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4. UM GESTO DE LEITURA DA PRODUÇÃO DITÁTICO-PEDAGÓGICA DO MEB

4.1. Sobre as Condições de Produção

Os discursos são produzidos dentro de determinadas condições, e esse contexto de produção está inscrito no próprio dizer, construindo sentidos. Por isso, antes de adentrarmos na análise discursiva da cartilha e dos roteiros de aulas, vamos explicitar o contexto de desenvolvimento do MEB, atentando para a situação imediata, o contexto sócio-histórico-ideológico mais amplo e os interlocutores envolvidos nessa educação. Isso porque, traçado esse panorama contextual, podemos verificá-lo no próprio discurso. Comecemos, portanto, pelo contexto mais amplo.

O MEB, desde o seu surgimento, incorpora as posições sociais da igreja católica em relação às classes menos favorecidas, ou seja, sob a coordenação do CNBB, o processo educativo desse movimento já inicia suas atividades de educação atreladas às de evangelização. Dizemos isto porque o acordo feito entre o CNBB e o governo do Brasil, para levar educação de base a jovens e adultos nos lugares mais remotos, trouxe benefícios para as duas partes. Com a instalação de emissoras de rádio educativas financiadas pelo estado, a igreja, por um lado, pôde, juntamente com os leigos, realizar uma ação social junto às classes humildes, seguindo o Concílio de Vaticano II, destinando-lhes uma educação de base que continha: alfabetização e conhecimentos básicos de higiene, saúde, nutrição e agricultura. Enquanto que, por outro lado, a igreja pôde utilizar os programas educativos para realizar a instrução da fé católica, sem custos financeiros. Quanto ao Estado, o apoio ao CNBB na educação de jovens e adultos concedia-lhes um aumento no contingente eleitoral e, de acordo com Fávero (2006), era uma forma de controlar ideológica e organizacionalmente as massas rurais, na época, sob assédio de grupos de esquerda, já que a igreja católica era tida como conservadora e moderada, além do que poderia educar convenientemente as massas para que não houvesse adesão a grupos de esquerda.

Entretanto, apesar desse contexto inicial, sabemos que em 1962, o MEB redirecionou seus objetivos a partir de uma nova concepção de educação de base,

fundamentada na conscientização. É a partir desse momento que o MEB torna-se um Movimento de Cultura Popular, aderindo às reflexões de liberdade social e transformação da realidade através da educação em busca da construção de uma sociedade mais justa e humana.

Nesse sentido, o movimento passa a encarar a educação como um meio de se atingir o objetivo maior de mudança das situações de miséria em que vivia o povo. O aluno passa a ser visto como um sujeito criador de cultura, capaz de refletir e de intervir na realidade em que está inserido. Assim, os objetivos da educação são alargados e o próprio ato de ensinar é entendido numa perspectiva não neutra, isto é, os professores assumem posições e as comunica aos alunos, entendendo que estes precisam ter uma formação crítica sobre a realidade e que são capazes de formar suas próprias opiniões. Portando, o MEB deixa de ser apenas um movimento que somente transmite conhecimento aos alunos, na busca de educar o maior número de trabalhadores possíveis através do rádio, e mostra-se envolvido no princípio de um ensino qualitativo que se preocupa mais com o que o aluno vai aprender do que com o aumento de aprendizes. É nesse sentido que o MEB torna-se um movimento de esquerda porque luta por mudanças sociais no país. Esse fato desagrada os partidários conservadores do poder sendo, por isso, em 1964, considerado um movimento subversivo e consequentemente reprimido pelo governo ditador.

Portanto, é a partir de 1962 que o MEB passa a ser considerado um MCP preocupado com as questões sociais do país e com os interesses sócio-econômico- culturais dos trabalhadores, passando a desenvolver uma educação voltada às classes populares, ou seja, uma educação popular. Nessa maneira de ensinar estava contido o método ativo de Paulo Freire que propunha uma educação “com” o aluno e não “para” o aluno, dando a voz aos sujeitos aprendizes, bem como o viés conscientizador, procurando conscientizar para a tomada de posição dos alunos, almejando uma politização. Conforme Paiva (1987), os métodos dos MCP tinham como base comum o pensamento social cristão que pretendia a promoção e conscientização do homem, inserindo-o na vida política.

Nessa década, o país possuía um grande contingente de trabalhadores rurais, oprimidos e marginalizados submetidos às decisões de latifundiários. Além disso, o

sistema educativo nas zonas rurais era deficiente e os analfabetos não tinham o direito a voto. Essas são apenas algumas das circunstâncias que impulsionaram a igreja a intervir mais ativamente nessa realidade.

Diante dessa conjuntura e dos novos norteamentos, o MEB produziu um material didático que contemplou os seus objetivos. Assim, a produção discursiva da cartilha “Viver é lutar” e dos roteiros de aulas foram produzidas dentro desse contexto de desejo de superação das estruturas sociais desiguais, da busca de emancipação das classes marginalizadas, no tocante ao desenvolvimento intelectual, à consciência crítica, à tomada de atitudes e à reivindicação de participação política. O contexto-sócio-histórico ideológico de produção da cartilha e dos roteiros pode ser definido pela disputa ideológica entre a classe dominada - que aspirava a uma melhoria das condições de vida - e da classe dominante, que queria conservar o seu poder. Entretanto, o ideal que defendia a igreja não era a luta de classes com a mudança do status de dominado para dominador e vice-versa, mas a colaboração entre os grupos sociais na busca de uma sociedade mais justa e igualitária, sem dominados ou dominantes. O fato é que nessa perseguição por uma sociedade mais igualitária, a educação foi impregnada pelo pensamento da igreja católica e os preceitos da cultura e educação popular.

