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CAPÍTULO 2 ‒ VOZES

2.9. Grande Sertão: Veredas Verdades

2.9.3. A liberdade de Riobaldo

“Mas liberdade ‒ aposto ‒ ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer.” (Guimarães Rosa, 1983, p. 218)

“A liberdade é assim, movimentação.” (Guimarães Rosa, 1983, p. 315)

Liberdade acontece na movimentação, mas, entre o objetivo e o atual, há a prisão de uma causa. O senhor sabe que o amor a Diadorim também foi o amor pela causa de Diadorim, Riobaldo amou o que Diadorim amava: a vingança a Joca Ramiro e a luta contra os Hermógenes. Esse grande amor foi alegria e foi o dentro do ferro de grandes prisões. Mas, então, o senhor responda se é possível ser livre dentro do tratado humano, em laços de sentimento profundo. Deus e o Diabo estiveram no amor de Riobaldo. Todo aquele que ama, não é livre, porque não querer magoar e querer proteger, em si, já é um aprisionamento. Ele quis Diadorim, mas não teve coragem de possuí-la, mas trouxe para si a causa do amor e amou- a. Teria sido livre se houvesse a consumação do amor? Talvez, mas Diadorim, ainda mais que Riobaldo, possuía um segredo que o aprisionava. O senhor se ateve ao pacto com Diabo nas

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Veredas Mortas? Vender a alma para o demo já é em si um contrato de prisão para sempre, mas os que vendem a alma a Deus também não estão em pacto? É possível um vivente humano sem algum pacto? Tudo é culpa, tudo é falimento, tudo é substância humana em transcendência. Liberdade se dá no meio do caminho:

Aparentemente, sim. A liberdade é algo mais interior do que exterior e depende do ponto de vista. Veja o amor que ele sentia por Diadorim, apesar disso, ele se vê preso a essa necessidade de vingança a quem matou o pai dela, isso acaba sendo uma prisão, de alguma maneira... Riobaldo diz às vezes: “Vamos deixar isso para lá e vamos fugir pro Gerais...” [risos]. Eu quero ir para os Gerais também... Então, ele é livre nas escolhas? Ele está preso ao amor que sente por Diadorim e, por mais que o amor seja libertador, ele nos mantém presos àquilo que a gente se propõe a fazer, porque eu dei a minha palavra e o outro confiou nela. Há uma frase: “Por Diadorim, eu matava ou morria”. São expressões de um sentimento para além da liberdade. Ao mesmo tempo em que ele é livre para escolher, ele está preso porque se obrigou pela palavra a ser cumprida. Ele segue o percurso até o final, mesmo que eventualmente cogite abandonar tudo. A minha liberdade termina aonde começa a do outro? Mas, e o outro, a liberdade dele, aonde começa? Eu me obriguei a estar com ele? Somos todos meio presos pela palavra e pelo sentimento, aí entra na mesma questão, o amor: eu vou com você para aonde você for porque eu amo você e porque o seu sonho é o meu agora? Ou não? Amar e ser livre são coisas distintas, né? Bem distintas... Eu tenho para mim que todo aquele que ama não é livre, ele está preso pelo amor, porque, se você ama alguma coisa, você ama e não quer magoar, e isso aprisiona, você não pode ter tudo, ao longo do caminho, nossa liberdade pode ficar delimitada.

Eu me perguntaria “o que é liberdade?”. Liberdade muitas vezes é compreendida por nós como o homem sendo um grande Deus que vai construindo o seu destino. Não vejo a liberdade desse tamanho ainda. O Riobaldo é livre no sentido de que ele leva a vida dele a partir daquilo e do lugar em que ele está. É o lugar do humano. Ele pode escolher tudo na vida dele? Não. Até porque a gente não pode escolher tudo na vida. A gente lida com muitas coisas que caem na nossa vida, então, nesse sentido humano, o Riobaldo é livre, mas o Riobaldo se perde no momento em que ele assume o poder e é dominado muitas vezes pelo ódio, e aí eu não se ele é livre neste pedaço do livro, não. Mas, a partir do momento em que ele volta, ressignifica, atravessa... Ele é livre. Mas não como construtor da sua própria vida, mas enquanto alguém que aceita o que a vida vai impondo, e ele aceita e lida com aquilo. É o lugar do homem na Terra

Não, porque ele ficava preso nesses valores... Ele podia ser livre de viajar, de largar mão de tudo, de ir atrás da luta dele, mas no amor, ele não era livre, e ficou preso a isso, aos valores, aos preconceitos que ele teria que enfrentar.

