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A liberdade política em relação à constituição

CAPÍTULO II – A noção de liberdade em Montesquieu

1.1 Liberdade política

1.1.1 A liberdade política em relação à constituição

No que se refere a esse primeiro aspecto da liberdade política, tem-se no livro XI do

Espírito das leis uma análise dos principais elementos constitucionais que, segundo o autor,

parâmetro o modelo constitucional inglês, a seu ver, exemplo de uma constituição que teve como objeto constituir a liberdade política do seu povo.

Se todos os Estados têm em geral, para esse autor, o mesmo objeto, a saber, o de conservar-se, cada qual, a partir de suas leis e distribuição de poderes, possui em particular um objeto específico e que lhe é peculiar; o crescimento foi o de Roma, a guerra o da Lacedemônia, o comércio o de Marselha, porém a Inglaterra se distingue de todos estes por mirar todos os seus esforços em proporcionar aos seus cidadãos a liberdade. (Cf. MONTESQUIEU, 2005, p. 167).

Sendo assim, seria possível para Montesquieu por meio de uma análise meticulosa da estrutura política inglesa perceber em que consiste a liberdade em sociedade, ou dizendo de outro modo, em quais princípios ela se fundamenta. É o que ele começará a fazer no livro XI em seu capítulo VI do Espírito das leis.

A seu ver (2005, p. 167-168), todos os Estados têm três tipos de poder: o legislativo, o executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o executivo das coisas que dependem do direito civil. O primeiro se detém à criação de leis; o segundo (que pode ser denominado simplesmente de poder executivo) faz a paz e a guerra, envia ou recebe embaixadas, cuida da segurança interna e previne as invasões externas; e o terceiro (que pode ser intitulado de poder de julgar) tem como função castigar os crimes e julgar as contendas entre os particulares.

Esses três poderes, para ele, devem possuir uma organização de tal maneira articulada e uma distribuição tão bem repartida que torne possível o equilíbrio político da nação e satisfaça os interesses não apenas de uma única parte do corpo político, mas de todas. Isso em alguma medida torna o Estado moderado e evita, por exemplo, a formação de um despotismo, governo segundo o qual somente os interesses do tirano ou déspota são levados em conta.

Um dos principais fatores da formação de um governo despótico e desprovido de liberdade estaria justamente na má distribuição desses poderes. É o que Montesquieu afirma de maneira decisiva:

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três

poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares. (MONTESQUIEU, 2005, p.165-166).

Posto isso, o autor (2005, p. 169) adverte ainda que, grande parte dos príncipes que tornaram-se despóticos sempre começaram por reunir em sua pessoa todas as magistraturas, abarcando todos os cargos do Estado de maneira absoluta ao seu exclusivo domínio e execução. Foi o que ocorrera, ainda lembrando o próprio autor (Ibid., p. 168), entre os turcos, cujos três poderes reunidos na pessoa do sultão favoreceram ali o estabelecimento de um horrível despotismo. E, de maneira mais branda nas repúblicas da Itália pôde-se observar que quando os três poderes estiveram reunidos em um mesmo corpo de magistrados se encontrou menos liberdade do que em algumas monarquias europeias.

Partindo de tais observações, Montesquieu irá cada vez mais penetrar nas bases estruturais do modelo constitucional inglês, a fim de verificar o mecanismo e estruturação que torna esse sistema político propenso ao estabelecimento da liberdade. Ao comparar as leis e distribuição de poderes da Inglaterra, bem como, as suas características institucionais frente à estrutura política de outras nações, o autor do Espírito das Leis identificará na primeira um mecanismo de repartição de funções e poderes que torna viável sua execução por corpos distintos e antagônicos, possibilitando não só uma fiscalização mútua entre eles, como também, o atendimento dos interesses de todas as partes do corpo político.

