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CAPÍTULO 2 ‒ VOZES

2.7. O atravessamento

A travessia é o rio existencial, com nascente que se avoluma, com percursos acidentados, profundidades perigosas e margens assossegadas. É o atravessamento ‒ o percurso que se há de fazer para se chegar ao que não foi ainda descrito, ao que não é sabido, ao desconhecido assustador. É por isso que viver é perigoso, porque é necessária a travessia, caminhar e duvidar, sofrer e descobrir. A travessia de Riobaldo é a travessia da vida, constituída pelo rio já próximo à foz e refazendo o seu percurso até as nascentes que o compuseram. O senhor sabe que a vida é cheia de veredas e algumas podem ser “mortas”. As pessoas amolecem

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quando não sofrem, e o espírito também. Das desconstruções, é possível reconstruir-se para o grande desafio que é viver. A travessia é este exato momento. Por que o senhor sempre acha amanhã será o apogeu da existência? Da mesma maneira o senhor acha do passado? Deus age no mansinho, mas Ele larga a gente no meio da travessia, para que a gente possa ser a gente mesmo:

Eu penso que a travessia é uma continuação do perigo de viver, em alguns momentos temos medo de vivermos uma vida destrutiva, daí não podemos ficar no mesmo lugar. Eu lembro que uma vez eu li um livro e a autora dizia que podemos passar a vida inteira parados no mesmo lugar sem remar contra a correnteza, como podemos ao menos, tentar. Ela dizia que temos esperança e medo, e é necessário superar o medo para se atravessar qualquer coisa, isso dá vazão à esperança. Sempre que ele menciona essa questão da travessia, ele está em algum lugar, indo para outro, e tem um monte de coisas para enfrentar no caminho, tem pessoas estranhas, tinham uns homens estranhos... A vida talvez seja isso, não podemos ficar parados. Tem uma ocasião em que ele fala no livro que “as pessoas amolecem quando não sofrem” [risos]. A travessia não pode ser só moleza, não podemos realizá-la apenas em águas calmas, precisamos desenvolver músculos para enfrentar a correnteza. E tem a frase de Deus: “Deus vem, guia a gente por um caminho, depois deixa, e tudo resulta pior que antes”. É necessário atravessar. O próprio desenvolvimento humano ocorre em meio à ordem. e desordem. e reorganização para que o próprio cérebro consiga se desenvolver.

É a travessia que se conclui no momento em que ele pode ressignificar a própria travessia. Riobaldo caminha como um jagunço, e jagunço é um homem meio desistido de si, como ele mesmo fala. Ele pode fazer a ressignificação, na hora quem ele está no range de rede, como ele mesmo diz. É um amadurecimento. A travessia dele acontece sem ocultações, foi a de alguém que mergulhou no sertão, portanto, na vida. Na travessia há coisas boas e ruins, logo é muito boa a travessia. Riobaldo se perde e se reencontra em muitos momentos, isso é o mais bonito do livro, eu acho que nossa travessia é um perder-se e um encontrar-se o tempo inteiro, e há uma ressignificação quando na maturidade ele narra tudo com muita coragem. O livro termina com o símbolo do infinito e com “travessia”, isso quase nos pede que leiamos novamente o livro.

Para mim é a ideia mais maravilhosa do livro, a que mais me emociona... O filósofo Michel Serrés, no livro Filosofia mestiça, fala sobre a travessia, como uma metáfora, uma transformação... Como se você estivesse em um rio e, por algum motivo, você se lançasse nele para chegar ao outro lado. O começo é um desespero, você está apavorado, você bebe água, bate os braços desesperado até chegar naquele ponto que é o meio do rio. É o ponto equidistante, tanto faz voltar às margens ou seguir para outro lado. Nesse momento se forma uma raiz em forma de estrela que cresce para todas as direções, é o momento do aprendizado, você fica muito vulnerável porque abandonou a segurança daquilo que você sabia e agora está se lançando para algo novo. E esse processo de abandonar antigas crenças e se jogar nisso, nesse meio do caminho, esse é o aprendizado. Para mim isso se assemelha com a ideia da travessia do Riobaldo, quando ele atravessa o rio com a Diadorim. Ele tinha medo de água, ele não queria desistir, ele entra no barco e, quando ele chega do outro lado, ele não sabe dizer o porquê, mas ele não tinha mais medo, ele era outro Riobaldo; ele não sabe explicar o porquê, mas ele chegou ao final desta travessia com mais coragem. Ou o Guimarães leu o Michel Serres, ou este leu o Guimarães. A ideia da travessia ressoa para mim mais do que a ideia do

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Diabo. Porque o Diabo é a travessia. No fundo, talvez sejam a mesma ideia, mas a metáfora da travessia, para mim, é fabulosa.

A vida. O livro é uma travessia em si. O livro é o viver, o seguir, o cotidiano, essa ideia de continuidade, é o caminhar, o resistir... Não à toa, o livro termina com o símbolo do infinito, não é? É isso, travessia.

Essa música... Ah, eu falei música, porque virou música. O Milton fez a primeira parceria dele com o Fernando Brant, e eles pegaram o livro numa prateleira e disseram que o nome da música seria a última palavra do livro, e ele batizou a música por conta disso, e a travessia é a ideia do efêmero, do transitório, da jornada, da busca, de que nada é perene, nada vai durar para sempre, tudo está sempre mudando, e a nossa travessia é um grande aprendizado, a vida é uma travessia. E, se você pensar de uma maneira religiosa, isso fica ainda mais evidente. É um construir e se desconstruir o tempo todo. A travessia é isso. É essa busca de autoconhecimento e de jornada.

Tem a travessia física, de atravessar aqueles lugares, alguns lugares muito perigosos... Acho que vida da gente tem duas travessias também. A travessia de ter que conquistar, ter que fazer. Eu acabei de escrever a minha dissertação, foi uma travessia. A travessia mais importante do livro é a travessia existencial, de encarar os medos, os preconceitos, as fantasias, os desejos, as vontades, e eu atravessar na minha vida, e me reconhecer, e tentar perceber no nível existencial e do sentimento o que eu estou fazendo aqui. Essa é a grande travessia, a subjetiva. O sertão é essa travessia existencial, que é a travessia do Riobaldo pelo amor e ter que lidar com a perda, que também é uma travessia. Ele conta o livro, ele já está velho, o livro é uma rememoração, isso também é uma travessia. A vida da gente é uma travessia constante, estamos o tempo todo elaborando essas coisas...

Tem várias travessias ali, tem a travessia do Rio São Francisco... É a vida. Na vida, o mais interessante é a travessia. A expectativa para que haja um final magnífico nas coisas, faz com que as pessoas muitas vezes percam o processo, o durante. Quem disse que o final da nossa vida será magnífico? Pode ser que seja o meio dela, então a travessia que a gente faz é mais interessante que o início e do que o final, a gente fica preso na ideia do final e do início. As coisas mudam na travessia. “Nada basta, nada é assim de uma natureza tão casta que não macule ou perca a sua essência ao contato furioso com a existência”, um trecho do poema “Relógio do Rosário”, de Drummond. Nada basta. Nada é de uma natureza tão casta que não se macule, e essa mácula, eu acho, se dá na travessia. Isso é viver, não é? Uma mácula de uma suposta essência.