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Capítulo I – A noção de diversidade em Montesquieu

1. Considerações iniciais

1.5 Racionalidade imanente da história

A discussão em torno da análise da história numa perspectiva que a aproxime da objetividade e rigidez científica (conduzindo-a a princípios e não a fins) ganhou maior destaque na modernidade, especialmente, após o método cartesiano que considerou os saberes ligados ao campo do humano como algo desprovido de prestígio e validez. Para o autor do Discurso do

Método (1637), a análise da história humana, grosso modo, não poderia obter um estatuto de

ciência, uma vez que dado à infinita diversidade de manifestações e costumes constatados nessa esfera, inviabilizaria encontrar no emaranhado das relações humanas uma verdade única e eterna.

A história era, assim, vista como um campo do saber um tanto confuso e impreciso, pois conforme essa concepção ela apontaria para a multiplicidade das manifestações humanas no tempo, o que em alguma medida a afastaria do ideal de unidade, clareza e distinção, pontos basilares do seu método e necessários para o estabelecimento de uma ciência verdadeira. Além disso, a seu ver, as narrativas dos fatos históricos (feitas pelos historiadores), até então, se assemelhavam às fábulas e, estando mais no âmbito da opinião do que no da certeza científica, não contribuiriam para se atingir um conhecimento seguro, sólido e certo.

Ao viajar para adquirir conhecimentos não mais nos livros dos antigos, mas no “livro do mundo”, conforme relata em seu Discurso do Método, esse filósofo deparou-se ainda com maiores incertezas, pois ao ver tanta variedade de costumes e hábitos, além da imensa diversidade cultural que perfaz a existência dos homens, o fez concluir sobre a impossibilidade de se chegar a um conhecimento único, verdadeiro e universal, nessa esfera.

A verdade é que, ao limitar-me a observar os costumes dos outros homens pouco encontrava que me satisfizesse, pois percebia neles quase tanta diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos. De forma que o maior proveito que daí tirei foi que, vendo uma quantidade de coisas que, apesar de nos parecerem muito extravagantes e ridículas, são comumente recebidas e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não acreditar com demasiada convicção em nada do que me havia sido inculcado só pelo exemplo e pelo hábito; e, dessa maneira, pouco a pouco, livrei-me de muitos enganos que ofuscam a nossa razão e nos tornam menos capazes de ouvi-la. (DESCARTES, 2004, p. 42)

Nesse sentido, não seria interessante para esse autor dedicar-se aos estudos da história ou da diversidade humana, o mais pertinente seria, em contrapartida, voltar-se ao estudo do espírito e da ciência encontrada em si mesmo.

É importante ressaltar que de todas as “ciências” a que mais se aproximava de um conhecimento indubitável e seguro, para Descartes, era a matemática e a geometria, já que apresentava um método universal e cadeia de razões capazes de conduzir a uma verdade única e eterna.

Se as verdades da geometria, para esse autor, são válidas universalmente em todas as épocas e lugares, as narrativas históricas, ao contrário, não possuem esse mesmo caráter, pois não seguem as mesmas cadeias de razões e deduções necessárias do método geométrico.

Posto isso, é possível entender a recusa cartesiana em fazer uma investigação mais apurada e comprometida em relação à história e diversidade humana, já que a impossibilidade de aplicar esse método nas investigações históricas dificultaria atingir uma verdade universal tal como, o cogito ergo sum, por exemplo.

Montesquieu, contrariamente, hesitou em deixar-se marcar por essa visão. Ele procurou penetrar justamente nesse âmbito tido como confuso e obscuro do conhecimento humano para buscar nele princípios que pudessem trazer certa racionalidade e unidade à história.

No prefácio do Espírito das Leis fica ainda mais clara essa tentativa do filósofo de La Brède:

Examinei primeiro os homens, e achei que nesta infinita diversidade de leis e de costumes eles não eram conduzidos somente por suas fantasias. Coloquei os princípios e vi os casos particulares dobrarem-se diante deles como que por si mesmos, as histórias de todas as nações não serem mais do que suas consequências, e cada lei particular estar

ligada a outra lei ou depender de outra mais geral. (MONTESQUIEU, 2005, p. 5, grifo nosso).

O que aparentemente se mostrara desordenado e ininteligível torna-se, para Montesquieu, algo suscetível de certa racionalidade e ordenação. A história e diversidade humana passam a ser vistas como objetos de estudo norteados por princípios inteligíveis os quais podem ser apreendidos por meio de um método que segue um curso que parte inicialmente dos fenômenos e da observação empírica para culminar nos princípios.

Assim, o estudo da diversidade humana é valorizado por esse autor de tal modo que o seu interesse, como nos indica Groethysen, é:

[...] descobrir na diversidade de dados oferecidos pela história do mundo inteligente, o significado que tomam as individualidades coletivas criadas pelo espírito humano na perseguição de certos objetivos, e indagando-se sobre o seu valor relativo. O que está sujeito à mudança, o que é diverso, o que não tem sentido se tomado isoladamente, adquire um sentido nos agrupamentos coletivos construídos a partir de leis visando a atingir um objeto particular. (GROETHUYSEN, 1980, p. 298).

A realidade política e social que Montesquieu começa a analisar deixa de ser, portanto, e conforme Iglesias “uma massa desordenada e caótica para adquirir uma racionalidade imanente que permite o início do seu conhecimento científico [...] essa ordenação só foi possível devido à aplicação de uma instrumentação teórica que provêm da ciência física [...]”. (IGLESIAS, 2004, p. 7, tradução nossa).