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A aventura seria a narrativa, uma ordem de eventos necessários, de estabilidade e que Roquentin gostaria de ter na sua vida. Há uma necessidade de estabilidade. A narração faz produzir como que uma miragem que engana o próprio narrador, pois 120 Veremos mais especificamente a frente quando trataremos da arte como enfrentamento.

esse verá necessidade nos fatos daquele instante que ocorreram em sua narração posterior.

O presente sempre desconectado do passado - mas, a respeito do qual, Roquentin é ele mesmo em todo seu passado como relido e re-significado, nunca havendo uma continuidade na vida, uma justificativa anterior, não sendo necessário, e no presente há sempre a sensação do inesperado, pois tudo pode acontecer nessa gratuidade.

Isso tudo incomoda Roquentin, pois essa ausência de necessidade faz com que o presente se torne uma ameaça, e, havendo somente o presente, o mundo se torna um lugar perigoso, que antes era percebido como algo estável para a vida, mas que agora só existe do ponto de vista da sua gratuidade. As coisas perderam seu sentido e não há como se orientar agora, tudo permanece instável. Resta a Roquentin continuar a ser passivo face aos perigos desse mundo imprevisível, o mundo existente, o mundo heraclitiano que não conserva nada do instante passado.

Roquentin percebe que a vida parece depender de uma narração, de um narrador, onde todos os fatos são necessários, tudo tendo seu significado para haver articulação, sempre contando com esse fio, o de que a finalidade conduz os eventos. A vida real comporta-se diferentemente, na instabilidade, e não em um contínuo sentido, rumo aos acontecimentos sucessivos. Na existência, nada tem uma teleologia, uma conexão entre os fatos que assegure sentidos. Roquentin constatará a perda do passado, ele verá que o passado não justifica o presente, não torna a vida no presente mais necessária. Quando Roquentin conta uma história passada que aconteceu com ele - ele se narra - tem a impressão que os eventos possuem uma fatalidade, em toda a narração há um encadeamento necessário. As coisas nessa narração se mostram como organizadas por um fio teleológico que as expõe como se fossem dotadas em uma espécie de fatalidade. Depois, Roquentin verá que, na vida, nos acontecimentos presentes, tudo se mostra contingente, gratuito e espontâneo.

Queria Roquentin que sua vida pudesse assumir uma validade preciosa, rara.121 Pensava ele sobre as aventuras, mas que, no entanto ele percebera que aquelas aventuras só poderiam existir somente ali, na literatura, nunca sendo igual

na realidade. Sente a necessidade, no meio dessa sensação de desordem em seu mundo, que sua vida seja um tipo de construção melódica, assim sendo indestrutível, completa e acabada. Ele sente uma ânsia de regularidade em sua vida. O fato narrado já é o todo, são causas e efeitos: “Quis que os momentos de minha vida tivessem uma seqüência e uma ordem como os de uma vida que recordamos.

O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo.” 122

Quando Roquentin faz uma analogia como a uma doença que nele se instala123, Sartre aqui enfatiza o corpo, os sentidos, por fim a Náusea é uma sensação e dela não há dúvida, o que Roquentin quer saber é sua causa, e é onde a trama dá um tom de suspense na investigação pela origem dessa sensação que mostra-se posteriormente sendo ele próprio. Nada para Roquentin foi premeditado, as sensações de Náusea, por virem como uma doença, poderia nos fazer pensar que ele não articulou as coisas para que elas acontecessem da forma narrada no romance. Roquentin afirmará que ele existe, e nisso temos que lembrar que a existência nunca pode ser ponto de chegada por ser uma contingência, a existência descoberta depois de um longo caminho fará perceber que ela será realmente o ponto de partida, algo que sempre terá um devir inesperado. Aqui no romance A náusea, não pode haver um método ou, melhor dizendo, que Roquentin encarne um método, como afirma Bornheim, que compara A náusea à dúvida metódica de Descartes e é aqui que Moutinho critica essa comparação severamente. Lembremos que quando Roquentin tenta forjar uma aventura em sua vida percebe que não há como isso acontecer, e quando Bornheim afirma que há no romance “um caminhar

que vai do desconhecido ao conhecimento.” 124 Moutinho afirma que Bornheim forja

o caminho de Roquentin retrospectivamente e cai no mesmo engano de pensar que tudo que ocorreu naqueles instantes de experiência eram necessários para Roquentin. Moutinho diz:

Falar em método aqui é cair no mesmo logro em que Roquentin incorreu quando, também retrospectivamente, forjou para si uma aventura, que, quando vivida, não existiu.

É necessário pois respeitar a contingência desse “acidente”, ou mesmo da série de “acidentes”, que são as experiências de Roquentin.125

122Ibidem, p.68.

123Ibidem, p.26.

124Bornheim, Gerd. Sartre – Metafísica e existencialismo , p.17. 125Moutinho, Luiz Damon. Sartre – Psicologia e fenomenologia, pp. 60-61.

Então a aventura que tanto é buscada pela personagem sempre escapa, mas se revela como uma categoria essencial da ação humana, que é a busca. Mas isso não determina que o indivíduo não possa ter uma aventura. Ter uma aventura é diferente de representá-la. Ter uma aventura é estar na aventura, podendo ser aventura quando essa (o fato) já for passado, como demonstra Sartre aqui em A náusea a sua impossibilidade de realizá-la no presente.

A aventura é um irrealizável, e a maioria das ações humanas correspondem, por fim, realizar o irrealizável, derivando suas decepções frente a seu fracasso. O irrealizável nos aparece no horizonte, está no futuro, e, por conseguinte aparece no passado como realizável, e que de fato, o surgimento da sensação de que não os realizamos (ou construímos da forma que bem entendemos). E aquilo que é um irrealizável é uma situação; é estar-em-algum-lugar

Em A náusea pareço afirmar que ela não existe. Mas é errado. É melhor dizer que é um irrealizável. A aventura é um existente cuja natureza é a de só aparecer no passado, através da descrição que se faz dela. O que é perturbador nesses irrealizáveis é o fato de poderem ser pensados até o fim e com detalhes e, por

meio das palavras, serem realizados por outros.”126

A aventura se apresenta como um existente que somente tem sua aparição no passado, por meio de descrições feitas por nós, como se a vivêssemos. Isso pode ser entendido porque vivemos sempre no presente. Não podemos realizá-la como uma melodia, com todas suas correspondências implacáveis, pois isso é arte, e não poderemos assumir o irrealizável de uma forma realizável como veremos em nosso próximo tópico. Isso não passa de uma das facetas da má-fé, e, assumir a natureza do irrealizável será alicerçar sua autenticidade, e isso veremos em um capítulo que dedicaremos à esse assunto.