Eu acho, escolheu os seus caminhos de maneira muito ética, fez a travessia de maneira muito livre, ele sabia o que ele tinha que fazer e não recuou... Mas tem também a questão do destino, ele ter tomado o lugar do Zé Bebelo, ele escolheu não recuar, ir até o final, eu sinto ele uma pessoa livre.

Dentro dos limites da sociedade, sim. Apesar de às vezes ele estar submetido a comandos, ele conseguia sair fora, indo de bando para bando... A mãe dele morreu, ele foi morar com um parente e passou a gostar da jagunçagem. Ele poderia ter continuado

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com o padrinho, ele tinha um pouco de grana, podia estudar, ele podia escolher, dentro dos limites daquele contexto. Livre mesmo seria utópico.

Ele é livre na geografia, pela própria vastidão do sertão que traz a ideia de liberdade, mas ao mesmo tempo ele é preso da própria perspicácia, inclusive da própria sexualidade, que ele reprime. Ele traz para si aprisionamentos. Ele se questiona o tempo todo, ele é outsider, meio marginal, tem uma leitura diferente do contexto, ele é diferente. Ele está inserido num grupo com sentimentos de não pertencimento. Acho que todo mundo se sente assim, acho lindo isso dele. Acho ele livre por ser descolado do grupo internamente, mas isso também é triste, porque traz uma sensação de solidão. Isso me fez gostar muito do Riobaldo. É da minha natureza estar nos grupos e não me sentir com pertencimento, isso me ressoa.

Riobaldo é tão livre quanto um homem pode ser livre. Tão livre quanto um homem submetido às circunstâncias e aos valores morais do ambiente em que ele foi criado, tão livre quanto um homem pode ser, quanto a nossa intelectualidade nos permite ser, com as nossas dúvidas, incertezas, ele se diferencia dos restantes. Ele é diferente. Isso é inegável. Ele tem uma liberdade intelectual que os outros não têm, talvez com exceção de Diadorim, então, ele é livre tanto quanto é possível ser.

Acho que sim. Ele está preso a um contexto e fez as opções. Quando ele se encontra com o Diabo, ele está vendendo a alma para o Diabo, então, se você está vendendo a sua alma, você não é livre, não é? Mas, ao mesmo tempo, pelo meu olhar, ele é livre porque eu não acho que o diabo seja real, então, ele está buscando as ferramentas que ele precisa para alcançar o que ele quer, então acho que ele é livre, nesse sentido, salvo as ideias dele mesmo... Em relação à sexualidade, quando ele se sente travado quando começa a se interessar pela Diadorim, neste momento ele hesita e está menos livre.

Ele rememora a história por meio de uma narrativa de interpretação, da culpa, da regressão, ele construiu uma narrativa... Ele tinha muita culpa em relação ao amor dele, é uma narrativa de interpretação. Ele ficou muitos anos preso em uma saudade e a narrativa dele foi de libertação, acho que ele morreu um velho livre.

Eu acho que algo se perde no pacto que ele faz, eu tenho essa impressão. Mas ele é de uma honestidade muito grande. Tem algo no Riobaldo que me lembra o final da “A terceira margem do rio”, “sou aquele que não foi, aquele que vai ficar calado”, e o Riobaldo não fica calado, não é? Mas há um sentimento de que ele perdeu alguma coisa, Diadorim me parece ter sido na percepção dele um instrumento do diabo, ou usada como um instrumento deste. Ele perde Diadorim. O amor que ele sentia por ela era lindo, mas o que ele faz com isso? Em nome do que ele perdeu isso? De uma vitória? Contra o inimigo? Tem alguma coisa na vida dele que ele sente como uma grande perda... Não sei o quanto essa perda o libertou, o quanto a não realização do desejo fez com que ele perdesse isso... Mas tem uma narrativização [sic] da própria vida que é inigualável. Eu queria conseguir narrar assim a minha vida. Conseguir olhar para aquilo que não sabe, estou me lembrando no começo do livro daquela narrativa sobre a maldade, ali tem um homem perplexo diante da maldade, dos pais que foram educar o menino mal e acabaram se tornando maus também. Ele não quer explicar. Ele quer mostrar. Está aqui o humano, toma, o que você vai fazer com isso?

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