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CAPÍTULO III – O ABISMO: A PRECARIZAÇÃO E O SOFRIMENTO

3.3 A LINGUAGEM DA DOR

O corpo manifesta as dores da alma humana, que canaliza para o organismo aquilo que não consegue manifestar de outra forma. A falta de um espaço onde o indivíduo possa relatar e dividir suas dores, seus medos e sua insegurança diante da vida faz com que o mesmo internalize seu sofrimento, acionando mecanismos de defesa que os protege durante um período, mas que não impedem o surgimento dos sintomas de doenças. (DEJOURS, 1999).

Como afirma Dejours (1999, p. 28),

[...] imposições de horário, de ritmo, de formação, de informação, de aprendizagem, de nível de instrução e diploma, de experiência, de rapidez de aquisição de conhecimentos teóricos e práticos e de adaptação à cultura ou à ideologia [...]. Os estudos clínicos e as sondagens que realizamos nos últimos anos, tanto na França quanto no exterior, revelam por trás das vitrinas do progresso um mundo de sofrimento que às vezes nos deixa incrédulos.

O estudo e a compreensão da biografia do indivíduo, juntamente com a contextualização da estrutura social em que ele vive, permitem perceber que os fenômenos humanos têm sempre uma motivação, nada acontecendo por acaso. Assim, o processo de adoecer deixa de ser um evento casual e passa a ser integrado à sua história de vida.

A OMS, em relatório datado de 1986, afirma que há uma multiplicação de manifestações de doenças decorrentes de desequilíbrios psicossociais, sendo eles as razões mais frequentes das consultas médicas, chegando a cerca de 50% nas regiões industrializadas e 25% nas menos industrializadas. (MELLO FILHO, 1992).

Deste modo, podemos afirmar que o homem é capaz de responder às ameaças simbólicas decorrentes da interação social e não apenas às ameaças concretas (biológicas – como os microrganismos – e/ou físicas e químicas). Assim, situações como insegurança no trabalho,

quebra de laços familiares e de estrutura social, privação de necessidades básicas, obstáculos na realização pessoal, separação, perda de emprego, viuvez, aposentadoria, entre outros são tão potencialmente danosos à pessoa quanto fatores concretos.

A compreensão da patologia dentro da perspectiva de um processo histórico e inter-relacional amplia e enriquece os conhecimentos sobre os complexos mecanismos relacionados com o processo de adoecer.

Em seus estudos, Lacan (1978) mostra que o sujeito não tem os significados em sua mente. O sentido só surge juntamente com a palavra que vai expressá-lo. Todavia, a palavra só tem uso possível se seguir leis preestabelecidas, ou seja, um código. Para Lacan, esse código só existe em função de mensagens, que por sua vez não existem sem códigos. Há uma relação entre o vetor língua, que é o significante e o vetor sujeito, o que fala. O código está relacionado com os significantes coletivos, os quais são passados à criança pela mãe em suas solicitações e ao ser humano adulto pela sociedade e pelo mundo do trabalho, dando um sentido para as suas necessidades e provendo a forma como resolvê-las.

Quando não existe um canal que possibilite a expressão das emoções, o corpo “fala” de alguma forma e manifesta as dores da alma. A emoção busca a expressão por meio da linguagem para solucionar o estado de necessidade e obter a satisfação. No entanto, se tal processo for total ou parcialmente bloqueado – e em geral, este bloqueio é de origem ideológica e cultural – a solução não é adequada, a ação mostra-se comprometida e a emoção fica contida, implicando em uma manifestação da emoção de forma indireta e/ou simbólica. Neste momento, podem ocorrer as somatizações e conversões.

FIGURA 1 – Integração Psicossomática

EMOÇÕES

A emoção é um fenômeno que ocorre simultaneamente no nível dos subsistemas do corpo e dos processos mentais. Aquilo que no nível dos sentimentos é medo, raiva, dor, tristeza, alegria ou fome, no corpo, concomitantemente, expressa-se como modificações no subsistema somático, nas funções motoras, secretoras e de irrigação sanguínea. Esse conjunto de alterações é coordenado pelo conjunto hipotálamo-hipófise e sistema límbico. Pontes et al. (1987, p. 94) analisam estes processos:

A disfunção pode resultar da alteração da fibra muscular lisa que existe ubiquitariamente em vários órgãos. Assim, a pessoa pode apresentar disfunções motoras no nível do aparelho digestivo (vômitos, Síndrome hipoestâmica, diarreia, prisão de ventre, discinesias); do aparelho respiratório (asma, bronquite); do aparelho geniturinário (disúria, cólica pietouretral, dismenorreia, polaciúria, vaginismo, taquiespermia); do aparelho circulatório (hipertensão arterial diastólica, enxaqueca, cefaleia de tensão); de pele (neurodermites, eczemas, pruridos) e de outros órgãos e aparelhos.

Palavra Comunicação Conteúdo Ideológico

Busca expressão para solucionar o estado que foi criado

Se o processo for bloqueado

A solução fica prejudicada e a emoção fica contida

A emoção manifesta-se indiretamente e/ou

simbolicamente

A disfunção, quando secretora, manifesta-se não só na produção do muco, mas também na produção de secreções endócrinas, de hormônios do aparelho digestivo, secreção gástrica, pancreática, biliar e entérica. Não é por acaso que as queixas gastrointestinais, principalmente úlceras gástricas, são muito comuns nos professores.

