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4 IDEIAS FIXAS DE JOÃO CABRAL

4.2 O tempo espesso cabralino

O rigor de Uma faca só lâmina tem continuidade em Serial (1959 – 1961), obra composta de dezesseis poemas. Escrito em série, como o próprio título indica, Serial compreende poemas divi- didos em quatro partes. Essa série de poemas ganhará sentido em conjunto, no qual cada detalhe, cada estrofe faz parte de um todo maior: o Serial. Isso pode ser aplicado para toda a obra de João Cabral84. Nesse livro, o poeta estuda o ovo da galinha,

o relógio, o alpendre, a cana de Málaga, enfim, ele descreve as coisas desde um simples objeto, como ocorre em “O relógio”, a um amplo lugar como em “O alpendre no canavial”. O cuidado com que o poeta trabalha os versos em cada série de poemas é o mesmo do de um religioso, pois parece levar a caneta ao papel, de maneira recolhida e religiosa,

[...]

quase beata, de quem tem nas mãos a chama de uma vela (“O ovo de galinha”)

83 NUNES, Benedito (1971, p. 109).

84 Segundo João Alexandre Barbosa em A metáfora crítica (1974), essa característica do poeta já pode ser percebida em O cão sem plumas.

A natureza do tempo pode ser evidenciada em poemas como “O ovo de galinha”. Nele há a análise cuidadosa do ovo, partindo de sua superfície (visível ao olho) ao peso invisível do que ele carrega dentro de suas paredes brancas:

Ao olho mostra a integridade de uma coisa num bloco, um ovo. Numa só matéria, unitária, maciçamente ovo, num todo. Sem possuir um dentro e um fora, tal como as pedras, sem miolo: e só miolo: o dentro e o fora integralmente no conforto. No entanto, se ao olho se mostra unânime em si mesmo, um ovo, a mão que o sopesa descobre que nele há algo suspeitoso: que seu peso não é o das pedras, inanimado, frio, goro;

que o seu é um peso morno, túmido, um peso que é vivo e não morto.

[...]

O poema parte do concreto ao abstrato. Temos a “fixação do tempo (ou tempos) físico da percepção85”, em que a duração

do passar segue o movimento circular do ovo/poema.

No poema “O relógio” a primeira metáfora escolhida para o tempo é “bicho”, sendo gradativamente amenizada no decorrer das estrofes, passando de um bicho em uma jaula à figura alada de um pássaro em uma gaiola.

85 Em seu ensaio “O geômetra engajado” Haroldo de Campos comenta, em uma nota, que o tempo cabralino não é o “tempo perdido” da memória proustiana, mas sim o tempo fixo da análise de um objeto. CAMPOS, Haroldo de. “O geômetra engajado” In: Metalinguagem e

Ao redor da vida do homem há certas caixas de vidro, dentro das quais, como em jaula, se ouve palpitar um bicho.

Vemos a tentativa de descrever o que há dentro dessas caixas de vidro. Não se sabe ao certo o que é. O poema inicia-se investigando, buscando respostas diante da sua dúvida: “Se são jaulas não é certo” (Grifo nosso). A incerteza do que vêm a ser essas “certas caixas de vidro” provoca o símile tão utilizado por João Cabral: “como em jaula”. A caixa de vidro comparada a uma prisão, que prende o bicho-tempo, passa agora a gaiola:

Se são jaulas não é certo; mais perto estão das gaiolas ao menos, pelo tamanho e quebradiço da forma.

De jaula resistente que detém um ser feroz, ela passa à delicadeza de uma gaiola que guarda um pássaro, de “alada palpitação”:

Umas vezes, tais gaiolas vão penduradas nos muros; outras vezes, mais privadas, vão num bolso, num dos pulsos. Mas onde esteja: a gaiola será de pássaro ou pássara: é alada a palpitação, a saltação que ela guarda; e de pássaro cantor, não pássaro de plumagem: pois delas se emite um canto de uma tal continuidade

