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CAPÍTULO 2 ‒ VOZES

2.8. O leitor no livro

“Eu procuro captar o fato, o momento – como no cinema! ‒, para colocar o leitor dentro da trama. O leitor precisa conviver com os personagens. Mas, para captar este momento. Por isso eu tenho meus caderninhos que me acompanham em todas as minhas viagens. Eu amarro um lápis com duas pontas e, no sertão, até em cima do cavalo eu escrevo. É o momento. Um passarinho faz um movimento – eu capto o movimento. Na hora, e o escrevo como o vejo. Mas só naquele momento eu poderia registrá-lo. Jamais poderia guardá-lo na cabeça para dali a algumas horas ir me inspirar nele para compor. Não. Não teria valor. (Passos et. al, 2006, p.74)

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O senhor acompanhou Riobaldo durante a travessia, ele precisou dividir com o senhor da substância humana dele próprio, mas o senhor certamente foi Riobaldo, viu pelos seus olhos, mergulhou nos seus abismos e deu-lhe as mãos quando ele estava com Deus ou com o Diabo, com Diadorim e com os jagunços. Mas em Diadorim, o senhor se encontrou, em algum momento, naqueles olhos verdes e dentes brancos apesar de pitar tanto, em seu mistério silencioso e na sua forma hirta, sisuda e misteriosa de amar. Era entre os dentes, em rasgos de olhar, em amuamento ou frases secas. De vez em quando, Diadorim brotava, ou era Riobaldo que florescia estando, sendo, ele. Dentro de Riobaldo, Diadorim se esconde, mas é dentro dele que Diadorim também aparece. O senhor deu os seus ouvidos, a sua história, o seu sentimento para não ter medo das águas do rio em cujo leito percorre em Riobaldo e Diadorim e cujos sentimentos seus e de Riobaldo ainda não tem nome:

Enquanto eu lia, às vezes eu dizia: “Nossa, isso aqui foi eu”, como com a minha identificação com a relação entre Joca Ramiro e Diadorim e o silêncio de Diadorim. Apesar dela estar sempre perto, sempre cuidando de Riobaldo, como quando este foi ferido na guerra e ele estava com o braço machucado, Diadorim sempre se aproximava para cuidar, mas sem dizer muito. Isto traz um pouco de mim, eu não tenho muita habilidade com as palavras, mas sempre, desde criança, manifestações de carinho e de cuidado sempre foram muito marcantes para mim, de chegar perto, de passar a mão no cabelo, de por a mão no ombro, muitas vezes sem nenhuma palavra, seguindo só um olhar, um meio sorriso, um olhar de “compreendo você’. Eu sempre me lembro da raposa no livro O Pequeno Príncipe, quando ela fala que a linguagem é fonte de maus entendidos. O silêncio de Diadorim me marcou muito no livro, a maneira como ele expressava a sua muita raiva em silêncio, pelo olhar que era uma “misturação de carinho e raiva”.

Sim, acho que essa insegurança, o medo de arriscar, de compreender as demandas do mundo e o que as pessoas esperam de você, eu me vi um pouco aí, o Riobaldo era assim: “Ah, eu sou homem, eu tenho que ser homem.” Ele se prendia muito no que as pessoas esperavam dele, então, ele não viveu o que ele tinha que viver e ainda tinha essas expectativas. Eu acho que todo mundo, em algum momento da vida, passa por isso: “Ah, eu vou fazer isso, o que as pessoas vão falar?”.

Vários. O mais óbvio deles é aquela tensão de tangenciar a homossexualidade, o estranhamento de olhar para um homem ou para alguém que eu ache ser um homem e não lidar de uma maneira natural com esse sentimento de ficar divido, preocupado, de tentar negar... Para mim foi o que mais se aproximou da minha trajetória de vida, pontuado pelo Riobaldo com sua sabedoria que se aplica a todos.

Eu me identifiquei com a questão do amor dele por Diadorim. Eu nunca me apaixonei por um homem que era mulher, mas já aconteceu comigo de eu ter amores proibidos, inconfessáveis, clandestinos. O amor do Riobaldo é um amor clandestino. Eu me identifiquei com o amor clandestino, de ser ilegal, às escondidas, não convencional e não aceito pela sociedade de maneira natural. Essa foi a parte que eu mais me identifiquei. O resto foi aprendizado, eu aprendi sobre o perigo, a travessia...

