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3 PAISAGEM E VAZIO

3.4 Paisagem cabralina

Obra composta de dezoito poemas, cujo tema abrange o Nordeste brasileiro e a Espanha, Paisagens com figuras (1955) apresenta poemas repletos de imagens, sendo uma das mais presentes a do mar. A lição do mar é um tema recorrente em João Cabral, seja o mar que “soprava sinos” em Pedra do sono, o mar/Maria em Os três mal-amados (“Maria era o mar dessa praia, sem mis- tério, sem profundeza”), o mar em O engenheiro, em que o poeta adentra mais a sua essência, o mar no qual Anfion joga a sua flauta, o mar que recebe o rio Capibaribe, enfim, em todos eles, o desejo é o de alcançar o “tempo calmo”, exemplo do tempo vivido no fundo do mar:

[...] Encontraste algum sobre a terra o fundo do mar,

o tempo marinho e calmo? [...]

(“A Joaquim Cardozo”, O engenheiro)

Anfion, por sua vez, deseja traçar sua poesia com a per- feição, a regularidade com que o mar traça suas ondas. Essa lição geométrica do mar aparece em O cão sem plumas, no qual ele se estende como uma bandeira para receber o rio mendigo:

O mar e seu tão puro professor de geometria

O mar-montanha que O rio mirava ao longe é retomado aqui, logo na primeira estrofe do poema que abre Paisagens com figuras:

[...] No cais de Santa Rita, enquanto vou norte-sul, surge o mar, afinal,

como enorme montanha azul. [...]

(O rio)

Aqui o mar é uma montanha regular, redonda e azul, mais alta que os arrecifes e os mangues rasos ao sul.

[...]

(“Pregão turístico do Recife”)

Neste primeiro poema, temos a lição da “melhor medida” encontrada. Para tanto, o poeta nos fornece imagens que melhor exemplifiquem essa simetria perfeita desejada pelo seu inte- lecto. Comparando o mar à montanha, ele nos põe diante de dois exemplos de estabilidade, de pureza, de exata medida do encontro do céu com a terra: a linha precisa do horizonte, como podemos verificar, dando continuidade à estrofe anterior de “Pregão turístico do Recife”:

[...] Do mar podeis extrair, do mar deste litoral, um fio de luz precisa, matemática ou metal.

[...]

Essa perfeita geometria do mar e da montanha, da qual podemos extrair o infinito do horizonte, remete ao desejo de eternidade que guardamos dentro de nós. Em seguida ao par

mar-montanha, o poeta nos apresenta a segunda lição através da imagem de “velhos sobrados” que levam, como ombros, um rio de cada lado. Essa imagem da balança pode salientar ainda mais o equilíbrio cabralino em articular os elementos do texto: a lição da escrita/arquitetura:

[...]

Na cidade propriamente velhos sobrados esguios apertam ombros calcários de cada lado de um rio. Com os sobrados podeis aprender lição madura: um certo equilíbrio leve, na escrita, da arquitetura. (“Pregão turístico do Recife”)

Dando continuidade ao poema, focando a atenção no “rio indigente”, reencontramos a condição miserável de O cão

sem plumas. Esse rio, por sua vez, levará de cada lado a gente

retirante que se estagna nos seus ombros (na mucosa de suas margens). A imagem se abre neste poema como diversas medidas, tentativas de expressar a geometria das coisas.

[...] E neste rio indigente, sangue-lama que circula entre cimento e esclerose com sua marcha quase nula, e na gente que se estagna nas mucosas deste rio, morrendo de apodrecer vidas inteiras a fio,

[...] (Grifo nosso)

O verbo “estagna” sugere a ideia de prender o tempo, para- lisá-lo, tornando o instante eterno e infinito como o horizonte. O par montanha-mar é substituído agora pelo par homem-rio, encontrado em O rio, bem como em O cão sem plumas. A imensidão da medida do infinito horizonte do primeiro parece contrastar com a humilde medida do segundo, e é esta segunda medida que serve de exemplo para a humilde escritura cabralina, aquela que mede cada passo, cada palavra ao compor a imagem no poema. Nesta estrofe vemos que medida melhor que o fio do horizonte, só o fio do homem – o percurso da vida:

[...]

