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Trabalharemos aqui a idéia de situação-limite, termo novo em nossa pesquisa que refere-se ao enquadramento circunstancial levado às últimas conseqüências. Devemos salientar que nossa personagem de A náusea não experimentou tal situação, à ela, poderíamos dizer, “que estagna-se na melancolia contemplativa a par de um tempo indeterminado”. De qualquer forma ela quer se salvar dessa relação que tem com sua vida gratuita, como também da desordem em que seu mundo se configurou.

198Compreender que nossas escolhas, nossas condutas se expressão nas exigências de nossa situação presente (época, classe social, família) consoantes a nossa liberdade determinante de nossas escolhas e projetos.

O enfrentamento por Ibbieta na situação-limite, de uma história avassaladora, o fez viver concretamente esse caráter inacabado do mundo humano em que se inserem as nossas ações. Ao passo que Roquentin ainda alimenta ser necessário, mesmo que sutilmente desencorajado, em um talvez aos seus projetos compromissados em um mundo contingente - nele não há abalo total. Por isso sua esperança na arte, seu compromisso por uma moral estética, a de ser salvo por um ser necessário que é o objeto artístico inexistente, ou melhor, como foi definido por Sartre em Diário de uma guerra estranha como o foi também em O imaginário, como sendo o irrealizável200. Por isso a personagem de A náusea não alcança o cume da situação-limite, definida pelo nosso autor como “o mais profundo conhecimento que

o homem pode ter de si mesmo”. Roquentin não o atinge como também não o

deseja. Esperançosamente, ainda pensa em alternativas, mesmo sendo estas vãs e ilusórias, comportando-se, então em ato de má-fé.

No romance A náusea percebemos que personagem ainda tem um futuro, mesmo tendo a suspeita de algo que já sabe, que suspeita, porém, ainda não a vive concretamente. Claramente notamos que em seu embate histórico ainda prevalece a esperança, mesma esta sendo fugidia e ambígua, que floresce na relação de escolhas, invertidas intrínsecas na história, mas que não passam de soluções voláteis na atmosfera densa do presente vivido.

O compromisso de Roquentin ainda se manifesta na esfera de si mesmo, pois o entrelace na concretude da historicidade, que seria o outro pólo de convergência, somente foi atingido por Ibbieta em O muro.

O tragicômico

Todo o alicerce de seriedade que Ibbieta se sustentava e investia em suas ações como combatente da justiça histórica desaba completamente diante de sua finitude, de sua gratuidade, relativizando tudo em sua volta. Anteriormente ele colocava-se a serviço da história e percebia agora que era o mesmo que colocar sua 200 No próximo capítulo examinaremos especificamente a impossibilidade de uma salvação pela arte.

própria liberdade a favor de nada. Como também foi possível percebermos que Roquentin como historiador, disponibiliza sua liberdade ao Marquês, onde, logo depois, vimos que desaba também essa solução.

A descoberta da existência é ao mesmo tempo a dor de se sentir abandonado por aquilo que nos protegia da contingência. Mas uma vez assim capturados pela verdade, sabemos, a partir de então, que a existência tem de ser vivida, não pode

ser objetivada ou transferida201

Dada a oportunidade pelos guardas a escolha de poder entregar Ramón Gris aos fascistas em troca de sua liberdade, Ibbieta hesita em fazê-la. Neste ponto, para um sujeito já absurdo, a equivalência em torno de sua vida é que se expressa, para ele tanto faz, e não devemos entender, nesta sua atitude, como um ato de coragem. Pois tendo por sua vida um conjunto de ações gratuitas, a falta de sentido por sua vida foi o que a história lhe prostrou. Ter sua vida de volta é totalmente gratuito para ele, pois quando ele atravessa a absurdidade já não atribui qualquer sentido à vida – e é nesse ponto que ele ultrapassa a personagem de A náusea.

Queria, contudo, compreender a razão da minha conduta. Preferia morrer a denunciar Gris. Por quê? Eu já não gostava de Ramón Gris. Minha amizade por ele tinha morrido um pouco antes de amanhecer, juntamente com meu amor a Concha, com meu desejo de viver. Eu o estimava, sem dúvida; era um sujeito duro. Não era por esta razão, porém, que eu ia morrer em seu lugar; sua vida não tinha mais valor do que a minha; nenhuma vida tinha valor. Encostavam um

homem num muro, atiravam nele até que morresse – eu, ou Gris ou outro qualquer

era a mesma coisa. Sabia que ele era mais útil do que eu à causa da Espanha, mas a Espanha e a anarquia que levassem o diabo; nada mais tinha qualquer importância. Entretanto eu estava ali, podia salvar a pele entregando Gris e me

recusava a fazê-lo. Achava tudo aquilo muito cômico; era pura obstinação202.

Sua escolha é feita a seu critério, o valor posto como regra pré-estabelecida de sua conduta não mais existe, como outrora era exercido nele pelo seu partido, mas agora orienta a si mesmo sendo sua própria bússola apontada sempre para sua liberdade. Com isso verificamos sua escolha moral – não existe quadro de valores morais preestabelecido, somente existe ele diante si mesmo, na sua irremediável

201Silva, Franklin Leopoldo, Ética e literatura em Sartre, p. 46

finitude: nada mais de grandioso, o que agora se tem é apenas sua finitude e a gratuidade de sua própria vida.

Portanto, para Ibbieta há o desaparecimento das ações ditas grandiosas, pois, agora, como todos os homens se equivalem, nenhum homem é superior ao outro, nenhum herói. O que resta para ele é apenas o cômico da existência. O ridículo.

A personagem de O muro sabe muito bem que Gris se esconde na casa dos primos, porém prega uma peça aos guardas fascistas com intenção de debochar de suas seriedades, querendo dar um desfecho inusitado e tendo com isso seu último ato nesse conto tragicômico. Imaginando os guardas todos sérios procurando e revistando túmulo por túmulo, ri por antecipação, antevendo tudo aquilo como uma grande piada.