A imagem dos ponteiros do relógio, semelhante às asas de um pássaro, remete-nos ao tempo-pássaro e ao desejo da ave de ganhar liberdade. Porém, impossibilitada de voar, tem de

contentar-se com o curto bater de suas asas dentro do espaço limitado da gaiola. Nessa primeira parte do poema, vemos uma espécie de sondagem, de investigação minuciosa desse objeto relógio-jaula-gaiola. Seguindo as pistas do canto do tempo -pássaro que se ouve de dentro da gaiola, o escritor parte do exterior (da forma) para o conteúdo, examinando a existência desse ser guardado na gaiola. Assim, o lado de dentro será agora pesquisado pelo poeta, como vemos na segunda parte, na qual, a partir do som que se ouve, evidencia-se uma rotina, pois o canto deste pássaro não se verticaliza. É um canto contínuo, linear, sempre o mesmo, nunca foge do compasso e nem se interrompe ainda que ninguém o esteja ouvindo. Nesse poema é bastante clara a existência do tempo ligada à existência humana:

que continua cantando se deixa de ouvi-lo a gente: como a gente às vezes canta para sentir-se existente.

Percebemos a materialização do tempo através de um relógio que, por sua vez, assemelha-se a um coração de “alada palpitação” a contabilizar nossa existência. Durante todo o livro,

Serial, notamos a importância que o tempo ganha.

[...]

têm sempre o mesmo compasso horizontal e monótono, e nunca, em nenhum momento, variam de repertório:

dir-se-ia que não importa a nenhum ser escutado. Assim, que não são artistas nem artesão, mas operários

A figura do operário veste bem o ponteiro do relógio que trabalha sem parar, no mesmo ritmo automatizado. Diferentemente dos artesãos e artistas que fogem do compasso rotineiro do tempo, procurando evadir-se na arte, o trabalho dos ponteiros-operários

[...]

é simplesmente trabalho, trabalho rotina em série, impessoal, não assinado, de operário que executa seu martelo regular proibido (ou sem querer) do mínimo variar.

Esse trabalho em série, como vemos no segundo verso, parece espelhar o trabalho do poeta, principalmente nessa obra, que leva como título Serial. Compostos de quatro partes, número esse que conota precisão e perfeição, os poemas trazem o tema do fazer poético determinado e impessoal do escritor.

A resistência do poeta procura igualar-se à resistência do tempo, uma vez que este segue seu ritmo sem cansaço. Ao contrário de um operário, cuja mão é humana e, portanto, falha, João Cabral deseja a perfeição da mão mecânica do relógio (o ponteiro). Ele segue esta última, no intuito de vencer a fadiga, insistindo na precisão de sua mão poética, como se essa tivesse a precisão temporal dos relógios:

A mão daquele martelo nunca muda de compasso. Mas tão igual sem fadiga, mal deve ser de operário; ela é por demais precisa para não ser mão de máquina, e máquina independente de operação operária.

Na terceira parte do poema, após o poeta haver exa- minado a forma (relógio, gaiola), o som (canto do pássaro) e o ritmo (humano, operário, mecânico), ele parte agora para a indagação a respeito da materialização do tempo. Falamos da mão do operário, da mão do poeta, mas e quanto à mão do tempo? O que move essa mão, cuja exatidão assemelha-se a uma máquina? E como funciona a maquinaria do tempo, se é isenta da mão operária? O escritor segue em busca de uma explicação para a força que move essa máquina do tempo. Aqui se começa a querer desvendar do que é feito o tempo, qual a composição de sua maquinaria. Podemos visualizar o fluido que passa por esta máquina? “Que fluido é ninguém vê”.

De máquina, mas movida por uma força qualquer que a move passando nela, regular, sem decrescer: quem sabe se algum monjolo ou antiga roda de água que vai rodando, passiva, graças a um fluido que a passa;

[...]

O poeta persiste na definição desse fluido: [...]

da água não mostra os senões: além de igual, é contínuo, sem marés sem estações. Seria então o vento? E porque tampouco cabe por isso, pensar que é o vento, há de ser um outro fluido que a move: quem sabe, o tempo.

Após as tentativas de se tentar preencher tal máquina, atenta-se para o fato de que o tempo não pode ser preenchido por outra coisa a não ser por ele mesmo.

Na quarta e última parte do poema, há a interiorização do tempo. Notamos que o poeta, desde o início, parte do exterior, da simples “caixa de vidro” na qual pulsava um bicho, para apreender “agora, de dentro do homem”.