Podeis apreender que o homem é sempre a melhor medida. mais: que a medida do homem não é a morte mas a vida. (“Pregão turístico do Recife”)

O mar e a montanha penetram em outros poemas desta obra como em “Medinaceli” no qual verificamos o aspecto vertical, elevado, próximo do céu: “do alto de sua montanha”, ou ainda em “Imagens de Castela”, onde o mar e sua infinidade são retomados.

Esse tema do infinito permanece em toda essa obra como vemos no poema “Imagens em Castela” no qual o poeta retorna à “paisagem em largura” do mar, comparando-a a uma “mesa”, buscando, assim, os limites da paisagem no espaço do poema:

[...]

É uma paisagem em largura, de qualquer lado infinita. É uma mesa sem nada e horizontes de marinha.

[...] (“Imagens em Castela”)

Essa imagem de tal paisagem plana e reta, tal qual uma mesa, abre-se diante do poema como uma cidade-mesa, esten- dendo de ponta a ponta o olhar do escritor.

[...] posta na sala deserta de uma ampla casa vazia, casa aberta e sem paredes, rasa aos espaços do dia.

[...]

(“Imagens em Castela”)

O tempo de Paisagens com figuras pode ser aquele da contemplação. Nessa obra, João Cabral mantém o desejo de concretizar a imagem, prendendo-a no espaço-tempo do poema. No trajeto de sua poesia, vemos que desde Pedra do sono o eu lírico vem, aos poucos, se desvencilhando da paisagem etérea e se fixando na paisagem concreta. A vontade de estabilizar o tempo, concretizando-o e estagnando-o como poema, pode ser percebida na memória do escritor que articula todos os poemas ligando-os ao que eles trazem em comum, ainda que abordem espaços e tempos diferentes.

Nos três “cemitérios pernambucanos”, poemas com- postos de quatro quadras em redondilha maior, dos quais se depreende um espaço fechado tal qual o espaço cercado do cemitério, isolado do espaço exterior, já sinalizando para o espaço-tempo da morte encontrado em Morte e vida severina, temos uma sequência da penetração do espaço de fora no do lado de dentro do cemitério. Para Antonio Carlos Secchin, o primeiro se caracteriza pelo espaço fechado, de isolamento em relação à paisagem externa,

Para que todo esse muro? por que isolar estas tumbas? do outro ossário mais geral que é a paisagem defunta? “Cemitério pernambucano” (“Toritama”)

ao passo que, no segundo, temos as covas comparadas às ondas do mar, e a paisagem externa consegue penetrar no cemitério:

[...]

As covas no chão parecem as ondas de qualquer mar, mesmo as de cana, lá fora, lambendo os muros de cal.

[...]

“Cemitério pernambucano” (“São Lourenço da Mata”)

Já o terceiro consegue romper as barreiras que separam o dentro e o fora, pois ambos os espaços possuem algo em comum: “a paisagem defunta”.67

[...]

Mortos ao ar-livre, que eram, hoje à terra-livre estão. São tão da terra que a terra Nem sente sua intrusão “Cemitério pernambucano” (“Nossa Senhora da Luz”)

Essa paisagem de ruína, na qual o nada prevalece, vive o tempo da imobilidade uma vez que o tempo parece não fluir, demorando-se na luta diária, “num tempo que não é linha reta, mas círculo”68, como vemos no recurso da anáfora, caracteri-

zando a luta incessante do retirante,

[...]

que se dá de dia em dia, que se dá de homem a homem, que se dá de seca em seca, que se dá de morte em morte. (“Vale do Capibaribe”)

67 SECCHIN, Antonio Carlos (1999, p. 98-99).

68 SENNA, Marta de. João Cabral: tempo e memória. Rio de Janeiro: Antares, 1980, p. 89.

O “tempo calmo”, tão insistentemente buscado por Anfion, bem como o tempo infinito das montanhas, contrasta com o tempo da luta incessante do poeta/retirante que vive a se surpreender com a paisagem inóspita da linguagem a fim de inaugurar um novo código, não deixando dúvidas de que o seu fazer não é o da fôrma do ferro fundido, mas sim o do ferro forjado, de quem o faz com as mãos, uma ação “que se dá de dia em dia”, em busca da imagem, seja ela qual for: mar, montanha, rio, mesa; para melhor descrever seu poema.