A disfunção da irrigação sanguínea nos órgãos exerce um papel importante na determinação de processos agudos e crônicos e, na dependência da intensidade, repetição e duração deles, pode ocasionar a diminuição da resistência da mucosa a outros agentes agressivos, surgindo hemorragias e ulceração de extensão e profundidade variáveis. (PONTES et al., 1987).

Conforme descrição feita por Silva Filho (1993, p. 66), os seguintes problemas são apontados como sintomas centrados em fatores relativos à natureza e ao modo de organização do trabalho, afetando diretamente a dimensão psicológica do trabalhador:

 Problemas gástricos;  Dores de cabeça;  Perturbações do sono;  Irritabilidade;  Queda de motivação;  Redução da criatividade;  Embotamento afetivo;  Sentimento de autodesvalorização;  Depressão;

 Empobrecimento do significado do trabalho;

 Ansiedade;

 Doenças do aparelho circulatório (cardiopatias);

 Estresse;

 Sonhos conflitantes com o trabalho.

As atitudes consideradas desumanas são sentidas pelo trabalhador, ainda que este tenha que demonstrar certa frieza na realização das tarefas lhe são designadas; até mesmo porque todo trabalhador sabe que ele está tão sujeito a tais circunstâncias quanto os colegas que sofrem com

sua ação e ao deparar-se com esta possibilidade no outro, deparam-se com a dor de seu próprio sofrimento.

Pode-se verificar que as questões da promoção da saúde não decorrem por fatores meramente individuais, mas em dimensões coletivas, especialmente sobre a cultura das relações de trabalho.

A legislação trabalhista de vários países, a brasileira entre elas, reconhece a relação de causa e efeito de vários agentes físicos, químicos e biológicos na produção das doenças consideradas “ocupacionais”. Bem menos tranquila é a aceitação, mesmo em países economicamente mais avançados, do fato de ser o trabalho, enquanto forma de organização e muito menos em razão de sua própria natureza, o fator morbígero em si, em que pese o crescente número de evidências. (PITTA, 1990).

As enfermidades têm componentes sócio-históricos e psicológicos que não podem ser compreendidos sem ajuda de métodos adequados e isso ficará muito evidente naquelas que decorrem do processo de estresse enquanto fenômeno humano. Na verdade, todo fenômeno humano é um fenômeno social, como também a ordem social existe unicamente como produto da atividade humana. (LANE, 1981).

O ser humano está em constante movimento e a todo momento surgem situações que exigem dele uma solução. Esse movimento contínuo é determinado, em parte, pelo conjunto das necessidades inconscientes e pelas exigências da cultura.

Estruturas alienantes – como certas condições e modos de organização do trabalho que se caracterizam pela coerção e falta de estímulo à criatividade, na qual o indivíduo que executa as tarefas não tem controle sobre seu processo de trabalho, com atividades aborrecidas, intensidade e duração do trabalho arbitrariamente decididos, ações fragmentadas e competitivas – têm a possibilidade de produzir sentimentos que se denominam “experiência subjetiva da alienação”, os quais caracterizam-se por sensação de falta de poder, insatisfação e frustração. O trabalho produz também sentimentos de alheamento e o trabalhador tem a impressão de que está situado em um alienado mundo hostil e insensível. (SELIGMANN-SILVA, 1994).

Essa experiência subjetiva da alienação tem sido correlacionada como um dos fatores de risco da doença coronariana. Gasparini e Rodrigues (1992) afirmam que há estudos sobre a relação entre a doença coronária e a denominada “personalidade tipo A”. É importante destacar que esse tipo de personalidade é encontrado frequentemente em indivíduos envolvidos em uma luta constante para obter um número ilimitado de coisas em um período relativamente curto, que enfrentam os esforços contrários e reprimem fortemente os sentimentos de frustração, hostilidade e insegurança.

O comportamento que caracteriza a personalidade tipo A é extremamente incitado e reforçado no contexto do trabalho, na medida em que a competição entre colegas de trabalho é estimulada, assim como a rivalidade para que eles obtenham gratificações, reconhecimento e promoções, estimulando também para que se esforcem para produzir mais e melhor, dentro de prazos rigorosos, e que frequentemente levem trabalho para casa, como é o caso do professor.

Segundo Lacar (1984 apud GASPARINI; RODRIGUES, 1992, p. 104),

As doenças isquêmicas do coração e a hipertensão arterial estão ocorrendo cada vez com maior frequência em indivíduos jovens e, especificamente em determinadas categorias profissionais, independentemente da classe social. Todas as pesquisas feitas até agora indicam que as causas são o ritmo de trabalho, a exigência irrecorrível de atenção e todos os condicionamentos que envolvam o homem e o trabalho.

E esse fenômeno tem sido cada vez mais frequente na realidade do docente, pois ele está submetido a todas as formas perversas de manipulação e controle das Instituições capitalistas.