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CAPÍTULO 2 ‒ VOZES

2.2. Sertão: Ser tão

“Decerto não poderíamos cortar: passagens em que se define, menciona ou caracteriza o ‘sertão’, ou a ele se alude; idem com relação ao ‘demônio’; idem quanto aos demais ‘leitmotiv’do livro. Também devem permanecer as exclamativas, cujas repetições relembram sempre o estado de espírito exaltado e atormentado do Narrador, que narra sempre a quente, em ritmo crispado, nervoso, preocupado com seu tremendo problema, de ordem metafísica.”(Passos et.al., 2006, p. 90)

“O senhor ri certas risadas...Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantâneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolerer, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campo-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão?Ah, que tem maior! Lugar sertão não se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; é onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.” (Guimarães Rosa, 2001, p. 23-4) “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...” (Guimarães Rosa, 2001, p. 35)

“Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão? Sertão: é dentro da gente.” (Guimarães Rosa, 2001, p. 325)

“Eu, que estava mal-invocado por aqueles catrumanos do sertão. Do fundo do sertão. O sertão: o senhor sabe.” (Guimarães Rosa, 2001, p. 406)’

“O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado..”(...) “O sertão é confusão em grande demasiado sossego...” (Guimarães Rosa, 2001, p. 470)

“Deus é urgente sem pressa. O sertão é dele. Eh!” (Guimarães Rosa, 2001, p. 519) “Sertão velho de idades(...)” (Guimarães Rosa, 2001, p. 558)

Sertão. Ser tão. O sertão está dentro da gente. Ser tão veredas. O sertão é feio e exuberante, rico e farto e “pobrepérrimo”. É um rio da vida, cheio de tormentas, quedas e leitos calmos. Ele costura o que tem dentro do senhor com as veredas, as verdades e os suplícios. O sertão dói e é gozo, tudo falta e tudo é muito. O sertão é paralisia e caminhada. É o meio do caminho. O senhor veja que até o governo tem medo do sertão, ou o sertão é o governo?

O sertão é o mundo, porque tem o seu próprio sistema político, e é até compreensível para quem está de fora deste sistema sertanejo, tanto na língua, quanto nas relações... Eu mesmo me perguntei: como existiu essa hierarquia paralela sem a interferência do Estado? Parece que houve alguma cumplicidade do Estado com a guerra dos jagunços... Até o coronel angaria lideranças para o Riobaldo...

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Eu me lembro de um julgamento na história no qual foi dada a liberdade para a pessoa que havia sido julgada, só que aquele que deu a liberdade foi morto pelas costas. Se trouxermos para os dias atuais, isso é muito real e muito presente, porque, embora a gente tenha leis e tenha tribunais, a pena de morte corre às soltas nas periferias... O sertão é o mundo, então, se no sertão quem regula é o mais forte, na civilização isso se repete... O livro suscita essa comparação já que a convivência em sociedade exige que se faça muitas concessões para se conviver e, se você quiser ser o correto a todo momento, haverá embates com outras pessoas e às vezes, rompimentos... No sertão, no grupo, você não sabe quem é inimigo, assim como na sociedade, embora tenhamos parâmetros que nos protejam; mesmo assim, se sobressai às vezes a lei da selva. O mais forte prevalece, é o que tem mais dinheiro, mais condições, é aquele que tem acesso ao conhecimento.

Há os de princípios e moral forte, representados por Riobaldo e pelos inimigos que ele mesmo aprecia pela integridade de suas palavras, honradas pelo código de relacionamento estabelecido nas palavras dos homens. Há os que são de todo malignos, os Hermógenes, os desumanizados, os que são impermeáveis ao que é honrado e cumprido com a balança da palavra.

