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No livro O imaginário, Sartre utiliza-se da noção fenomenológica husserliana da consciência, como já foi possível compreender, para a ontologia do objeto artístico. Essa continuidade do estudo da consciência elucidará o ser do objeto

artístico em sua própria natureza. E isto está referente à imaginação, ao imaginário, onde a consciência do objeto artístico, de forma ativa, realiza o objeto na imaginação por meio da materialidade, por exemplo, de notas musicais, das cores, como também das palavras.

A natureza da realidade artística não é a realidade do mundo natural. Por isso verificamos que a arte insere-se no campo da imaginação, do imaginário. Uma criação configurante de um mundo irreal. Isso será bem significante porque a moral quando pensada como criação também, temos que enfatizar que sua natureza está necessariamente referente ao mundo real, para o que é perceptível. A diferença, distinção que temos de início, é que a arte é obra da imaginação enquanto a moral está diretamente relacionada á percepção. E isso já diz muito, por ora, pois Sartre nos seus estudos sobre a natureza da consciência afirma que uma consciência não se reduz a outra em um só ato. Ou seja, não é possível duas consciências, duas intenções, se dá ao mesmo tempo. Por exemplo, se imaginamos não podemos perceber ao mesmo tempo. Como ao modo de paralaxe intencional que nunca se dá ao mesmo tempo: a estética e a ética. Desta forma, em O imaginário, temos a consciência imaginante como negação à consciência perceptiva, sendo, no entanto como negação do real. A estética nega para onde a ética se volta.

Vimos anteriormente que consciência é como um movimento ao mundo, às coisas e aos outros. É movimento em direção ao que ela não é, e esse modo de direcionar é seu ato de existir. Se viso de uma maneira o mundo, um outro modo não pode se dar ao mesmo tempo. Se me volto como consciência imaginante para o mundo, isso já se faz uma negação que tenho perante o percebido, portanto, obtenho um sentido qualquer do que me foi dado.

O foco da observação que encontra-se no capítulo dedicado a obra de arte (o último da obra O imaginário) corresponde sua natureza de ser irreal. Uma citação de início poderia nos colocar desde já a par dessa compreensão. É o caso em que Sartre exemplifica a relação perante uma obra, o retrato de Carlos VIII:

Compreendemos logo que esse Carlos VIII era um objeto. Claro, não se trata de um objeto como o quadro, a tela, as camadas reais da pintura. Na medida em que

consideramos a tela e o quadro por si mesmos, o objeto estético “Carlos VIII’ não

irá aparecer. Não porque esteja escondido pelo quadro, mas porque dar-se a uma consciência realizante. Irá aparecer no momento em que a consciência operando

uma conversão radical que supõe a nadificação do mundo, constituir-se-á ela

própria como imaginante.224

Carlos VIII é um irreal na medida em que é apreendido na tela, como objeto estético, onde teríamos noções de emoções, doçura e graça pelas nossas apreciações estéticas. Nisso, a obrigação ao reconhecimento da irrealidade do objeto estético quando notamos a distinção e distância quando feita a compreensão, quase sempre confusa, sobre o que se faz entre o real e o imaginário na própria obra de arte. Freqüentemente se diz que um pintor ao imaginar uma imagem

“realiza-a” quando a pinta, entregando esse objeto à contemplação de outros, e nisso entende-se que houve, desta forma, a passagem do imaginário do artista para o real. Ele, enfim, realizou a obra, pois a fez ser contemplada no mundo. Mas isto será um engano:

Daí a hipótese de que houve passagem do imaginário ao real. Mas não é verdade. O real está, é preciso reafirmá-lo, no resultado das pinceladas, na aplicação das tintas na tela, em sua granulação, no verniz passado nas cores. Mas precisamente

tudo isso não cria o objeto das apreciações estéticas. O que é ‘belo’, ao contrário,

