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CAPÍTULO III – O ABISMO: A PRECARIZAÇÃO E O SOFRIMENTO

3.1 SAÚDE E ADOECIMENTO DO PROFISSIONAL DOCENTE

Para atender às demandas de saúde advindas do mundo do trabalho, nasce a Medicina do Trabalho em meados do século XIX, criando a primeira forma clássica de enfrentamento do processo saúde-doença dos trabalhadores no contexto de produção capitalista. No início do século XX, período marcado pela intensificação e reestruturação dos processos produtivos, houve um crescimento no número de ocorrências de acidentes e doenças do trabalho. A Medicina do Trabalho passa a intervir, por meio da figura do médico, sobre o corpo do trabalhador, sendo este apenas um objeto de sua intervenção.

Baseada na concepção de risco, a Medicina do Trabalho buscava detectar os elementos que causavam danos à saúde dos trabalhadores, principalmente nos quais estavam relacionados à

utilização da força de trabalho, visando conservá-la e reproduzi-la enquanto mercadoria necessária à produção. O período da Segunda Guerra Mundial, marcado como sendo de grandes avanços tecnológicos na indústria, proporcionou inovações nos processos de produção; surgiram também, com grande intensidade, índices alarmantes de mortes por doenças e acidentes de trabalho. (SELIGMANN-SILVA, 2011).

A concepção da Saúde do Trabalhador era voltada para a gestão da força de trabalho, visando apenas a eficiência, produtividade e lucratividade, restringindo seus objetivos de atuação às condições físicas, químicas, biológicas e mecânicas do ambiente do trabalho; às doenças ocupacionais e aos acidentes de trabalho, sem ao menos considerar as relações sociais de produção e o papel determinante destas no processo saúde-doença do trabalhador.

Os esforços da Medicina do Trabalho em intervir na saúde do trabalhador (para a reprodução da força de trabalho) tornaram-se insuficientes, colaborando para o nascimento das concepções voltadas para a Saúde Ocupacional e vislumbrando a necessidade de mudar o foco da saúde do corpo do trabalhador para o ambiente de trabalho. Entende-se a partir daí que a doença era causada por uma combinação de fatores de risco existentes no ambiente de trabalho, sejam tais fatores de ordem física, química ou mecânica. Entretanto, no Brasil, a partir da promulgação da constituição de 1988 e, posteriormente, com a implantação da lei do Sistema Único de Saúde (SUS), com o empenho do movimento sindical e o movimento sanitário (que tiveram importante participação na sua incorporação como política de saúde), surge a política pública voltada para Saúde do Trabalhador e nasce como uma crítica à concepção e prática da Saúde Ocupacional e da Medicina do Trabalho.

A Saúde do Trabalhador assume uma concepção totalmente diferente da que antes era trabalhada e refere-se a um campo de saberes e práticas com claros compromissos teóricos, políticos e éticos inseridos como uma política pública em saúde, demandando articulações intersetoriais (saúde, educação, trabalho e emprego, previdência social, meio ambiente, dentre outros), realizando também pesquisas com objetivo de ampliar os conhecimentos advindos de diversos campos disciplinares, tais como: a clínica médica, a medicina do trabalho, a psicologia, a sociologia, a epidemiologia social, a engenharia, a psiquiatria e a ergonomia, assim como outras áreas do conhecimento que possam agregar valor a tal política, como a vivência e o saber dos trabalhadores (nas mais diversas áreas) que assumem um papel importante na elaboração de estratégias para se conhecer, interpretar e intervir no processo de adoecimento do

trabalhador, com o propósito de haver organização nos serviços de saúde necessários para esse contexto. (CREPOP22, 2008).

A partir desse momento, a Saúde do Trabalhador compreendia a relação entre trabalho e saúde e novas práticas de atenção à saúde dos trabalhadores (conforme os Programas de Saúde do Trabalhador (PST), garantido pelo Art. 200 da Constituição Federal de 1988), estabelecendo que o SUS competia à execução das ações de Saúde do Trabalhador com foco na intervenção nos ambientes de trabalho, a compreensão dos problemas de saúde influenciados pelo contexto do trabalhador e do ambiente de trabalho, propondo medidas de vigilância e prevenção de fatores que influenciam o adoecimento durante a execução de suas atividades e promovendo possíveis mudanças que colaborassem para o enfrentamento desses fatores.

