5 MUSEU E MEMÓRIA
5.2 Memória – A escola das facas
A escola das facas (1980) compreende uma reunião de poemas
sobre Pernambuco. Tudo aqui converge para um lugar, onde a infância pode ser reencontrada, os espaços podem ser revisitados e o Pernambuco que foi se confunde com o Pernambuco que é, ambos misturados na “moenda do tempo”.
101 Segundo Marly de Oliveira, no prefácio à Obra completa do poeta, “o número 4 e seus múltiplos são uma presença constante na poesia de João Cabral de Melo Neto, não que a ele atribua uma função esotérica, mas simplesmente como sinônimo de equilíbrio e racionalidade” (1995, p. 20).
Na obra, vemos as chuvas de Pernambuco, bem como suas frutas, suas praias, sua voz – a voz do coqueiral e do canavial – o engenho da infância do poeta, o rio Capibaribe; enfim, os poemas dão vozes ao ser pernambucano que se apresenta diluído em todo esse livro. Sobre o título, João Cabral comenta:
O título original era Poemas Pernambucanos. Depois o José Olympio achou-o pouco comercial [...] Eu então mudei para
A escola das facas, título de um dos poemas. Imitei Molière,
que tem A escola de mulheres, como o imitaram também Gide e Cocteau. Mas o meu livro não tem nada a ver com o de Molière nem com os dos outros [...] Tem um tema. É um livro todo dedicado a Pernambuco.102
Sendo o tema da obra Pernambuco, os poemas trazem fatias pernambucanas a formarem esse todo. A escola das facas, tal qual uma faca, vai abrindo aos poucos o tecido da memória do poeta a fim de compor os quadros de suas reminiscências, palavra por palavra, “faca a faca”. Esse cortar da faca traz à superfície a cicatriz mais profunda. No intuito de “mumificar” suas reminiscências, evitando que estas se desprendam da memória, como páginas de poemas que se desprendem de um livro, A escola das facas traz aquilo que ele julgava não ter guardado, mas que permanece consigo:
[...]
...uma cicatriz, que não guardo, soube dentro de mim guardar-se.
[...]
(“Menino de engenho”, Museu de tudo)
Após o livro ponte, como denominamos Museu de tudo, João Cabral surge com a novidade das reminiscências de suas relações familiares de infância. Se, desde Pedra do sono até A
educação pela pedra, o poeta viveu o aprendizado da contundência
e da estabilidade da pedra, agora, em A escola das facas, o poeta parece viver uma educação pela memória, dando continuidade a sua obra que parecia ter tido um ponto final:
Tendo lançado, em 1968, suas Poesias completas, o autor como que fechou um ciclo balizado por duas pedras: a primeira, do
sono, e a última, d’A educação. Tresleu-se nisso um protocolo
precoce de aposentadoria poética, desmentido cab(r)almente pelo vigor criativo de A escola das facas.103
A criatividade desse novo livro, conjunto de quarenta e quatro poemas, pode ser vista como a junção do tema da memó- ria à sua obsessão pela lucidez adquirida nos poemas anteriores. Assim, a memória trabalha a matéria do poema sem que haja uma perda da consciência conquistada pelo poeta-engenheiro.
Após o longo livro anterior, vemos que “A escola das
facas não deixa de ser, à sua maneira, um outro museu: o de
Pernambuco”104, cujos espaços são desenhados através da memó-
ria geográfica do escritor. Assim como em Museu de tudo, o poema com o qual João Cabral abre A escola das facas tem uma função explicativa ao compartilhar sua produção poética com o leitor: “Eis mais um livro, (fio que o último)”. Já dizia o poeta: “Quero ser julgado sobre que escrevi até os 45 [anos]”. Com essas palavras garantia ser o percurso de Pedra do sono à Educação
pela pedra aquilo que de melhor havia em sua obra. A escola das facas traz no primeiro poema o tema da publicação de livros:
Eis mais um livro (fio que o último) de um incurável pernambucano; se programam ainda publicá-lo, digam-me, que com pouco o embalsamo.
103 SECCHIN, Antonio Carlos. Poesia e desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 84.
104 SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos e outros ensaios cabralinos. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 271.
E preciso logo embalsamá-lo: enquanto ele me conviva, vivo, está sujeito a cortes, enxertos: terminará amputado do fígado, terminará ganhando outro pâncreas; e se o pulmão não pode outro estilo (esta dicção de tosse e gagueira), me esgota, vivo em mim, livro-umbigo. Poema nenhum se autonomiza no primeiro ditar-se, esboçado, nem no construí-lo, nem no passar-se a limpo do datilografá-lo.
Um poema é o que há de mais instável: ele se multiplica e divide,
se pratica as quatro operações enquanto em nós e de nós existe. Um poema é sempre, como um câncer: que química, cobalto, indivíduo parou os pés desse potro solto? Só o mumificá-lo, pô-lo em livro.
