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A linguagem marca-passo do Auto do frade

5 MUSEU E MEMÓRIA

5.3 A linguagem marca-passo do Auto do frade

O Auto do frade (1984), poema-prosa, narra a execução do frei Caneca em praça pública. Joaquim do Amor Divino Rabelo (1779- 1825), Caneca, foi um religioso e revolucionário que apoiou a Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador em 1824. Conhecido pela famosa frase, “Quem bebe da minha caneca tem sede de liberdade”, o frade sempre esteve engajado nos movimentos pela independência do Brasil, o que terminou levando-o à prisão, sendo condenado à morte por enforcamento. Por se tratar de um frade, os carrascos não tiveram coragem de enforcá-lo, resultando no seu fuzilamento. Auto do frade descreve a história do frei que, assim como Cabral, era um pernambucano inconformado com a injustiça.

O poema compreende um longo caminhar partindo da cela, onde dorme o frei prisioneiro, até o Pátio do Carmo. Seguido por toda a gente, que o acompanha como em uma procissão, ele caminha para a sua execução. O texto é dividido em sete

partes (Na cela, Na porta da cadeia, Da cadeia à igreja do Terço, No adro do Terço, Da igreja do Terço à praça da Fortaleza, Na praça da Fortaleza, No Pátio do Carmo), representando, assim, as paradas de uma procissão.

Esse longo e lento caminhar em direção à morte é com- partilhado pela gente nas calçadas, pela tropa, pelo clero, pelos oficiais; enfim, por todos aqueles atores cuja união guarda no centro o personagem principal da cena: frei Caneca, como sugere a metalinguagem do poeta, trazendo o cinema para o auto:

– Que passa com o outro ator que nos deixa todos na espera ? – O outro personagem, o carrasco, não aceita o papel, se nega. (Grifos nossos)

Essa ideia de auto como cena de espetáculo se deve à distribuição de várias vozes e imagens no texto, fazendo com que o leitor siga com o olhar atento cada trecho, cada voz, como uma câmara que filma tudo, de todos os lados, cobrindo inteiramente a procissão, pois a forma como o discurso se apresenta pode simular uma procissão. A fala de frei Caneca se encontra no meio do texto, cercada por todas as outras falas da gente nas calçadas, da justiça, da tropa, do meirinho, entre outras. O frei é quem fala mais, apesar de ser aquele que menos tem direito à voz, ou seja, a frequência de seu falar é mínima, porém “é a voz que interpreta e que julga”, como diz Alfredo Bosi em O Auto do frade: as vozes e a geometria.109 Em meio aos

vários travessões trazendo diferentes vozes, frei Caneca diz tudo em um só jato, em versos de sete sílabas, sem interrupção. Esse poema-quadro da procissão parece pular do papel para atuar numa cena como diz o próprio Cabral:

109 BOSI, Alfredo. O Auto do frade: as vozes e a geometria. In: Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo, 1988, p. 98.

Acho que fiz uma coisa muito visual, consequência daquela minha primeira impressão de que os últimos momentos de frei Caneca dariam um bom filme, e é estranho, um auto é feito para teatro, não para cinema. O resultado é o Auto do frade, imaginado como um filme, escrito em versos e estruturado como para teatro.110

O poema caminha com passos (ritmo) lentos. O tempo encontrado no Auto do frade é a duração do passar de uma procissão, compreendendo o dormir e o acordar, o percurso da vida à morte. Para Alfredo Bosi, o tempo dramático tende a se estreitar entre o anúncio do meirinho, repetido catorze vezes na obra, e a hora em que o frei é executado:

– Vai ser executada a sentença de morte natural na forca, pro- ferida contra o réu Joaquim do Amor Divino Rabelo, Caneca.

“João Cabral elaborou de uma forma coral essa experiência de espera sofrida no espaço exíguo das sete estações por onde o réu é arrastado111”. Preso, frei Caneca parece dormir para a

vida, em meio à cela “escura como um poço/pintada de negro, de alcatrão”, e acordar para a morte, já que será executado na claridade do dia quando “o sol, todo aceso, já arde”. Se a escuridão da cela o impedia de discernir quando era dia ou noite, quando estava acordado ou dormindo, uma vez que já não sabia se a escuridão era da parede de suas pálpebras ou da negra parede da cela que o guardava; agora, após o acordar, frei Caneca está fora da cela, encontrando-se com a vida:

110 Apud ATHAYDE, Félix de. 1999, p. 118.

111 BOSI, Alfredo. O Auto do frade: as vozes e a geometria. In: Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo, 1988, p. 98.

– Acordo fora de mim como há tempos não fazia. Acordo claro, de todo, acordo com toda a vida, com todos cinco sentidos e sobretudo com a vista que dentro dessa prisão para mim não existia.

A vida parecia não existir lá dentro, mas sim fora da cela, onde todos os seus sentidos podem apreender as coisas ao redor, impregnadas de vida:

Essas coisas ao redor sim me acordam para a vida, (Grifo nosso)

E não importa a curta duração do seu acordar, do pouco tempo de vida nessa procissão. O curto tempo que lhe resta parece acumular-se, tornando o tecido temporal elástico e permanente, de tão densa que é a sua presença. Assim, o impor- tante é viver esse tempo ainda que seja o último de sua vida:

embora somente um fio me reste de vida e dia. Essas coisas me situam e também me dão saída; ao vê-las me vejo nelas, me completam, convividas.

O que seriam essas “coisas”, situando-o, acordando-o e oferecendo-lhe saída? Essas “coisas” só podem ser encontradas fora da cela, pois é o mundo lá fora, o mexer da vida, o piscar dos olhos diante da presença do sol. Enfim, sem essas coisas exteriores, dialogando com o seu interior, frei Caneca, imerso na cela escura,

...não podia dizer quando velava ou dormia.