A maioria dos estudos existentes sobre as condições de trabalho e saúde dos professores apresenta dados que comprovam o quanto a profissão docente sofre influências estressoras. Dados apresentados pela OIT (1981, 2001) demonstram que, em termos de doenças ocupacionais, os professores só perdem para os mineiros. Os resultados dessa pesquisa indicam que as doenças mais frequentes entre os professores são aquelas relacionadas ao uso da voz (calos nas cordas vocais), alergias (citando a alergia ao pó de giz), ao trato gastrointestinal (gastrites), sistema circulatório (varizes) e possuem sintomas relacionados ao equilíbrio (labirintite), doenças reumáticas e cansaço excessivo (estafa, estresse). (ARAÚJO et al., 2003).

De acordo com os autores, os estudos realizados pela Confederação de Trabalhadores da educação da Argentina “[...] demonstram que a profissão docente acarreta elevado desgaste físico e psíquico em decorrência de situações próprias do ambiente e do exercício profissional.” (ARAÚJO et al., 2003, p. 192). Eles acrescentam ainda que as queixas mais recorrentes são de problemas nas cordas vocais, distúrbios psiquiátricos e problemas digestivos.

No Brasil, pesquisas realizadas no Hospital do Servidor Público de São Paulo, no ano de 1988, revelam o comprometimento da saúde dos professores do Estado de São Paulo em relação à depressão, neuroses, dificuldades de ajustamento e estresse, afastando-os do trabalho por licença médica para tratamento. Esses dados ilustram que os agravos à saúde do docente atingem de forma direta não só o corpo físico como também a saúde psíquica do trabalhador.

Nos anos 1990, após uma investigação sobre as condições de trabalho na escola pública brasileira, o elevado percentual de adoecimento dos profissionais da educação tornou-se evidente. (ARAÚJO et al., 2003).

O peso da contradição entre o que o professor sonha e acredita e as imposições feitas pela gestão da educação são, na maioria das vezes, o “gatilho” que dispara o sofrimento psíquico.

A violação dos próprios valores é encontrada na raiz de muitos processos de adoecimento vinculado ao trabalho e, nesses casos, a depressão se constitui um dos agravos mentais mais encontrados na clínica, ao lado dos frequentes distúrbios psicossomáticos desencadeados pelo trabalho – entre os quais a hipertensão arterial e a doença coronariana têm recebido maior atenção. (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 531).

No estado da Bahia, estudos realizados entre os anos de 1991 e 1998 pela Secretaria de Saúde do Estado, executados no Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador (CESAT) em ambulatórios, registraram, a partir do atendimento de docentes (os quais, em sua maioria, eram do sexo feminino e possuindo faixa etária entre 40 e 49 anos), que a maior parte dos educadores foram diagnosticados como portadores de doenças ocupacionais, sendo elas: calos nas cordas vocais, rinossinusites, asmas, lesões por esforço repetitivo (LER), dermatoses e varizes. (BAHIA, 2000).

Apesar de a atividade docente ser considerada na divisão social do trabalho como um trabalho de cunho intelectual, esta é composta por cargas de trabalho existentes em outros tipos de atividades semelhantes a ela ou não. De acordo com Seligmann-Silva (1994), as cargas de trabalho representam um conjunto de esforços desenvolvidos para atender às exigências das tarefas e abrangem os esforços físicos, cognitivos e emocionais (psicoafetivos). As cargas de trabalho podem ser compreendidas como as exigências ou demandas psicobiológicas existentes no contexto ocupacional ao longo do tempo, as quais geram desgaste físico e mental do trabalhador. Por ser considerada uma atividade trabalhista extremamente desgastante, o trabalho docente se enquadra na realidade dos trabalhadores que se sentem sugados, perdendo a capacidade potencial afetiva, física e psíquica. Sobre a carga de trabalho, Dejours (1994, p. 28) diz: “A carga psíquica do trabalho é a carga, isto é, o eco ao nível do trabalhador da pressão que constitui a organização do trabalho. A carga psíquica do trabalho resulta da confrontação do desejo do trabalhador à injunção do empregador contida na organização do trabalho.”