(“O que se diz ao editor a propósito de poemas”, A escola das facas)
A pessoalidade sutil e trabalhada desse “livro-umbigo” não interfere na exigência e no rigor da sua preocupação com a forma. O primeiro verso do poema é imediatamente negado pelo segundo, pois como afirmar ser esta a sua obra derradeira, se em seguida o poeta se denomina um “incurável pernambucano”? Nada há contra a vontade compulsiva de escrever, não adiantando promessa alguma: “(fio que o último)”. Ressalvemos que sempre existirá algo a ser dito e, assim sendo, não há como prever o último livro, o último poema. Ciente da inesgotabilidade da poesia, o poeta admite ser o poema algo instável e fugidio, sendo somente possível parar “os pés desse potro solto” embalsamando-o em um livro, antes que o seu feitor o mutile. Nas três primeiras estrofes, o assunto é o livro, esse organismo vivo que pede ao poeta para ser logo publicado; já as três últimas estrofes abordam o poema.
Em A escola das facas prevalece a tentativa de reter o tempo. A “memória mumificada” compreende a união da memória pessoal do museu pernambucano do autor com a memória histórica, a que João Alexandre Barbosa chama de “memória enxundiosa”.105 Para ele, a convergência dessas duas memórias
pode ter impulsionado a composição do Auto do frade.
Além do tema da memória, o poeta traz para A escola das
facas o elemento feminino, em que a mulher é retratada como
cidade/aconchego (“Olinda revisited”) ou como uma fruta (“As frutas de Pernambuco”), ou ainda a mulher/menina andaluza, cujas pernas são vestidas por “saias folhudas”, como a cana- de-açúcar (“A cana-de-açúcar menina”) e outros exemplos mais. Contudo, interessa-nos ressaltar o tempo-memória nessa obra.
Em “Prosas da maré na Jaqueira”, o poeta aprende a lição do rio Capibaribe ao elegê-lo como mestre desde seu nascimento. À geografia dos caminhos traçados pela sua memória une-se a geografia do Capibaribe. Não se trata de um relato ocasionado pelo sentimentalismo, mas sim pelo aperfeiçoamento da composição de seus poemas, onde “o poeta consegue criar no texto uma pers- pectiva até então praticamente inexistente: a do próprio sujeito lírico enquanto ser histórico”.106 Antônio Carlos Secchin assinala
para o fato do “eu” aparecer na obra cabralina pela primeira vez de forma explícita: “Quase 50% dos textos trazem as marcas da primeira pessoa...”.107 Finalmente, após a sua rigorosa educação pela
pedra, desde Pedra do sono, Cabral agora parece conseguir livrar-
se do pudor da primeira pessoa, após seu exercício errante pela paisagem da linguagem. O rigor e a exatidão, buscados desde o início, passam a estar ao seu lado, naturalmente, ou ainda, como uma cicatriz que o poeta trará sempre consigo.
105 BARBOSA, João Alexandre. João Cabral de Melo Neto (2001, p. 78). 106 SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos e outros
ensaios cabralinos. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 272. 107 SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos e outros
No poema a seguir, encontramos sua “Autobiografia de um só dia”:
No Engenho Poço não nasci: minha mãe, na véspera de mim, veio de lá para a Jaqueira,
que era onde, queiram ou não queiram, os netos tinham de nascer,
no quarto-avós, frente à maré. Ou porque chegássemos tarde (não porque quisesse apressar-me, e se soubesse o que teria
de tédio à frente, abortaria) ou porque o doutor deu-me quando, minha mãe no quarto-dos-santos, misto de santuário e capela, lá dormiria, até que para ela, fizesse cedo no outro dia o quarto onde os netos nasciam. Porém em pleno Céu de gesso, naquela madrugada mesmo, nascemos eu e minha morte, contra o ritual daquela Corte que nada de um homem sabia: que ao nascer esperneia, grita. Parido no quarto-dos-santos, Sem querer, nasci blasfemando, pois são blasfêmias sangue e grito em meio à freirice de lírios,
mesmo se explodem (gritos, sangue), de chácara entre marés, mangues.
Nesse poema vemos o claro destino de todos, o ciclo da vida: queiramos ou não, nascemos e morremos. Desde sempre, a vida nos impulsiona para fora: “sem querer, nasci blasfemando”. Ao nascermos, já trazemos conosco a morte: “nascemos eu e minha morte”. Temos, pois, um poema concebido de acordo com o pensamento de Schopenhauer, para quem, quando morremos retornamos ao ventre da natureza, que por sua vez fará surgir outras vidas. O filósofo nos descreve a vida e a morte como complemento um do outro, cujo equilíbrio é necessário à con- tinuação do mundo, da natureza. Sendo assim, empalidecemos aos poucos para que em seguida surjam novos seres.