O nosso corpus de análise está imerso nesse contexto, que se dá de forma mais ampla, tendo em vista que ainda dentro de situações imediatas distintas faziam parte do mesmo movimento e comungavam os mesmos princípios de educação conscientizadora e libertadora. Dizemos que a situação de enunciação do livro de leitura é diferente da dos roteiros de aulas porque a cartilha foi construída pela coordenação nacional do MEB e, além disso, era um material escrito que, entregue aos alunos, intencionava, através do ato da leitura, a efetivação da interação entre professor e aluno. Já as aulas radiofônicas eram produzidas pelos professores de cada região seguindo os preceitos maiores do MEB, mas recorrendo também às necessidades locais dos alunos os quais se dirigiam, visto que os coordenadores e professores costumavam visitar as escolas radiofônicas nas comunidades. Além disso, as aulas, mesmo materializadas nos roteiros, ou seja, tendo sido escritas para a leitura do educador, eram realizadas através do rádio, por meio da linguagem oral. Queremos dizer que, apesar de recorremos, nesta dissertação, ao roteiro escrito das aulas para

analisarmos o discurso, sabemos que a situação de enunciação desse discurso ocorria de forma oral, através do rádio. Assim, a interação entre professor e aprendizes durante as aulas radiofônicas dava-se pela oralidade transportada pelas ondas sonoras do rádio.

Contudo, essas duas formas de interagir com o aluno, seja escrita ou oral, enquadram-se em um trabalho de educação à distância. Tanto na leitura dos discursos da cartilha quanto na audição das palavras do professor/locutor, o aprendiz não compartilhava o mesmo espaço físico dos educadores, a interação, por conseguinte, era mediada ou pelo livro de leitura ou pelo veículo rádio. Entretanto, não é pelo fato de desenvolver uma educação à distância que negaremos o caráter dialógico dessa prática discursiva. Há também nesse processo educativo dois pólos: o sujeito-professor e o sujeito-aluno, em que a produção escrita ou oral é destinada a um interlocutor. Existe, nesse caso, uma interação entre indivíduos socialmente organizados em que, como assegura Bakhtin (1998), a palavra procede de alguém e se dirige para alguém, e dessa forma, quem fala sempre responde a algo anterior e almeja às respostas do seu interlocutor. As respostas, por sua vez, podem ser a própria compreensão do leitor ou ouvinte diante do texto. Assim, entendemos que no caso da cartilha e das aulas radiofônicas, mesmo diante de uma situação de enunciação imediata em que os interlocutores estavam separados, a produção do discurso foi pensada em função de um leitor ou de um ouvinte, configurando o caráter dialógico da linguagem.

Nessa perspectiva, remontando a situação mais ampla ou restrita da produção dos discursos do material didático do MEB, cabe-nos definir os interlocutores envolvidos nessa atividade. Como já sabemos, a educação pelo rádio possuía as figuras do professor, do aluno e do monitor. Os professores eram leigos, ou seja, não eram integrantes do CNBB, e adotavam ou deveriam adotar as concepções de educação do MEB, na condição de um MCP. Eram adeptos de uma postura crítica diante da realidade, instigando o aluno a refletir sobre essa realidade. Estavam incumbidos de não transferir conhecimentos e sim de ensinar o aluno a construí-lo, a refletir, por isso adotavam uma postura de educador democrático que, de acordo com Freire (1996, p. 26), “deve reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão”. Assim, o educador propunha-se a aliar o ensino dos conteúdos às

circunstâncias sociais em que estavam inclusos os alunos que se pretendia atingir. Tudo isso, a partir de um método ativo que dialogasse com o aluno, vendo nele um sujeito capaz de aprender a ler e escrever e mudar a sua história de vida, já que, na busca da mudança das estruturas sociais, o MEB via o aluno como um ser inacabado que sempre está sujeito a mudanças.

Quanto aos alunos, eram jovens e adultos das zonas rurais que já possuíam uma consciência da sua vida cotidiana e das dificuldades às quais estavam submetidos, tendo em vista que sentiam de perto as consequências: trabalhavam para sobreviver, passavam fome, não sabiam ler ou escrever, entre outros. Isso quer dizer que os camponeses sabiam as circunstâncias de suas vidas, entretanto faltava-lhes uma consciência critica, ou seja, aquela que além de perceber a realidade assim como ela é, exige a reflexão sobre essas circunstâncias na busca de mudá-las ou melhorá-las.

Em relação aos monitores, encarnavam, ao mesmo tempo, as funções de professores e alunos, já que, por um lado estavam incumbidos de auxiliar os aprendizes na execução de suas tarefas escolares e na discussão dos temas propostos pelo professor, mas de outro, também eram sujeitos da mesma comunidade dos alunos e compartilhavam as mesmas circunstâncias sociais e, apesar de alfabetizados, também faziam parte do auditório que os professores/locutores queriam atingir. Isso pode ser confirmado pois, além das aulas radiofônicas para os aprendizes, havia programas específicos para os monitores, ou seja, era desejo do MEB que eles adotassem uma postura crítica diante da realidade social de seu povo, até porque esses monitores estavam em constante contato direto com os demais alunos.