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3 PAISAGEM E VAZIO

3.5 Paisagem severina

Seguimos adiante com a nossa análise da obra cabralina, desta vez com o foco no seu “Auto de Natal pernambucano”, subtítulo de Morte e vida severina (1955). Dando continuidade ao tema presente em O cão sem plumas e nO rio, o poema dramático, dividido em dezoito partes, narra a jornada do retirante Severino do sertão para o litoral. Aqui testemunhamos o percurso da vida severina, uma existência repleta de privações, coberta, anteriormente, pela metáfora do ser “sem plumas”. Este auto natalino tem suas raízes nos autos pastoris medievais ibéricos, bem como no folclore nordestino brasileiro.

Escrito na mesma época de Paisagens com figuras, Morte e

vida severina trabalha os espaços da vida e da morte ao longo

do trajeto percorrido pelo retirante. Aqui se sobressai a resis- tência dos desvalidos:

Antes de sair de casa aprendi a ladainha das vilas que vou passar na minha longa descida.

O sujeito lírico cabralino é representado pela figura do retirante, cujo longo caminhar contrasta com o tempo breve de sua existência. Nesta obra, notamos a precocidade da morte (“morte de que se morre de velhice antes dos trinta”) como uma vela que se apaga sem se queimar completamente. O tempo do retirante é a duração de sua jornada, como vemos no gerúndio do verbo: “desde que estou retirando”. Entre vida e morte se dá o seu trajeto. Contra a vontade de desistir, temos a vontade de lutar, a fome de viver, de defender a vida. Sobre o motivo de sua retirada, ele nos explica:

o que pensei retirando foi estendê-la um pouco ainda.

A vontade de estender a vida, de ir em busca de um futuro melhor, é frequente no ser humano, que teme e angustia-se com a ideia de finitude. Esta vontade choca-se contra a forte presença da morte no auto. De fato, todo o poema é cercado pela morte: nos defuntos que o retirante encontra pelo caminho, “nos magros lábios de areia” da roça, na “rezadora titular” que vive da morte, fazendo desta “ofício ou bazar”; enfim, a morte é tanta que esperanças não há. O desejo do retirante em encontrar o mar e a terra fértil termina por ampliar-se no desejo de entender esse abismo que separa a vida da morte. Por que buscar tanto a vida se a morte, insistentemente, abafa o viver? Talvez fosse melhor ceder à pressão desta:

por que ao puxão das águas não é melhor se entregar?

Cansado de remar contra a maré da morte, o retirante percebe que sua vida é comprada sol a sol, dia após dia, como uma prestação. Esperava que fosse diferente durante o seu êxodo:

esperei, devo dizer, que ao menos aumentaria na quartinha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha o algodãozinho da camisa, ou meu aluguel com a vida.

Contudo, Severino percebe que vida e morte se equilibram. Se a segunda é consequência da primeira, o inverso também é verdadeiro. As duas se entrelaçam sendo uma única só. Assim, o tédio que invade Severino e a falta de esperanças no Sertão o desanimam tanto que este chega a duvidar da força da vida:

que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?

Durante o seu caminhar, o retirante encontra várias situações que favorecem a morte, fazendo-o pensar sempre em interromper a viagem. A paisagem severina, repleta de mor- tes, só agrava a desesperança que o caminheiro/Severino traz consigo, como vemos no exemplo dos dois homens carregando um defunto numa rede, gritando “Ó irmãos das Almas! Não fui eu que matei não”. Além disso, ele encontra o seu rio-guia (Capibaribe) cortado, o que o torna pessimista diante de cami- nhos que se multiplicam na sua frente, sem o rio para guiá-lo. Finalmente, Severino tem a resposta sobre se ele deve “pular ou não fora da vida”. E não é preciso palavras para expli- car-lhe, pois a própria vida lhe dá uma lição. Ela responde à sua pergunta com a manifestação dela própria, mesmo sendo a manifestação de uma vida severina: “à pergunta que fazia,/ ela, a vida, a respondeu/com sua presença viva”.

E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina.

Em Morte e vida severina, a morte ganha destaque por ser mais frequente no decorrer da narrativa. A morte está na terra sem cultivo, nos diálogos, nos defuntos e no rio que seca. A obra é envolvida pela sombra da morte e pela negatividade. Contudo, há também a força da vida e da esperança. A terra é o elemento simbólico da fertilidade, da feminilidade, assim como a fertilidade da mulher no final da obra, que como a terra, vence a morte, a tristeza e a seca.

A vida severina e franzina ganha um destaque humilde, sem tomar muito espaço no decorrer da narrativa, mas ao contrário da morte, que ganha em quantidade, a vida ganha em intensidade, pois o nascimento é sempre algo belo:

Belo porque é uma porta abrindo-se em mais saídas

Sendo assim, a morte perde para o espetáculo da vida e a ordem se inverte: ao invés de vida e morte, temos morte e vida, conforme o título do auto natalino: Esta inversão demonstra a ideia de resistência e renovação da vida apesar da miséria. Os fatos deprimentes, após tantas mortes severinas, recobrem no fundo algo brilhante: o delicado da vida, o nascimento de um novo severino, pois a vida permanece desafiando a morte, “teimosamente”, como uma fruta que mesmo após cortada, trabalha seu açúcar continuamente.

A resistência em relação à morte é um exemplo da resis- tência de Cabral em relação à poesia de fácil inspiração. Desde

Pedra do sono o caminhar do poeta se opõe à escuridão, à morte

do poema. Assim como Severino, o escritor vive o tempo da resistência, em meio à paisagem árida da linguagem.