A partir da análise das pesquisas utilizadas como base para este trabalho, constata-se que o desgaste físico e emocional relacionado ao trabalho dos professores evidencia-se nos resultados relacionados com os impactos dos fatores estressores intrínsecos à atividade docente, revelando a dor e o sofrimento no trabalho, acarretando na aquisição de doenças psicossomáticas23. O docente, em seu exercício profissional, apresenta fatores estressores oriundos do contexto ocupacional, que ao se unirem com as insatisfações e constrangimentos ao qual são expostos com frequência no trabalho, acarretam em prejuízos para a saúde física e mental, gerando um esgotamento crônico, também chamado de “síndrome de burnout”. Pesquisas realizadas pela OIT apontam que o profissional docente é a categoria mais suscetível à síndrome de burnout e considera esse fato como um fenômeno que ultrapassa fronteiras e atinge professores de diferentes países. (SOUZA; LEITE, 2011).

As pesquisas sobre o burnout, realizadas com base em observações, estudos de caso e entrevistas, e iniciadas a partir dos anos 1960, eram estudos de cunho descritivo e apresentavam forte influência das perspectivas psicológicas. De acordo com Souza e Leite (2011), o burnout é uma expressão que designa o sofrimento por exaustão física ou emocional provocada por exposição contínua a situações estressantes. As autoras ressaltam que ser acometido por

burnout significa ter chegado ao limite da resistência física ou emocional, apresentando os

seguintes sintomas: exaustão emocional (sentimento de esgotamento físico e emocional), redução da realização profissional (sentimento de inadequação e incompetência profissional) e despersonalização (distanciamento entre o trabalhador e o usuário do seu trabalho, substituindo vínculo afetivo pela racionalidade).

Nesse contexto, a síndrome de burnout pode manifestar-se atrelada a sintomas físicos como: episódios de cefaleia (dores de cabeça), alterações gastrointestinais, exaustão física (cansaço constante), fadiga crônica, tensão muscular, depressão, ansiedade, irritabilidade e distúrbios do sono. De acordo com Seligmann-Silva (2011), à medida que as formas de gestão e controle do trabalho incidem em serviços de saúde e nas instituições de ensino de todos os níveis,

[...] aumentam as incidências da síndrome entre profissionais de saúde e professores. O impedimento de realizar o trabalho social, na saúde e na educação, em acordo aos princípios e valores éticos vinculados à formação e

23 Doenças psicossomáticas podem ser caracterizadas por um processo pelo qual a pessoa “transfere”

para o organismo (corpo físico) a carga emocional decorrente de algum problema que esteja vivendo. (MELLO FILHO, 1992).

à ética própria dessas profissões é um impedimento que violenta o sentido dessas formas de trabalho e desqualifica aquilo que é obrigado a realizar aos olhos do próprio profissional. (SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 524-525), Para Carvalho (2003), a síndrome se manifesta quando as demandas de trabalho são maiores que as possibilidades humanas e materiais (gerando o estresse laboral no indivíduo), quando há evidências sobre o esforço de adaptação e produção de respostas emocionais aos desajustes percebidos e quando há um enfrentamento defensivo das tensões, que ocasionam comportamentos de afastamento emocional, retirada, cinismo e rigidez.

Entretanto, a autora salienta que alguns profissionais docentes (mesmo estando submetidos às mesmas dificuldades no trabalho que afetam profundamente outros colegas, levando-os à síndrome de burnout) encontram satisfação no exercício da profissão. Atitudes de “resiliência” (faculdade humana que permite às pessoas, apesar das adversidades, transformarem-se positivamente a partir das experiências, principalmente as negativas e de sofrimento) são normalmente utilizadas como estratégias de enfrentamento do sofrimento laboral, objetivando lidar com as situações estressantes do dia a dia do trabalho sem que estas interfiram no equilíbrio pessoal e no desempenho das atividades inerentes à profissão.

3.2 A PSICODINÂMICA DO TRABALHO E A PSICOLOGIA NO CONTEXTO DE