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4. UM GESTO DE LEITURA DA PRODUÇÃO DITÁTICO-PEDAGÓGICA DO MEB

4.3 O Plano da Formação de Atitude

4.3.4 A Lição 16

A lição 16 é antecedida pela cena de encontro de Pedro e Agripino (na lição 15). Pedro fica sabendo que Agripino estava participando de um curso de treinamento que lhe concedeu muito aprendizado. Agripino aprendeu muita coisa para mudar a vida do povo (essas coisas não são explicitadas na lição). Então, Pedro ficou interessado e resolveu fazer esse treinamento. Depois desse contexto explicitado anteriormente, a lição 16 é desenvolvida, a saber:

78 Pedro voltou esclarecido do treinamento.

79 Voltou esclarecido de que:

80 O governo é para todos.

81 Todo o povo deve participar do governo.

82 Alguns homens têm de sobra e muitos nada têm. 83 Alguns ganham demais.

84 Muitos trabalham e seu trabalho é explorado por outros.

85 Muita coisa está errada no Brasil.

86 É preciso mudança completa no Brasil.

87 É PRECISO MUDANÇA COMPLETA NO BRASIL.

Como Pedro resolveu fazer um treinamento, agora ele colhe os frutos, ou melhor, volta esclarecido [78 e 79]. O esclarecimento em questão diz respeito a vários assuntos: a participação do povo no governo [80 e 81], as desigualdades sociais [82 e 83], a divisão do trabalho, a luta de classes [84] e a necessidade mudança no Brasil [86 e 87].

O treinamento concede a Pedro um aprimoramento da conscientização social já vinculada a uma atitude formada. Isso porque se até então ele percebia as injustiças sociais sofridas pelo povo - a fome, as doenças, a falta de escola - e, por isso, queria mudar a vida do povo, a partir desse momento ele vê mais longe: enxerga a estrutura socioeconômica do país como inadequada através das desigualdades sociais e a exploração. Daí conclui que o Brasil precisa mudar.

Toda a lição é construída sob os posicionamentos de Pedro que aponta a estrutura do país como a causa dos efeitos apresentados na lição 13. Essa correlação pode ser apreendida discursivamente através do contexto de produção fazendo sentido dentro do discurso. A lição 13 questionava sobre as causas que provocavam uma vida dura para camponês - a mortalidade infantil, a falta de habitação para o povo, a falta de instrução e de escola e as injustiças sofridas -, no entanto, tais causas não foram explicitadas no momento. Mas agora, na lição 16, Pedro conscientiza-se de fatores que estruturam a vida em sociedade, como o governo e a divisão do trabalho e vê neles inadequações que provocam exploração e desigualdades. Portanto, as injustiças descritas na lição 13 não fazem parte dos problemas apenas do meio rural, mas estão relacionadas com as desigualdades dentro de todo o país. É aí que o contexto sócio- histórico faz sentido porque esse discurso surgiu na década 1960, período em que já circulava a ideia de que as estruturas desiguais do Brasil eram responsáveis pelos males sociais, como a fome, a pobreza e o analfabetismo. Devido a isso, segundo Paiva (1987), os projetos educativos da época queriam mudar as estruturas socioeconômicas injustas através da educação política e conscientizadora do aluno, fazendo-o um sujeito participante do desenvolvimento do seu país. É nessa perspectiva que o MEB “buscava através da educação uma transformação das mentalidades e das estruturas” (PAIVA, 1987, p. 241). Portanto, a posição de Pedro ao defender a tese de que é preciso mudança completa no Brasil reflete o contexto de produção e os objetivos do MEB, mas principalmente apresenta ao auditório as causas das desigualdades sociais sofridas, incitando a mudança.

Quando o discurso fala da necessidade de participação popular no governo, a posição sustentada nos remete à célebre frase de Rousseau “o poder emana do povo”. Essa é a postura desenvolvida aqui, visto que se o governo deve ser encarado não como o poder de uma minoria no controle do país e, sim, como um governo de todos, então ele deve permitir a participação do povo. Logo, o discurso leva-nos a entender que essa participação ainda não acontece e, por sua vez, se todas as pessoas não influenciam o governo, ele não reflete os anseios populares. Os sentidos apreendidos podem ser vários, contudo destacamos aquele que defende a necessidade de

participação social como forma de incidir nas decisões governamentais a favor de todo o povo e não de alguns.

Nesse mesmo raciocínio, a lição apresenta os seguintes enunciados: “Alguns homens têm de sobra e muitos nada têm” [82] e “Alguns ganham demais” [83], que usam o pronome indefinido “alguns” para materializar o discurso sobre as desigualdades sociais. Os “alguns” favorecidos contrastam com os muitos que trabalham e são explorados: “Muitos trabalham e seu trabalho é explorado por outros” [85]. Vemos que o orador faz uso do lugar de quantidade para sustentar que a maioria deve ser preferida em relação à minoria, ou seja, que não é justo que poucos tenham demais e muitos não tenham nada. Para Abreu (2001, p.81), o lugar de quantidade “afirma que qualquer coisa vale mais que outra em função de razões quantitativas”.

Portanto, ao recorrer ao lugar de quantidade que divide a minoria possuidora de recursos econômicos e a maioria explorada, o discurso evoca a luta de classes estudada por Althusser. Foram expostos dois grupos sociais: o dos trabalhadores - no qual Pedro se inclui - que é explorado e o grupo da minoria que possui recursos. São os dominados e os dominantes, de modo que os primeiros estão subordinados ao segundo vendendo sua força de trabalho para o grupo que detém os instrumentos técnicos e financeiros. No caso do meio rural, o camponês planta e colhe para os donos da terra ou mesmo sendo o camponês o proprietário da terra, o escoamento da produção passa por intermediários que tiram lucros do homem do campo.

Mas, a questão é que o discurso da lição 16 não só adentra nas disputas de classes como também toma partido pela classe explorada (os dominados). Essa é uma postura que vai de encontro à ordem vigente, deixando claro a inserção do discurso numa formação discursiva política revolucionária que comunga com os objetivos daqueles que estão descontentes com a realidade e buscam mudanças. Sendo assim, foi devido ao teor revolucionário e esquerdista assumidos pelos discursos da cartilha que ela foi considerada subversiva durante o governo ditatorial.

Como estamos vendo, até o momento, a cartilha conscientizou e incitou uma atitude nos alunos, convencendo-os a tomar posições, especialmente que levem à mudança completa do Brasil. Essa tese é uma das principais da cartilha e por isso não podia ter sido expressa, de início, para os alunos, sendo necessária uma preparação

por teses mais fáceis de serem aceitas até chegar a essa. Entretanto, a busca pela mudança no Brasil faz parte da tese principal da cartilha “Viver é lutar”, mas não é ela. Não vamos explicitá-la neste momento porque, assim como na cartilha, queremos que nossos leitores possam construí-la passo a passo, a cada nova lição analisada.