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A liberdade política em relação ao cidadão

CAPÍTULO II – A noção de liberdade em Montesquieu

1.1 Liberdade política

1.1.2 A liberdade política em relação ao cidadão

Posta essa estrutura constitucional, a qual favorece largamente, conforme Montesquieu, a liberdade política do Estado, é possível perceber que o desdobramento natural dela será justamente o estabelecimento da liberdade civil.

Esse segundo aspecto da liberdade política será desenvolvido de maneira mais precisa no livro XII do Espírito das leis, e nele o autor explicitará em que consiste a liberdade do cidadão. Dizendo de outro modo, se no primeiro momento Montesquieu discorre sobre o que seria um Estado livre, agora ele irá analisar o que significa um cidadão livre.

Para o autor, mostra-se importante separar essa análise, pois enquanto a liberdade em relação à constituição repousa, como já ressaltado, na distribuição de poderes e na manutenção de corpos intermediários, a liberdade em relação ao cidadão, por outro lado, embora derive dessa mesma estrutura política e constitucional “consiste na segurança ou na opinião que os homens têm acerca dela”. (MONTESQUIEU, 2005, p. 197).

Isso significa que se o primeiro aspecto da liberdade política situa-se no âmbito mais geral e estrutural, o segundo, em contrapartida, se aproxima de modo mais efetivo da esfera particular e individual. Sendo assim, a liberdade em relação ao cidadão se refere não tanto ao esquema de ordenação de poderes e de leis no âmbito estatal, mas indica, por outro lado, de que modo essa liberdade se manifesta no convívio civil.

Embora o conceito geral de liberdade política em Montesquieu se constitua a partir da união desses dois aspectos (constituição e cidadão) o que denota uma inter-relação entre eles, nem sempre, como bem aponta o autor, essa combinação ocorre: “Pode acontecer que a constituição seja livre e que o cidadão não o seja. O cidadão poderá ser livre e a constituição não o será. Nestes casos, a constituição será livre de direito e não de fato; o cidadão será livre de fato, e não de direito”. (MONTESQUIEU, 2005, p. 197). Nesse sentido, para esclarecer a relação e ao mesmo tempo a distinção entre esses dois aspectos da liberdade política, mostra-se importante ao presidente do parlamento de Bordeaux analisar, doravante, em quais princípios se fundamentam a liberdade em relação ao cidadão.

No capítulo II do livro XII do Espírito das leis Montesquieu começa a discorrer acercada liberdade do cidadão fazendo uma distinção entre esta e a liberdade filosófica. Como já mencionado anteriormente, é nítida a preocupação do Barão de La Brède em não confundir esses conceitos. A liberdade filosófica, de uma maneira mais geral e vaga, consiste no exercício da própria vontade, já a liberdade política, diferentemente, se detém aos limites da ação humana em uma sociedade política. Isso significa que numa sociedade constituída por leis a liberdade filosófica não satisfaz às exigências nem aos princípios norteadores do convívio social e do bem comum. Nesse âmbito específico, ao contrário, o exercício da própria vontade comprometeria, em alguma medida, os interesses coletivos e, as ambições particulares, em contrapartida, suplantariam temerosamente a ordem política e social.

É por esse motivo que Montesquieu não hesita em afirmar: “A liberdade política não consiste em se fazer o que se quer. Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer”. (MONTESQUIEU, 2005, p.166, grifo nosso).

Ser livre na esfera civil não significaria, conforme esse autor, agir de maneira descomprometida com o bem público ou negligenciando o direito alheio. Ao contrário, a liberdade em um Estado político exige o comprometimento e o cumprimento das leis civis, bem como, o respeito pela constituição.

Ao que tudo indica, essa visão aponta para ideia segundo a qual em sociedade os interesses particulares devem estar em consonância com as normas legislativas e, por assim dizer, não devem contrariar ou infringir o bem geral e o interesse da coletividade. A liberdade política, nesse sentido, não se efetivaria na possibilidade de se fazer o que se quer, mas na escolha deliberada de evitar seguir os impulsos ou paixões particulares que venham de encontro à ordem civil, para optar em ser conduzido pelas leis positivas e, deste modo, gozar dos benefícios que essa escolha proporcionaria. Assim, “a liberdade é o direito de fazer tudo que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem ele já não teria liberdade, porque os outros também teriam este poder”. (MONTESQUIEU, 2005, p. 166).

Pode parecer inusitada a forma como o autor define esse conceito, uma vez que uma liberdade regida por leis e, portanto, restrita e delimitada aos ditames jurídicos a princípio não representaria o que de fato se entendeu sobre esse conceito numa esfera filosófica e especulativa. O mais importante, porém, é entender que Montesquieu observa que no âmbito da sociedade civil

essa liberdade filosófica e irrestrita não seria concebível, e sim inadequada aos fins do Estado político. Para ser mais claro é necessário ressaltar que se trata de conceitos distintos por estarem em esferas diferentes. Não seria um exagero afirmar que, para esse autor, a liberdade filosófica, por pairar na esfera da totalidade e generalidade, não se atendo a um âmbito específico se aproximaria da licenciosidade e, logo, da possibilidade de agir desregradamente. Já a liberdade política, pelo fato de se ater a uma esfera particular, a da sociedade constituída e do Estado político, trata-se de um conceito definido pelo grau de segurança e tranquilidade que os cidadãos gozam em seu convívio social; tranquilidade e segurança esta que será estabelecida pelas leis.

Desse modo, se os cidadãos pudessem fazer o que as leis proíbem eles não teriam liberdade, pois a liberdade política, isto é a segurança e a tranquilidade em sociedade, consiste em fazer, como já foi frisado, o que as leis permitem; fazer o que elas proíbem provavelmente romperia os laços ordenadores e protetores da sociedade, gerando a temeridade e a insegurança coletiva. Como diria Starobinski, num Estado onde existem leis:

Cada um [...] não pisoteia os direitos de ninguém, e ninguém pisoteia os seus. Obedecendo as leis, dependendo uns dos outros, os homens poderão retornar a seus interesses privados [...]. Além da lei começa a violência [...]. No interior dela, o espaço é livre para todas as atividades humanas. (STAROBINSKI, 1990, p.85).

Percebe-se, portanto, que a proteção dos homens em sociedade, sua segurança e liberdade, se dá justamente no cumprimento das leis, pois extrapolar os seus limites seria adentrar em um Estado de insegurança, intranquilidade e, por assim dizer, de violência. Somente no espaço onde as leis se configuram os homens respeitariam o direito alheio, e conviveriam de um modo pacífico e equilibrado. As leis seriam, portanto, o mecanismo por meio do qual a liberdade se efetivaria; sem elas uma sociedade política jamais proporcionaria aos cidadãos uma vida tranquila e segura e, assim, a liberdade política destes se comprometeria.

Diante dessa constatação entende-se que as noções de lei e liberdade acabam por interligar-se no pensamento de Montesquieu, de modo que, sem a existência da primeira a segunda certamente não se consolidaria. A liberdade do cidadão é, assim, vinculada e dependente da legislação e da constituição de uma nação e, define-se pelo grau de segurança e ausência de temor de uns para com os outros. Ser livre é, efetivamente, aos olhos de Montesquieu, o sentimento que o cidadão possui de que está protegido pelas leis e por uma constituição apropriada, seja da violência externa ou do perigo de violação dos seus direitos fundamentais. A

liberdade política em relação aos cidadãos é, nesse sentido, a garantia de que os homens poderão em consonância com as prescrições da lei, conviver socialmente de um modo mais seguro e tranquilo.