Desse modo, por exemplo, se mostrava importante na Inglaterra que o poder legislativo ficasse uma parte sob a responsabilidade dos nobres e a outra sob a tutela de representantes do povo, com a intenção de conciliar os mais diversos interesses. De maneira similar, o poder de julgar (judiciário) se mostrava mais eficaz na medida em que não fosse entregue a um senado permanente, mas concedido a pessoas tiradas do seio do povo em certos momentos do ano para que esse poder se apresentasse invisível e nulo. A única exceção estaria no poder executivo propriamente dito, o qual não se mostraria eficaz havendo uma distribuição deste em setores distintos, pois essa parte do governo seria mais bem conduzida por um só do que por vários e, nesse sentido, seria melhor administrada exclusivamente por um monarca.

O fato é que a repartição de poderes, conforme esse autor, se apresenta como um dos elementos primordiais capaz de controlar os abusos de poder e, sua distribuição ou partilha entre setores distintos e estratégicos da sociedade equilibraria os diversos interesses e moderaria o governo, proporcionando em alguma medida a liberdade aos cidadãos.

Entretanto, não seria somente a repartição de poderes responsável pela manutenção da liberdade e equilíbrio do estado político, haveria ainda, para Montesquieu, outro aspecto ou mecanismo constitucional que contribuiria de maneira efetiva para esse fim: o estabelecimento de corpos intermediários.

Como sugere Dedieu (1980, p. 278), a concepção de liberdade política em Montesquieu está intimamente ligada não somente à questão da separação de poderes, mas também a essa noção. Posto isso, caberia compreender esse outro mecanismo tão importante para o estabelecimento da liberdade política de uma nação.

Corpos intermediários seriam, grosso modo, aqueles que se posicionam entre o poder central e o povo. Eles seriam compostos por membros bastante poderosos, tais como a nobreza e o clero, os quais se apresentariam na estrutura política e constitucional da monarquia como “canais médios por onde flui o poder”. (MONTESQUIEU, 2005, p. 26). Embora sejam poderes subordinados e dependentes ao poder do monarca, pois como indica esse autor, “o príncipe é a fonte de todo poder político e civil” (Ibid), os poderes intermediários ainda assim detém, em alguma medida, a vontade momentânea e caprichosa de um só governante, freando os avanços desmedidos do poder arbitrário.

Embora Montesquieu explicite não morrer de amores pelos privilégios eclesiásticos (Ibid., p. 27) ele admite, por outro lado, que o poder do clero, por exemplo, se mostraria em certos aspectos convenientes numa monarquia, sobretudo naquelas que se aproximam de um despotismo.

Que seria da Espanha e de Portugal, desde a perda de suas leis, sem este poder que sozinho freia o poder arbitrário? Barreira sempre boa, quando não existe outra, pois como o despotismo causa na natureza humana males assustadores, até mesmo o mal que o limita é um bem. (MONTESQUIEU, 2005, p.27).

Os poderes intermediários surgem aqui como elementos moderadores do poder central e, também, como um mecanismo capaz de balancear a política monárquica. Eles acabam por conciliar os diversos interesses, sobretudo quando apenas uma parte do corpo político ambiciona isoladamente tomar as rédeas do governo. Sendo assim, os corpos intermediários equilibrariam em alguma medida as tensões entre os que comandam e os que são comandados.

Assim como o mar, que parece querer cobrir toda a terra é detido pelas ervas e os menores pedregulhos que se encontram na orla, assim também os monarcas, cujo poder parece sem limites, são detidos pelos menores obstáculos e submetem seu orgulho natural às queixas e aos pedidos. (MONTESQUIEU, 2005, p.27).

A nobreza também se apresenta aqui como outro grupo intermediário de relevante importância para o equilíbrio do poder político. Trata-se de um poder natural mais propício ao regime monárquico, isto é, se encontra na essência da monarquia, cujo princípio motor é a honra. A busca por honrarias, privilégios e distinções estão, para Montesquieu, no âmago desse regime de governo e, excluir as prerrogativas desses grupos iria de encontro ao espírito desse governo que tem em sua base a busca pela distinção, superioridade e engrandecimento.