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Sim, tem uma frase: “Foi preciso conhecer Diadorim para que eu conhecesse o meu desejo, foi preciso conhecer Diadorim para eu conhecer eu mesmo”. Talvez a frase seja uma fantasia minha, mas se for, melhor ainda... [risos]. Eu me lembro que quando eu li a frase, isso havia acontecido muito comigo, teve pessoas que eu precisei conhecê- las para que eu conhecesse o meu desejo e conhecesse a mim mesmo; elas não me ensinaram ou explicaram como eu sou, mas, ao lado delas, eu pude conhecer quem eu era. Minha primeira namorada... Tem uma frase do Lao Tsé que diz assim: “Quanto mais curta a viagem, mais tempo ela leva”. Para você se conhecer a si mesmo, essa viagem é curta, mas o tempo que se precisa passar para se conhecer o outro não é curto. Conhecer Diadorim. Essa trajetória, para eu conseguir percorrer uma distância curta, de mim, comigo mesmo... É necessário passar por uma série de outras distâncias, abstratamente é uma relação entre alteridade e ipseidade, ou seja o outro enquanto o outro – alteridade ‒, e o outro em mim, ipseidade, deste modo, é preciso passar pela alteridade para que se consiga chegar à ipseidade.

Mas o senhor tomou coragem e percebeu-se a si mesmo, como Riobaldo, demoníaco, o senhor notou como o mundo é ao mesmo tempo misterioso e óbvio, houve o medo, mas houve coragem e houve o etcétera. Porque viver é mais do que perigoso, é etcétera também. Compadre Quelemém apresentou um espectro do mistério para Riobaldo e para o senhor, mas o mal vige e é necessária alguma reza para que se possa atravessar os mistérios profundos. O senhor viu Riobaldo amolecer e endurecer, mas não desistiu, ele nos deu as mãos:

Muitos. Muitos aspectos pessoais. Principalmente em relação às questões do bem e do mal. O quanto a gente tenta tomar boas atitudes, não consegue e se torna a pior pessoa do mundo, e isso é inóspito. É do ser humano. As inquietações do Riobaldo são as nossas inquietações, viemos de um lugar desconhecido e rumamos ao desconhecido maior, a nossa vida é esse intervalo entre dois grandes mistérios. Eu acho que o livro fala sobre essas inquietações.

Houve, o “viver é etcétera”, tem momentos muito difíceis no livro... Você tem que voltar, reler, então, eu acho que ele dá alguns momentos com muita clareza para facilitar a travessia da obra, inclusive, e aí quando eu li que “viver é etcétera”, eu me aliviei e disse “É isso, viver também é etcétera”. Minha vida nos últimos tempos passou por muitas perdas, muitas dores, muitas dificuldades, e essa frase me ajuda muito...

Essa questão de se trabalhar o que está implícito mais do que está no roteiro. A maneira de pensar dele, sobre Deus e o Diabo, eu penso assim também. Às vezes eu me questiono se existem ou não... E o espiritismo do Compadre Quelemén. Eu me lembrei em alguns momentos do jeito do meu pai falar.

O da travessia, que me ajudou a entender a travessia que eu tinha proposto a fazer e dos sofrimentos que eu estava passando, a adaptação, a saudade... Eu sabia que eu iria voltar diferente. Eu não tinha uma expectativa de como eu iria voltar, mas ler isso naquele momento me deu leveza. De fato, eu me sinto diferente, voltei diferente, a minha adaptação aqui tem sido um processo, a travessia ainda não terminou. Eu sei dirigir, eu sempre gostei de dirigir, mas eu sempre tive medo de me perder. Dirigir em São Paulo, para mim, era um horror. Quando eu cheguei lá, eu tinha que dirigir muito, em lugares em que o Waze não funcionava. De algum jeito eu venci esse pavor e ganhei

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pequenas coragens, na volta, na travessia... Eu não só perdi o medo de me perder, como eu passei a gostar de me perder, eu gostava de me perder nas estradas lá. Houve a percepção de uma coragem ganhada.

Eu falei já um pouco, da minha família, da família da minha mãe, e tem muita coisa. Eu não saberia individualizar uma situação. Como eu já falei do Riobaldo, essa busca de se encontrar no mundo e não ser só uma vítima no mundo. Foi numa época que eu tinha acabado de me formar, e eu estava bem perdido, eu via aquilo como uma maneira de encarar os meus próprios fantasmas, minhas próprias angústias, meus próprios demônios, então, eu me sentia um pouco naquela situação do Riobaldo.