Quando por algum motivo a roda de água se rompe, outra máquina se escuta: agora, de dentro do homem; outra máquina de dentro, imediata, a reveza, soando nas veias, no fundo de poça no corpo, imersa.

[...]

Atenta-se agora para um canto diferente, não mais o de pássaro rouco preso numa gaiola, mas “o som da máquina” de dentro, o pulsar do coração, substituindo a alada palpitação do pássaro. A força que dava impulso à máquina é encontrada agora na “bomba motor” (coração) que o homem leva dentro de si.

[...]

se descobre nele o afogo de quem, ao fazer, se esforça, e que ele, dentro, afinal, revela vontade própria, incapaz, agora, dentro, de ainda disfarçar que nasce daquela bomba motor (coração, noutra linguagem).

Essa “vontade própria” do ritmo que damos à nossa vida pode remeter também à vontade do poeta em descrever uma poesia trabalhada sem fadiga, movendo qualquer pessoalidade que haja nela.

O poema parece compreender um círculo, como o movi- mento do ponteiro do relógio. Tanto o tique-taque do relógio como o bater do coração são movimentos incessantes. O último exemplo sugere um relógio que carregamos no peito, cujo pulsar também contabiliza nossa vida como o tempo externo sociali- zado do relógio. Essa não é a primeira vez que o poeta tratará de tempo-interno, tempo-externo. Se o fluido do tempo é o próprio tempo, esgotando-se nele próprio, o mesmo ocorre com o coração que

[...]

vive a esgotar, gota a gota, o que o homem de reserva, possa ter na íntima poça.

Aqui cabe voltar ao primeiro compasso do poema. No primeiro verso de “O relógio” temos: “Ao redor da vida do homem” (Grifo nosso). Ao redor do homem o tempo o envolve como uma membrana, uma jaula invisível, como a proteção da lente trans- parente que envolve o relógio (a caixa de vidro). Assim, vivemos dentro de uma caixa de vidro (da redoma do tempo). É possível apreender neste poema a ideia de que o mundo e seu movimento podem ser representados pelo pulsar do relógio.86

Mas o tempo em Serial não é só o do “bicho” que palpita na jaula, indicando uma ameaça – a finitude humana –; é também o tempo controlado por nós, o tempo de dentro, que “revela

86 Em seu livro O tempo na história, Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 140, G. J. Whitrow comenta a ideia de Kepler em comparar o universo a um relógio: no início do século XVII, “Kepler rejeitou especificamente a antiga concepção mágica e quase-animística do universo e afirmou sua similaridade com um relógio”.

vontade própria” como ocorre no trabalho poético, em que o tempo parece estar suspenso, entregue ao labor do poeta que lida com palavras, sons e rimas, obedecendo ao ritmo do pulsar do tempo de dentro: o tempo do ser, “que nasce daquela bomba motor (coração, noutra linguagem)”.

Nesse livro, verificamos a apreensão dos objetos descritos internamente e externamente. O poeta deseja tornar con- creto aquilo que é abstrato, como vemos no exemplo do tempo transformado em coisa palpável (bicho) apreendido pelos seus sentidos. Insistindo ainda na metáfora utilizada para o tempo, assim como lemos em “O relógio”, a figura de um tempo-bicho que pulsa dentro de uma jaula, iremos nos deparar também em outros poemas com esse “bicho” que vive sempre ao nosso lado, fazendo parte da nossa existência. Tal exemplo pode ser verificado em “O alpendre no canavial”, poema que segue após “O relógio”. Poderia o tempo ser sentido fisicamente? Sim, através dos sentidos. Em “O alpendre no canavial”, o tempo é apreendido através do sabor, do olfato, da visão, do tato e da audição, como revelam as palavras no poema em itálico: sabor,

cheiro, palpável, ver e escuta.

Do alpendre sobre o canavial a vida se dá tão vazia que o tempo dali pode ser sentido: e na substância física. Do alpendre, o tempo pode ser sentido com os cinco sentidos que ali depressa se acostumam a tê-lo ao lado, como um bicho.