Essa lucidez do acordar remete-nos à clareza e ao rigor presentes na poesia cabralina, evidenciando-se, dessa forma, o exercício de metalinguagem no Auto:

Acordo fora de mim como há tempos não fazia (Grifo nosso)

O acordar do frade não é simplesmente um acordar fora da cela, mas também fora de si como vemos no primeiro verso. Sabemos que João Cabral deseja uma escrita enxuta, antilírica, fora do self, tendo como referência as coisas exteriores. Tal qual o olhar do poeta, vemos o olhar do frei Caneca voltado para o exterior, estando seu ser imerso na claridade do dia e não em si mesmo. Ao contrário do sono no cárcere, a procissão lhe traz o acordar:

Acordar não é de dentro, acordar é ter saída.

Buscando edificar uma poesia que não explore o individu- alismo, o poeta acorda para aquela poesia que lhe traga saídas ao invés de se fechar no seu “eu”, na escuridão das paredes de seu ser. Os mesmos versos dirigidos ao frei Caneca podem referir-se a João Cabral, ambos amantes da geometria:

Na sua boca tudo é claro, como é claro o dois e dois quatro.

Na composição do Auto, em meio ao ritmo lento da procis- são, o poeta desafia mais uma vez o tempo, ao tentar plastificar as imagens, insistindo na geometria do espaço, em que o tempo que passou permanece acumulado no espaço por ele passado, como aponta o crítico:

Uma composição simples e sólida. O poeta-engenheiro con- fiou, ainda uma vez, nas leis da geometria. De geometria foi lente frei Caneca, no convento do Carmo. A geometria é uma ciência do espaço e da medida. Não tem um discurso sobre os acidentes do tempo: a paixão, o acaso e o malogro não a movem. Reduz o minuto que passa ao ponto que fica, e a hora, à curva que se fecha em si mesma.112

Preparado para ser executado em praça pública, o cenário em volta do frei parece estar todo pronto à espera da última personagem invisível, cuja ação é a principal: a Morte. Por mais que a presença desta seja algo certo, cumprindo o seu papel sempre pontual ao final da vida de todos nós, é ao mesmo tempo uma surpresa, ora se antecipando, ora se fazendo esperar. De qualquer modo, é sempre estranha, como uma pessoa cujo rosto nunca vemos. Dessa forma se dá a procissão do frei que

Veio como se num passeio,

mas onde o esperasse um estranho.

O tempo da espera guarda uma interrogação: o que ocor- rerá? Como a ação será desencadeada? Mais adiante, na obra

Crime na Calle Relator, o poeta trará à tona novamente esse tempo

da espera, dessa vez de forma irônica, como quem espera na sala de um dentista:

Por trás da espera há sempre a morte, morte há na sala do dentista. Há uma morte densa, nessa hora que vai da fixada à cumprida. (“Episódio da Guerra Civil Espanhola”)

112 BOSI, Alfredo. O Auto do frade: as vozes e a geometria. In: Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo, 1988, p. 98.

A hora da morte do frei vai se estreitando lentamente e o “agora” da duração da procissão pode ser cortado a qualquer momento. “Elegendo a cena derradeira de uma vida, o poeta quis segurar, no andamento lentíssimo do Auto, os minutos que fogem para o desenlace. A sua linguagem é um marca-passo”113:

– Sente como pode ser longo que nós chamamos de agora. – Que é como um tempo de borracha que se elastece ou que se corta.

Aliado ao tempo da espera da morte observamos o tempo futuro em forma de presságio. Vemos a ameaça da morte rondar todo o espetáculo, podendo ser apreendida por toda a gente. Contudo, não podendo ser vista, a morte pode ser captada pelos sentidos, como é o caso da visão. “A gente no adro” prevê o fuzilamento do frade através da cor encarnada:

– Não sei se hoje pela igrejas é dia de usar encarnado. – Para enforcado, o justo é roxo, pois sangue não é derramado. – Quem sabe se há nisso um presságio? Quem sabe se vão indultá-lo?

– Me parece, sim, presságio: não indulto, vão fuzilá-lo.

Embora seja a morte algo certo, a forma pela qual ela se dá permanece incerta, misteriosa, não havendo, pois, como não a temer:

Temo a morte, embora saiba que é uma conta devida. Devemos todos a Deus o preço de nossa vida

[...]

113 BOSI, Alfredo. O Auto do frade: as vozes e a geometria. In: Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo, 1988, p. 97.

Além do presságio quanto ao fuzilamento que ocorrerá no final, vemos o futuro incerto através da preocupação do frei em prever como seria Recife, daquele momento a alguns anos, quando ele não mais existisse:

Como será o Recife

que será? Não há quem diga. Terá ainda urupemas, xexéus, galos-de-campina? Terá estas mesmas ruas? Para sempre elas estão fixas? Será imóvel, mudará...

Prestes a se ausentar do mundo, a memória do frei Caneca tenta abarcar o Recife de todos os tempos, até mesmo daquele em que ele não mais estará presente.

A escolha de João Cabral pelo instante da morte do frei consegue unir o seu árduo fazer poético (exercício pessoal) ao fato histórico, do que se depreende uma nova lição para o poeta ao utilizar a técnica narrativa dramática, mostrando que seu verso é sempre um aprendizado. Nesse Auto, uma lição histórica.114

114 “Tendo-se em vista todo o processo de educação e aprendizagem a que o poeta foi submetido por seu próprio fazer poético, pode-se dizer que, com esse Auto, ocorre uma espécie de educação pela história.” BARBOSA, João Alexandre. João Cabral de Melo Neto. 2001, p. 83.