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A liberdade: o núcleo ético da tarefa literária

Temos que entender que para Sartre, na literatura, os leitores fazem parte do ato constitutivo da narrativa, por isso a leitura não é somente apropriação ou mera contemplação. Podemos dizer que o exercício da leitura será antes de tudo, trabalho, não será apenas uma literatura como mero consumo de distração para matar o tempo.

Pois o objeto literário é um estranho pião, que só existe em movimento. Para fazê- lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, e ele só dura

enquanto essa leitura durar. Fora daí, há apenas traços negros sobre o papel238.

Quanto ao termo “trabalho” devemos ter sua compreensão marxista, como valor constitutivo do próprio homem. Pois o fazer, uma das esferas da realidade humana, encontra-se fora ou nula da sociedade burguesa, onde o trabalho é alienado. Ou seja, Sartre reivindica a práxis, que resume-se na compreensão de que o homem possa reconhecer a si mesmo perante sua atividade produtiva.

O escritor "engajado" sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar. Ele abandonou o sonho impossível

de fazer uma pintura imparcial da Sociedade e da condição humana.239

Nisso a tarefa da literatura se designaria no reflexo da imagem da sociedade, em sua denúncia, propondo a práxis e negando o trabalho alienado como ao mesmo tempo se impondo como ação criadora da humanidade.

237

Sartre, Que é literatura?, p. 39.

238

Idem, p. 35.

239

Podemos concluir que o escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade. Ninguém 'pode alegar ignorância da lei, pois existe um código e a lei é coisa escrita: a partir daí, você é livre para infringi-la, mas sabe os riscos que corre. Do mesmo modo, a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele. E uma vez engajado no universo da linguagem, não pode nunca mais fingir que não sabe falar: quem entra no universo dos significados, não consegue mais sair; deixemos as palavras se organizarem em liberdade, e elas formarão frases, e cada frase contém a linguagem toda e remete a todo o universo; o próprio silêncio se define em relação às palavras, assim como a pausa, em música, ganha o seu sentido a partir dos grupos de notas que a circundam. Esse silêncio é um momento da linguagem; calar-se não é ficar mudo, é recusar-se a falar - logo, ainda é falar.240

Com isso, chegamos a elucidar o que é próprio da literatura: o trabalho de negação perene, que sempre está em movimento, superando, contudo, o que já foi negado anteriormente. Logo, a literatura tem por sua tarefa superar a alienação. Contudo, temos aqui a relação entre ética e literatura como realizada por via de uma literatura da práxis. Quer dizer que essa literatura é entendida como aquela que leva o sujeito a ver-se como produtor da história (qualquer fazer é antes de tudo fazer história) e assim a reencontrar-se na relação entre o fazer e o ser, já que o fazer é revelador do ser. A literatura da práxis responde à solicitação histórica da nossa época. Não descreve o mundo; revela-o nos empreendimentos humanos241.

240

Sartre Que é literatura?, p.21-2.

241

CONCLUSÃO

Nosso trabalho, após o exercício de compreensão das obras literárias A náusea e O muro, teve, por objetivo, esboçar a relação de sustentação recíproca entre literatura e filosofia em Sartre, proporcionada pelo esclarecimento mais amplo do termo vizinhança comunicante do filósofo Franklin Leopoldo e Silva, do qual, também, nos possibilitou prosseguir para um melhor entendimento da estrutura do pensamento sartreano.

Desenvolvendo a teoria da contingência, especialmente no caráter moral da vida, quer dizer, de nossa condição humana, sinônimo de pobreza e insuficiência, foi possível observar a expressão literária quanto filosófica em Sartre como expressões estritamente em conexão com homem perante seu conhecimento e enfrentamento da realidade humana.

Contudo, nossa pesquisa possibilitou a constatação de uma continuidade sem rupturas no pensamento sartreano que se desenvolveu após sua teoria da contingência dos resvalamentos de uma vida gratuita da qual nunca poderemos nos desvencilhar. Isso se expressou de uma maneira que conservou todos os desenvolvimentos das idéias expressadas em A náusea quanto em O muro - da vida apática, injustificável, contingente e passiva de quaisquer infortúnios onde tudo pode acontecer - para uma responsabilidade perante os fatos sofridos, onde é a mim que

corresponderá eu mesmo, pois “todo acontecimento é meu acontecimento.”242

Foi possível examinar, em nosso estudo sobre uma relação harmoniosa entre literatura e filosofia em Sartre, a existência de uma ética que remete para uma estética, e, que se dão juntas, mostrando, desta forma, que há uma relação intrínseca entre ambas, mas, no entanto, não se confundem. E, neste sentido, a tarefa da ética em relação à arte, mais especificamente a literatura, tende a acompanhar a atitude de um exercício concreto eminente ao conhecimento humano, onde “escrever será agir”.

Uma compreensão de maneira mais aprofundada da expressão vizinhança comunicante proposta por Franklin Leopoldo e Silva, fez dela uma chave de leitura que perpassa e transparece as noções ambíguas das quais aparecem, por exemplo, nas relações entre literatura e filosofia, consciência e mundo, metafísica e história e ética e estética. Todas essas relações que foram fundamentais para a compreensão de nosso presente estudo.

Vimos que Sartre não pretende cumprir uma filosofia que se isole somente de um lado, pois não se pretende ficar apenas no Idealismo absoluto, em uma metafísica abstrata. Do mesmo modo, não pretende colocar-se apenas do lado de um Realismo relativista. Pretende-se sim, compor um pensamento que admite os dois lados simultaneamente: ser absoluto e concreto ao mesmo tempo. Uma díade que forma uma só estrutura. E nisso, tivemos aqui a intenção de esclarecer a filosofia sartreana propondo, então, por esse caminho, uma melhor compreensão de seus temas mais fundamentais, por isso propomos essa chave de leitura, essa alternativa que possa ser bem útil, permitindo o melhor entendimento desses momentos decisivos da filosofia de Sartre.

O termo vizinhança comunicante trouxe à luz a própria maneira como Sartre trata a articulação de sua filosofia, conseqüentemente, da realidade humana, que define-se na ambigüidade. Percebemos que existe a tensão entre os termos em toda sua filosofia, pois a ambigüidade, que é característica da realidade humana, nunca é desconstruída, superada, pois os termos estão sempre em tensão, em uma manutenção eterna em que o homem sempre fracassará ao tentar eliminá-la.

Por fim, pudemos compreender aqui, em nossa pesquisa, ao lado do aprofundamento conceitual da fenomenologia existencialista promovida pela literatura, que se desvela a última e talvez mais nobre tarefa da narrativa sartreana: a função ética e social do enfrentamento da realidade concreta da situação presente do absurdo.