O “bicho” aparece aqui novamente não mais como uma ameaça, um ser que deva estar preso, mas sim solto, como um animal de estimação. A figura do animal remete também à capacidade que esse tem de sentir a “substância física”, através de seus sentidos que são mais apurados que o do homem. Neste

alpendre, “a vida se dá tão vazia”, que se torna possível sentir o tempo através dos cinco sentidos. Esse tempo-substância consegue preencher o vazio, o deserto, assim como o ar que enche o pulmão, ou a chuva que encharca uma roupa. Esta facilidade de sentir o tempo, ou o transbordamento desse que se torna visível nas coisas, ocorre

Ou porque no deserto, em volta, da cana oceânica e sem ilhas, os poros, mais ávidos, se abram e a alma se faça menos fibra, ou porque ele próprio, o tempo, por contraste com a vida rala, se condense, se faça coisa, que se vê, se escuta, se apalpa.

[...]

Sobre a solidez, o caráter palpável dessa imagem (corpo) na escrita poética, Benedito Nunes explica a percepção do poeta, que consegue “tatear com os olhos”:

Essa exploração perceptiva do mundo, que detecta as qualida- des densas das coisas, é orientada pelo vetor da sensibilidade originária, latente a todas as impressões sensíveis, e que é o próprio corpo, como forma de contato primitivo e carnal, fontes das intenções fundadoras e pré-reflexivas, anteriores à atividade específica dos órgãos dos sentidos. Através da sensibilidade carnal, estruturante da percepção, a exploração do mundo se torna um corpo a corpo com as coisas.87 No espaço do alpendre, o eu lírico está aberto às sensações trazidas pela natureza, pronto para mais uma lição: a lição do tempo no canavial. Aqui, além da visão, audição e tato, o tempo também compreende o paladar e o olfato:

[...]

... o tempo ali pode mesmo ser sentido, literalmente, e até como sabor e cheiro

O tempo passado se presentifica através da memória e da reminiscência, insiste em deixar vestígios de sua passagem, assim como um incêndio que, mesmo depois de apagado, ainda ficam suas cinzas como um rastro das labaredas de outrora, ou como uma vela que, mesmo após o fim de seu pavio, sua matéria persiste endurecida, compacta, resto de “coisa extinta”:

cheiro de fumo, de fumaça, de queimado, de coisa extinta, como o de uma coivara longe, extinta mas fumaçando ainda, cheiro sempre de coisa extinta, qual se o tempo fosse resíduo, já nos tocasse já passado, apenas com o rasto, já ido,

[...]

Nesse passado “já ido”, com “sabor leve de cinza”, perce- bemos a mobilidade do tempo, pois ele ou já foi ou ainda vai ser; nunca é. Isso porque, permanecendo em constante mobilidade, semelhante ao ponteiro dos segundos de um relógio, só pára quando a máquina se quebra. Portanto, sendo o presente, desde já e sempre, uma fuga, somente será possível situá-lo na duração do seu passar. Conforme afirma Santo Agostinho, o presente “provém daquilo que ainda não existe, atravessa o que não tem dimensão, para mergulhar no que já não existe88”.

Contudo, em “O alpendre no canavial”, o tempo é sub- vertido, uma vez que “se deposita” nas coisas:

[...]

o tempo pára de correr: começa a se depositar.

Nesse alpendre, o tempo passa da abstração para a con- cretude. Fundido ao alpendre, o tempo se materializa nas coisas, sendo-as, impossibilitado de fluir no seu ritmo. Vemos que o eu lírico recusa a temporalidade e permite-se abandonar no instante. A referência à “água lisa” pode representar o tempo linear, cronológico, recusado pelo poeta:

[...]

Onde cada um com a receita herdada dentro da família, se põe a demonstrar que o tempo não soa sempre em água lisa.

O poema mostra que o tempo se expressa através da lin- guagem, como vemos na repetição do som das sílabas, em que o tempo parece arrastar-se no alpendre, passando lentamente no ritmo dos animais, sendo percebido nos sons da natureza e dos seres. Temos a sonoridade repetitiva, a presença da aliteração, caracterizando assim a ação dos animais, dando-nos a ideia de continuidade e repetição do tempo: “patativas, papa-capins,/

xexéus”. Enfim, vemos o tempo “mostrar como passa,/em sin-

taxes de todo tipo”. Se ele sempre nos foge, – como vimos o presente é uma fuga, em que o passado já foi e o futuro ainda não é – ao menos neste alpendre conseguimos senti-lo ao nosso alcance, “ao alcance da mão”.

