulo desta tese. Por ora, tendo-se explanado da história do bovarismo, suas potências significativas e seus pontos de tensão, dedicar-se-á ao mapeamento de um corpus que possibilite compreender as apropriações do termo bovarismo entre críticos brasileiros.
PARTE II
Apropriações do bovarismo pela crítica acadêmica brasileira
4. CONSTITUIÇÃO DO CORPUS E ANÁLISE QUANTITATIVA
A obra Madame Bovary, de Flaubert, suscitou textos críticos, de diversas áreas do saber, não só da literatura. O comportamento de Emma e o contexto em que a obra foi escrita fizeram com que muitas percepções tenham surgido, dentre as quais a filosofia do bovarismo, de Jules de Gaultier, desenvolvida ainda no século XIX. O termo bovarismo ganhou espaços diversos desde então até os dias atuais, em vários lugares do mundo. Tendo surgido conceitualmente com filosofia de Gaultier, ganhou mais independência deste, tendo sido mais associado à personagem e ao escritor. Assim, sistematiza-se que, após Gaultier, o termo surge e há dois caminhos básicos tomados pela crítica francesa. O primeiro é restituir e criticar o pensamento gaultieriano que assume, em primeira instância (sendo essa a que mais permaneceu ao longo dos anos e dos estudos críticos), Emma como um ser patológico, que nasceu com uma predisposição hereditária para conceber-se diferente do que realmente era ou poderia ser por não aceitar sua realidade. Assim, nesse contexto, o bovarismo fora estudado e apropriado em textos da área de psicologia e medicina.
Outro caminho é a exploração do conceito dissociado da pretensão psicológico-filosófica de Gaultier e agregado ao discurso da crítica literária. Neste caso, a obra, Flaubert, a literatura, a escrita e a leitura são os elementos mais importantes: a ponte entre a obra e o conceito é direta, deixando-se de lado o filósofo que outroca cunhara o termo. A educação literária e sentimental de Emma é um dos fatores mais importantes para esse viés de análise. Nesse sentido, olhares mais moralistas ou mais emancipadores sobre a sociedade se abrem;; a crítica de gênero ganha fôlego e a discussão em torno da relação entre leitor e ficção é aguçada. Esses dois grandes caminhos foram tomados e ramificados, formando um conceito de bovarismo cada vez mais complexo e heterogêneo. No Brasil, não foi diferente, já que surgiu uma profusão de menções ao termo.