é um ser que não poderia dar-se à percepção e que, em sua própria natureza,

está isolado no universo.225

O que deve-se entender é que o pintor não realizou o objeto do imaginário, mas como Sartre diz, ele apenas “constituiu um objeto analogon material de tal modo que todos pensam apreender essa imagem considerando apenas o analogon”226. O que poderíamos afirmar é que do imaginário há sua “objetivação”,

diferentemente de sua realização, como poderíamos afirmar que na constituição do conjunto que se compõe de tons reais pudesse permitir que objeto artístico, esse irreal, se manifeste. O quadro concebido como materialidade é passivo a um espectador que assume a atitude imaginante, onde dessa coisa material exala, por meio de sua consciência, o objeto artístico, o irrealizado. E, por meio dessa manifestação, resultará um conjunto irreal, que somente povoam o objeto artístico, sem jamais se encontrar no mundo.

Temos diferentes modos de lidar com um quadro, como primeiramente vê-lo sob a perspectiva da consciência perceptiva, onde levar-se-ia em conta,

224Sartre, Jean-Paul. O imaginário, p.245-6

225Ibdem, p. 246.

propriamente, a materialidade do quadro como suas cores, texturas, linhas e etc. Logo depois, minha intenção descortinaria o perceptível e seguiria adiante no imaginário, onde sua concentração, já além da características físicas que se põe fixa ao fundo, já as tornam impossível enxergá-las. A impossibilidade de ver o quadro dos dois modos é ao mesmo tempo afirmarmos que percebemos ou negamos a fim de apreender o sentido artístico que está para além da materialidade do percebido.

Então, o que podemos notar é que essa manifestação é dependente da tela, quer dizer, da coisa material. Logo, a fruição estética do objeto imaginário, sua constituição e sua apreensão, se dão através da tela real que é posta como irreal pela consciência imaginante.

Para mim, quando escuto a Sétima Sinfonia, ela não existe no tempo, não a apreendo como um acontecimento datado, como uma manifestação artística que se desenrola na sala do teatro Châtelet a 17 de novembro de 1938. Se amanhã, se daqui a oito dias, escuto Furtwangler dirigir outra orquestra que interpreta essa sinfonia, estarei de novo em presença da mesma sinfonia. Apenas será bem ou mal executada (...) Na medida em que a apreendo, a sinfonia não está aqui, entre

estas paredes, sob este arcos. Ela também não é do ‘passado’ como se eu pensasse: essa é a obra criada em tal data pelo espírito de Beethoven. Está inteiramente fora do real. Tem seu tempo próprio, ou seja, possui um tempo interno, que transcorre da primeira nota do allegro até a última nota do final, mas esse tempo não pertence à seqüência de um outro tempo que ele continuaria e

que estaria “antes” do ataque do allegro, também não será seguido por um tempo

que viria ‘após’ o final. A Sétima Sinfonia não está de modo algum no tempo. Escapa inteiramente ao real.. seria impossível agir sobre ela, mudar sequer uma

nota ou tomar mais lento o seu movimento”227

Esse ser irreal, de natureza estética, depende inteiramente para sua aparição, do real, pois, convenhamos que a execução da peça em um teatro seja interferida acidentalmente por uma fatalidade ao maestro ou qualquer coisa do tipo, como também poderia acontecer ao próprio ambiente acústico, sua interrupção iria expor a natureza da execução como sendo o analogon da Sétima Sinfonia, pois ela somente poderia se manifestar por um análoga que são datados, situados no desenrolar de nosso tempo, onde a atividade imaginante diante o percebido faz com que sua apreensão, aos sons reais como análoga, seja veículo ao ser artístico perante essa redução imaginante.

O que quer dizer que a consciência imaginante “pula” para fora do campo percebido, estando nessa atividade imaginante ausente, ela encontra-se fora do 227 Ibidem. P. 250

campo concreto, porém não em outro mundo como supôs Platão ao garantir o mundo das idéias, um céu inteligível, pois isso seria afirmar que elas estariam fora do tempo e do espaço como as essências. O que Sartre quer expressar é que o objeto artístico está fora do real, quer dizer, fora da existência228, pois “eu não a escuto realmente, ouço-a no imaginário”229.