O tempo então é mais que coisa: é coisa capaz de linguagem, e que ao passar vai expressando as formas que tem de passar-se. Patativas, papa-capins, Xexéus, concrises, curiós: é então que se escuta o tempo que passa e o diz, de viva voz.

sabiás, canários-da-terra, cantando de estalo e corrido: uns gaguejando, qual telégrafo, outros contínuos, como um trilho. Sanhaçus, galos-de-campina, ferreiros, com ferro no estilo: todos vêm mostrar como passa, em sintaxes de todo tipo,

[...]

A segunda, terceira e quarta estrofes dessa parte ilustram o tempo interrompido, entorpecido, “impedido de fluir livre”, como se o poeta desejasse reter o tempo no espaço limitado do poema. A repetição de “Então” que inicia as três estrofes, mostra-nos esse tempo repetitivo, acumulado, preso ao instante:

Então, dir-se-ia que o tempo

interrompe toda carreira, entorpecido pela tensão do mundo à espera e à espreita.

Então, dir-se-ia que o tempo

tem cãibras ou fica crispado, impedido de fluir livre entre esperas, bolsas de vácuo.

Então, ele faz tão espesso

que é palpável sua substância; tão espessa que ao apalpá-la se tomaria por membrana

(Grifos nossos, exceto em “palpável”)

Vemos que, ao se acumular no espaço do alpendre, o tempo se torna algo espesso, cuja substância pode ser apalpada. Essa espessura do tempo ganha espaço no movimento do trem que o poeta colocou entre parênteses. A insistência do adjetivo espesso(a), que aparece no poema cinco vezes, sinaliza para o desejo de certeza quanto à espessura de sua substância, uma vez que há a aliteração da consoante “p”: “o tempo pára de correr”. A membrana do tempo se torna

tão espessa que até parece que já nunca mais se dissolve; tão espessa como se a espera não fosse de trem mas de morte. (Quanto mais espessa, eis que o trem com a explosão, a histeria,

bruta de ferro, de cidade, rompe a membrana distendida. E só depois que ele reparte com sua exaltação maníaca é que os rotos fiapos duros de tempo coalhado em bexiga, voltam a diluir-se no vazio que vai diluindo, dia a dia, ferros velhos de uma paisagem posta à margem, fora da via). (Grifos nossos)

A ideia do trem assemelhada à morte é perfeita com relação à passagem de ambos. O trem passa pelo alpendre, quebrando o tempo sublime desse, assim como a morte passa pela nossa vida, assim como uma fruta é passada por uma espada, como um rio atravessa uma paisagem. Nessas estrofes entre parênteses percebemos a espessura do tempo e da morte, através do movimento realizado pelo trem. Do lado de fora dos parênteses temos o alpendre e sua tranquilidade. Nele, o tempo é distendido, alongado, como uma bola de sabão que levemente passeia no ar. Contudo, se o trem surge com sua rotineira velo- cidade, a tensão dessa frágil “membrana distendida” do tempo do alpendre pode se romper. A passagem do trem-morte, que adentra o cenário e rompe o tecido temporal do alpendre, fazendo restarem somente os “rotos fiapos duros de tempo” é representado pelo parêntese que envolve três estrofes do poema. Depois, tudo volta à normalidade, pois, após o tecido rasgado do tempo, seus fiapos “voltam a diluir-se no vazio” no cenário do alpendre. Cenário esse que se encontra “fora da via” do trem, fora do parêntese, assim como a morte que está fora da vida.

Esse tempo distendido do alpendre parece traduzir o que vem a ser a tensão temporal no poema cabralino. Como um tecido elástico preso nas duas pontas, o poema busca reter o tempo no espaço trabalhado pelo poeta. Diferente do tempo social e real, o tempo do “alpendre” expressa o tempo do poema: o eterno presente.

Na poesia cumpre-se o presente sem margens do tempo, tal como o sentia Santo Agostinho: presente do passado, pre- sente do futuro e presente do presente. A poesia dá voz à existência simultânea, aos tempos do Tempo, que ela invoca,