O sertão é o mundo também, porque nele há pessoas humanas, com o seu real vivido, todos dotados de Deus e do Diabo, sendo necessário se conviver com todos no decurso da travessia e da coragem. O senhor há de reconhecer os tratos e contratos estabelecidos no sertão por todos os homens, e há de notar que Riobaldo reconhece que endurece e que amolece e que assumiu condição de honra, que é como a faca que corta em dois gumes. É necessário se ter muita coragem para se atravessar a vida:

É parecido com o mundo: será que são ambientes separados, ou esse sertão é o mundo trazido para dentro da gente, ou o “dentro da gente” trazido para este mundo? Há no romance essa dialética: é a forma como eu ajo no mundo, é a forma que o mundo age em mim... Esse sertão que está para além do que é humano e sobre-humano, até que ponto ele me influencia no meu relacionamento com o outro? Se optarmos em viver o “dente por dente”, o que a gente leva e com o que a gente escapa? Vou morrer, vou vingar, vou estar querendo matar, vou matar antes... Não se vive a lógica do “almoce o seu vizinho antes que ele jante você”? Eu acabo não conseguindo notar muita distância entre o sertão dos cangaceiros e a nossa realidade. Nos dias atuais, os professores são massacrados pela polícia quando vão protestar... Qual parte é sertão e qual parte é mundo e aonde é que eles se entrelaçam a ponto da gente não saber diferir o que é um e o que é outro?

(...) há um momento em que o livro fica meio indigesto, quando Riobaldo assume o poder, parece que ele se perde, faz muitas coisas ruins e se reencontra. Se a gente não se entrega para a vida, a gente não se entrega para o sertão. Viver carece coragem... Mergulhar no sertão, que é a vida, carece coragem.

Quem está mais armado é quem domina mais. As armas são muitas e incluem as palavras ou a ausência delas. Só às vezes é que se consegue amolecer as tristezas, ademais, o que prevalece é a dureza:

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O sertão é aquela dureza, o mundo é aquela dureza, o mundo é imprevisível, é chocante, você pode cair em armadilhas do destino, que você não controla, como o amor dele. O mundo é esse sertão, essa coisa sem controle, essa coisa perigosa... O sertão e o mundo sou eu e o mundo, a gente ter que viver e ser tão difícil, se reconhecer mal, seco, perigoso, poético e duro e ser o mundo. O sertão tem essa dureza. A travessia do livro por lugares tão difíceis é a travessia nossa do dia a dia, o meu sertão interno e o mundo.

Assim como a vida, a travessia no sertão exige que se seja “mal, seco, perigoso, poético e duro e ser o mundo”. É preciso ter coragem, diria Riobaldo. O sertão é interno e externo, está dentro de todos e está ao redor; é a parte pelo todo e o todo pela parte, mais um infinito. Mas o sertão também é o contrário do que se possa ser. É também ser tão oposto e tão avesso. O sertão é o mundo a ser desbravado que, ao mesmo tempo, nos aprisiona. É o ser tão cheio de veredas, o próprio homem, seco e úmido, em contradição, em oposição, caminhando pelo seu próprio deserto existencial, um “desertão”. O homem é um grande ser tão veredas:

Eu acho que o sertão interpreta o mundo... Às vezes me vinha “ser tão”, “ser assim tão”, “ser tão: veredas, ser tão: caminhos”. Eu me lembro do Rosa colocar “Minas Gerais” como “Minas que estão em todos os lugares”. Ele fala: “O sertão está em toda parte”. Surge-me o “Desertão” de que fala o Alfredo Bosi... O sertão seria uma expressão derivada de “deserto” grande, um “desertão”. Mas tem alguma coisa naquele título, naqueles dois pontos (do título) que me fascinam. Ele coloca de um lado “Grande Sertão” juntos e de outro, “Veredas”, e entre os dois, dois pontos. Eu nunca entendi direito esses dois pontos. Porque eu não acho que seja o uso de dois pontos no sentido que a gente usa, explicação. Eu acho que ele significa também a oposição ‒ de um lado o “Grande Sertão”, que me remete a algo seco; de outro lado, o “Veredas”, que me remete a algo úmido, uma oposição entre os dois. O sertão é o mundo, cabe a nós encontrarmos algumas veredas no interior dele, as nossas veredas.