Ora, se a Grande Mãe envia tão sem cuidado seus filhos des- protegidos de encontro aos mil perigos ameaçadores, isso só pode ser porque ela sabe que, caso eles caiam, recaem em seu ventre, onde estão protegidos e, por isso, a sua queda é apenas uma brincadeira.108
Portanto, os versos indicam claramente a consciência do poeta em relação à morte, além de um forte pessimismo como podemos observar no tédio a invadir sua alma “frente à maré” da vida, resultando, assim, num arrependimento por ter nascido:
(não porque quisesse apressar-me, e se soubesse o que teria
de tédio à frente, abortaria)
O arrependimento se dá, após o conhecimento daquilo que outrora era desconhecido, e, ciente de sua verdade, o eu lírico despreza a experiência vivenciada. Sem poder retroceder o tempo, resta-lhe lamentar o ocorrido – ter nascido. Eis o que ocorre nesse poema: o sentimento de impotência diante do fato já consumado, que é, lamentavelmente, o de estar vivo. Como diz o verso acima, se nos fosse possível adivinhar o tédio
108 SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 79.
que teríamos a nossa frente, abortaríamos. O fato de os versos estarem entre parênteses sugere que possa ser uma maneira de demonstrar o estado de gravidez. Estando entre parênteses (ainda do lado de dentro) o poeta não teria como prever a verdade do lado de fora: o tédio perante a maré da vida.
Não por acaso, a palavra “maré” aparece duas vezes nesse poema. A primeira vez ocorre no sexto verso, com a descrição do local onde o poeta vem ao mundo: “os netos tinham de nascer,/no quarto-avós, frente à maré”. A segunda vez ocorre no último verso: “de chácara entre marés, mangues”. A maré pode significar o ciclo que compreende morte-vida, a maré da vida, na qual estamos imersos harmoniosamente. Por outro lado, a sensação de mesmice que temos ao mirar a maré do mar em seu ir e vir causa-nos um certo tédio.
Em “Barra do Sirinhaém”, poema composto de duas par- tes, temos a apresentação de duas formas do estar no mundo. Vemos que na primeira parte, o sujeito não se entrega à pai- sagem, ao contrário, fecha-se em si mesmo, isola-se do espaço que o circunda, como se ele estivesse dentro da própria gaiola. Já na segunda parte, o sujeito (“alguém”) encontra-se imerso na atmosfera nordestina, entregando-se a tudo ao seu redor, pois “sente com o corpo que a terra roda redonda em seu eixo”. A experiência temporal é, portanto, diferente em ambas as situações. Na primeira, não há uma sintonia entre o sujeito e o tempo, sendo este um eterno fluir, algo que sempre escapa do controle das pessoas; ao passo que na segunda parte, há uma perfeita sintonia entre o tempo e o sujeito, sendo ambos uma só e mesma coisa. Para tal conclusão, importa notar, nos versos grifados, o jogo do poeta ao trocar de posição os verbos “deixar” e “deitar” no quarto verso da primeira estrofe de cada parte.
1
Se alguém se deixa, se deita, numa praia do Nordeste, ao sempre vento de leste,
mais que se deixa, se deita,
se se entrega inteiro ao mar, se fecha o corpo, se isola dentro da própria gaiola e menos que existe, está;
[...]
esse alguém pode que ouvisse, assim cortado, e vazio, no seu só estar-se, o assovio do tempo a fluir, seu fluir-se.
2
Se alguém se deixa, se deita, numa praia do Nordeste ao sempre vento de leste;
mais que se deita, se deixa,
sente com o corpo que a terra roda redonda em seu eixo, pois que pode sentir mesmo que as suas pernas se elevam,
[...] Essas praias permitem que o corpo sinta seu tempo, o espaço no rodar lento, sua vida como vertigem
(“Barra do Sirinhaém”, A escola das facas)
Em “Fotografia do Engenho Timbó”, depreendemos a dificuldade em se chegar ao passado, como se o esforço realizado para lembrar algo remetesse aos golpes de faca que são dados na cana que guarda uma propriedade esquecida:
Casas-grandes quase senzalas, como a desse Engenho Timbó que tenho na minha parede (casa onde nasceu uma avó).
O tudo em volta é sempre a cana, que sufoca tudo, como a asma e só se abre em poucos terreiros, guardados a ponta de faca.
[...]
No caminhar de sua obra, João Cabral semeia e colhe seus poemas ao lidar com a terra/poesia, cuja relação não é a de alguém que solta uma semente e espera que esta cresça por si só, mas sim a de alguém que participa do seu desenvolver passo a passo, obedecendo ao tempo da lentidão e da paciência. O tempo da composição cabralina traz o tempo da produção de poemas unido ao tempo da memória do poeta. É como se o tempo da obra cabralina fosse o tempo cumulativo, realizado através da memória, resgatando imagens dos poemas anteriores.