Sendo a honra o princípio deste governo, as leis devem relacionar-se com ela. É preciso que elas trabalhem para sustentar a nobreza de que a honra é, por assim dizer, o filho e o pai. É preciso que a tornem hereditária, não para ser o limite entre o poder do príncipe e a fraqueza do povo, mas a ligação entre os dois. (MONTESQUIEU, 2005, p.66).

É importante salientar que Montesquieu analisa os três tipos de governo (republicano, monárquico e despótico) a partir dos princípios que os movem: virtude, honra e temor, respectivamente. Cada qual desses governos, a seu ver, possuem particularmente um sistema constitucional e uma legislação específica que giram em torno do seu princípio central e, especificamente no caso da monarquia, os privilégios e as preeminências dos corpos intermediários (nobreza e clero) são partes integrantes do bom funcionamento desse sistema de governo. Nesse sentido, só para ilustrar,

Se a ambição é perniciosa numa república, tem bons efeitos na monarquia; dá vida a esse governo e nele [...] ela não é perigosa, pois pode ser incessantemente reprimida [...] a honra move todas as partes do corpo político; liga-as com sua própria ação; e assim todos caminham no sentido do bem comum, pensando ir em direção a seus interesses particulares. (MONTESQUIEU, 2005, p.36-37).

No entanto, para esse autor, não se mostra suficiente ao equilíbrio do governo monárquico que apenas se mantenham grupos intermediários, é necessário, por outro lado, um depósito de leis, isto é: de um corpo de magistrados capaz de “anunciar as leis quando elas são elaboradas e lembrar quando são esquecidas”. (MONTESQUIEU, 2005, p. 27). Isso se deve ao fato de que a

nobreza, a seu ver e, em grande parte, não mostra uma atenção suficiente aos assuntos civis, seja por ignorância ou por desprezo dessas questões.

A ignorância natural da nobreza, sua desatenção, seu desprezo pelo governo civil exigem que exista um corpo que retirem incessantemente as leis da poeira onde ficariam soterradas. O conselho do príncipe não é um depósito conveniente. É, por sua natureza, o depósito da vontade momentânea do príncipe que executa não o depósito das leis fundamentais. Além do mais o conselho do monarca muda sem parar; não é permanente; não poderia ser numeroso; não tem em um grau suficiente, a confiança do povo: logo, não se encontra em condições de esclarecê-los nos tempos difíceis, nem de fazê-los voltar à obediência. (MONTESQUIEU, 2005, p.28).

Desse modo, o corpo dos magistrados no interior do sistema monárquico assume uma função de relevante importância, pois como anunciante das leis fundamentais, desperta e esclarece tanto ao povo quanto à nobreza, sobre seus direitos e deveres evitando, em alguma medida, o estabelecimento de um despotismo.

É baseando-se nesse modelo estrutural da política monárquica, especialmente a inglesa, exemplo, a seu ver, de uma constituição voltada para proporcionar a liberdade política, que Montesquieu concebe os principais elementos constitucionais propícios ao estabelecimento da liberdade em sociedade.

É necessário, portanto, uma organização e distribuição de poderes tão bem articulada, bem como, a manutenção de corpos intermediários (clero, nobreza e um corpo de magistrados) para possibilitar o equilíbrio balanceado dos diversos grupos da sociedade estabelecendo, nesse sentido, um governo que atenda os diversos interesses e não apenas o do governante, o que geraria um despotismo ou governo de um só, sem leis e sem regras.

A liberdade em relação à constituição é, em suma, formada tanto pela distribuição dos três poderes quanto pela manutenção de corpos intermediários no interior do Estado político. Desse modo, sendo o Estado moldado por essa estrutura, as bases para o estabelecimento da liberdade civil estariam, em alguma medida, solidificadas.