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CAPÍTULO 2 ‒ VOZES

2.3. A palavra lavrada

“Eu não crio palavras. Elas estão todas nos clássicos, estão nos livros arcaicos portugueses. São expressões de muito valor que eu pretendo salvar. Em ‘Sertão: Veredas’ há palavras que nem em Portugal se falam mais. Mas existem. Para determinadas passagens, entretanto, não existem palavras. Então é preciso criá-las, ou redescobri- las através de sons que a correspondem” (Passos et.al, 2006, p. 94)

“Há dois componentes de igual importância na minha relação com a língua. Primeiro: considero a língua como meu elemento metafísico, o que sem dúvida tem suas consequências. Depois, existem as ilimitadas singularidades filológicas, digamos, de nossas variantes latino-americanas do português e do espanhol, nas quais também existem fundamentalmente muitos processos de origem metafísica, muitas coisas irracionais, muito que não se pode compreender com a razão pura. (...) O bem-estar do homem decorre do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva a palavra, ele descobre a si mesmo. Com isto repete o processo da criação. Disseram-me que isto era blasfemo, mas eu sustento o contrário. Sim!, a língua dá ao escritor a possibilidade de servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e de vencer o Diabo, inimigo de Deus e do homem (...). Deus era a palavra e a palavra estava com Deus. Este é um problema demasiado sério para ser largado nas mãos de poucos ignorantes com vontade de fazer experiências. O que chamamos hoje de linguagem corrente é um monstro morto. A língua serve para expressar ideias, mas a linguagem corrente expressa apenas clichês, e não ideias” (Guimarães Rosa, apud Günter Lorenz, 1983, pp. 33-55)

“A Língua Portuguesa, aqui no Brasil, está uma vergonha e uma miséria. Está descalça e despenteada; mesmo para andar ao lado da espanhola, ‘ela não tem roupa’. Empobrecimento de vocabulário, rigidez de fórmulas e formas,

38 estratificação de lugares-comuns, como caroços num angu ralo, vulgaridade, falta de sentido, beleza, deficiência representativa. E preciso distendê-la, destorcê-la, obrigá-la a fazer ginástica, desenvolver-lhe músculos. Dar-lhe precisão, exatidão, agudeza, plasticidade, calado, motores. E é preciso refundi-la no tacho, mexendo muitas horas. Derretê-la, e trabalhá-la, em estado líquido e gasoso” (Passos et.al, 2006, p. 92)

Com a primeira palavra do livro, seguida de um ponto ‒ “Nonada.” ‒ Riobaldo inicia a sua narrativa aludindo ao nada, ao vazio, ao profundo, ao “no nada” das coisas, seguida de tiros que foram ouvidos na vastidão do sertão exterior e interior da narrativa . Riobaldo atenta ao senhor que vive em lugares da cidade que o mundo-sertão é cheio de veredas ocultas e que, mesmo quando se apresentam, não se revelam facilmente. Se o senhor conhecer a geografia e as pessoas do sertão, facilita. Senão, não tem problema. O senhor tenha coragem e ímpeto em acompanhar a narrativa do jagunço:

Foi um pouco difícil a compreensão exata do sentido da palavra, algumas expressões pareciam até de raiva. Mas, mesmo desconhecidas, as palavras inspiravam, eram flexíveis, poderiam ser de uso local ou poderiam de ser de uso erudito, mas, fora de uso, mas elas ganham sentido no contexto. No fundo, tanto os sentidos quanto os significados transcendem ao que a própria palavra poderia imediatamente significar. As palavras tinham sentido naquele momento específico.

Guimarães conhece tão bem o português, tão bem a estrutura da língua e a da palavra, que ele se permite, de tão bem que ele conhece, fazer recriações. Alguns dizem que é a linguagem do sertão... Não seriam neologismos, seria o modo de como eles falam, mas a linguagem do Guimarães é a cereja do bolo no livro. Ele vai às últimas consequências com a língua, o que deixa o livro mais difícil e, ao mesmo tempo, mais fascinante, pois, a cada releitura, um novo livro se apresenta, há sempre capturações [sic] inéditas. Impossível compreender o livro em apenas uma leitura, isso é genial.

No começo é muito difícil a leitura, porque algumas palavras não existem nem no dicionário. Eu perguntava para a minha mãe algumas palavras, e algumas ela ainda sabia, porque ela era do interior e se lembrava. Mas algumas palavras inventadas só vão fazendo sentido no decorrer da leitura. Acho que há essa questão, de não se estar preso às convenções. Ele rompe com o que é esperado.

Eu gosto muito dos neologismos. Quando eu li Grande Sertão: Veredas pela primeira vez, eu era adolescente ainda, e ‘nonada’ é uma expressão que sempre retorna à minha memória... A primeira vez que eu li, meio displicente, essa expressão ficou muito tempo na minha cabeça. Trabalhando com psicóticos, eu trabalho muito com eles, a gente percebe que eles fazem uso de neologismos. Toda vez que eu leio os neologismos, eu me sinto mais livre. Em casa e até mesmo no consultório.

Diziam para mim que era um livro difícil de ler. Depois que eu li, eu tive a sensação de que eu não compreendi o que devia. É um livro fácil de se ler e difícil de se apreender. A questão da linguagem, que muitos dizem ser um obstáculo para a leitura, não foi uma dificuldade para mim, talvez pela minha origem interiorana. Algumas passagens do livro eram carinhosas para o meu ouvido. Apesar de uma linguagem própria, o livro é claro nas ideias e nas imagens que o narrador descreve. As imagens são muito claras, mas as ideias possuem muita profundidade, e isso é mais difícil. Essa

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questão da linguagem é deliciosa, porque é familiar. Quando se conversa com um mineiro típico, pode haver certa dificuldade em se compreender algumas palavras. Outras vezes, pode se pensar que o que ele falou era errado e, se você pesquisar, verá que a palavra é antiga e caiu em desuso e, na verdade, ele está, ao contrário do que se pensava, falando muito bem. Há uma ressignificação de como o mineiro e o sertanejo falam e, ao mesmo tempo, as construções feitas pelo autor, similares ao que acontece em outras línguas, faz [sic] com que isso atinja outra dimensão. Soma-se a espontaneidade e a tradição do lugar com a maneira de construir a linguagem conforme a necessidade de expressar coisas que as palavras existentes não dão conta, então os neologismos fazem isso. Eu imagino as pessoas do sertão falando daquela maneira e fica real, não é forçado.

Apesar de eu ter facilidade com leituras, no começo, eu tive um pouco de dificuldades com o livro. Foi o primeiro livro do Rosa que eu li, eu acho que deveria ter começado por outros. No começo, é necessário abstrair os neologismos, mas, no fundo, se compreende. É como ler em outra língua sem dominá-la totalmente, você lê mesmo assim. Era como aprender uma nova linguagem, mas tem uma hora que começa a ficar simples. Quando se está na metade do livro, a linguagem está mais incorporada, fica mais fácil.

O senhor note que Riobaldo tem a voz nos seus pensamentos. Há sons e musicalidade, palavra por palavra, que faz barulho, sussurra, dá tiros no meio da guerra, simula os rios e a natureza e traduz o que é ouvido por debaixo do chão e acima dos céus. Para se ter Deus, é necessário ter a palavra como contato, como criação e “transcriação”. O elo místico do livro é cimentado e levantado com as palavras em consonância com o que foi esquecido nas veredas da língua ou que foi esquecido pela falta de uso em armários antigos, quase abandonados, das palavras. Riobaldo enlaça Deus e o Diabo pela palavra transcendente, às vezes imediatamente incompreendida, mas que matura em redemoinho dentro da cabeça do senhor:

A linguagem foi uma grande barreira para mim no começo, foi o que me fez desistir do livro antes... Para mim foi importante estar ali, no sertão, e ouvir os vaqueiros, gente da roça. Eu comecei a ler o livro em voz alta e a leitura passou a ter um ritmo... Não eram só palavras e neologismos em si, havia um encadeamento. Havia palavras que eu não entendia, mesmo estando lá no sertão, mas, naquele ritmo e sequência, faziam sentido, eu conseguia me ouvir em voz alta. Eu ficava inquieta, como ele conseguiu compor aquilo sem ser sertanejo? É uma linguagem universal, qualquer um pode ler, é peculiar e muito direta.

Eu acho que as palavras formais não são suficientes para expressar realmente o que as pessoas sentem ou pensam. Essas palavras inventadas tentam ser fieis ao que o autor está sentindo. Quanto mais a pessoa inventa a maneira de se expressar, mais ela está sendo fiel consigo própria [sic].

A questão da linguagem é a que eu mais gosto. “O vento a-e-i-o-uivava.” O livro começa com “Nonada”, que eu acho que significa “não é nada”, mas ele junta tudo, tem a ver com estar no nada. Eu passei a gostar mais do português, fiz as pazes com a minha língua. Foi como se tivessem me dado uma nova língua, que eu podia criar também. Há

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uma experimentação, eu vejo no Rosa uma espécie de “oficina da palavra”. A não aceitação da língua como ela está e poder criar, que é o neologismo, é muito libertado [sic].

A transformação da língua é fundamental para se atingir a transcendência, a ascese e a metafísica do senhor e do jagunço. O senhor há de não desistir desta força, que arma e desarma as palavras.