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Dentro de suas múltiplas atividades, os jesuítas pensaram a educação como função colonizadora, não só religiosa, mas também política, pois, sem embargo do alto sopro de elevação cristã e superrogação que animava missionários como Nóbrega e Anchieta, não

407Como consta da versão espanhola, circunstância suprimida da italiana e, por via de consequência, da cópia retrovertida para o português das Cartas Avulsas, como salienta Serafim Leite em nota de pé de página.

408 Escrevem Extremera e Folch que “la historia de los contrafacta está irremediablemente ligada a la música” (1993:612).V. HCJB, II, 258, Vilma Arêas (1998:333-341) e Maria Barbosa (2006:365). O contrafactum integrava a atividade missionária franciscana. V. Jaboatão (1980[1761]:151). V. tb. Frei Manuel da Ilha (1975[1621]:90) e Willeke (1978a:33).

409 Também aquele órfão, saído de Lisboa em 1550, tornado capelão no aldeamento de Espírito Santo, na Bahia, em 1560, por ser língua (MB, III, 315).

410 O que se devia também ao contato com os meninos mamelucos, que eram bilíngues, a respeito dos quais Anchieta disse que tinham o “spíritu de fornicatión” (MB, II, 77). Depois de chamar os meninos órfãos de Portugal de “trombadinhas” (2001[1995]:89) com sua proverbial irreverência, Darcy Ribeiro diz: “Esses pixotes, assediados pelas índias, não resistiram à tentação, fugindo com elas” (p. 90). Esse perigo foi responsável mais tarde pela limitação a que “irmãos novos” fossem às aldeias para aprendizado da língua (HCJB, II, 352), que seriam, então aqueles abaixo dos 14 anos (pueri ubivis nati ante quatuordecimum aetatis annum), porque se deixavam impregnar ou embeber (imbibĕre) dos costumes indígenas, revelando-se depois inaptos a ingressar na Companhia, expressamente estabelece um das proposições, chamadas de postulados, da Congregação de 1568, conforme texto reproduzido em latim por Serafim Leite (MB, IV, 465).

deixavam de ser agentes da colonização411. Sua relação com essa colonização portuguesa, a existência de um nacionalismo linguístico e de uma política lusofônica e a concorrência de outros idiomas no Atlântico Sul devem ser buscadas nalém-mar.

Tentar capturar alguns instantâneos de sua vida cotidiana, em vários setores sociais, torna mais fácil sentir “a maneira de ser dos que partiam de Lisboa quinhentista, com o seu amor à língua do povo”, para usar das palavras de Mário Martins, apud António Martins Melo (2000:137). O que se falava em Portugal, o que se lia e escrevia, e até que ponto se podia fazê-lo, ajudam a entender o que levavam consigo o colono e o religioso que singravam para o Novo Mundo, cooperando também para projetar alguma luz adicional sobre como se desenhou a construtura linguística lusofônica no Brasil na sua articulação com a língua tupi. É lá que devem ser buscadas matrizes, condicionamentos e influxos sócio-culturais, pois “podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou bem ou mal a essa forma”, agudamente observou Sérgio Buarque de Holanda (2002[1936]:40).

411 Florestan Fernandes assinala com razão que “apesar de sua forma branda e dos elevados motivos que a inspiraram”, a influência dos jesuítas tornava-os “autênticos agentes da colonização” (2000:84). V. Darcy Ribeiro (2001[1995]:100-1) e Otávio Ianni (2004:188)

Espécie de vista aérea de Lisboa da segunda metade do séc. XVI: gravura de autor anônimo, incluída na obra Urbium praecipuarum totius mundi Theatrum, vol. V.

6 A LÍNGUA NA VIDA COMERCIAL PORTUGUESA DO SÉC. XVI

No século XVI, Lisboa, no extremo ocidental da Europa, fervilhava de indivíduos andejos e mercadores estrangeiros que já vinham atraídos havia muito pela boa localização de seu porto, entre o Mediterrâneo e o Mar do Norte. Com o deslocamento para o Atlântico das antigas rotas comerciais mediterrânicas do Índico a Veneza através dos territórios do Sultão do Egito, o ápice da mercancia europeia tem lugar em Portugal e com ele um azáfama de línguas e acentos, num espaço até certo ponto democrático412. Não era novidade daquela centúria. Fernão Lopes já escrevia que, entre o final do século XIV e o início do seguinte, “havia outrossim em Lisboa estantes de muitas terras” tais como “Genoveses, e Prazentins, e Lombardos, e Catalães de Aragão, e de Maiorca, e de Milão, que chamavam Milaneses; e Corcins, e Biscainhos; e assim de outras nações, a que os reis davam privilégios e liberdades, sentindo-o por seu serviço e proveito” (1921:77-78)413. Por isso diz que “Lisboa é grande cidade, de muitas e desvairadas gentes” (p. 79). É aos elementos “não hispânicos”, escreve Gilberto Freyre, ou seja, “os elementos estrangeiros, de origens diversas, que se deve atribuir o fato de não se ter incorporado a Castela o trecho ocidental da Península” (2002[1933]:263).

Em depoimento da época, Cristóvão Rodrigues de Oliveira, descrevendo Lisboa de 1554, diz que a cidade tem “dez mil casas, em que ha dezoito mil vezinhos, sem a corte, a fora que entrão cada dia naos, e ha muytos mercadores estrangeiros, e muyta outra gente de fora” (1938:94-5). Entre essa “gente de fora” estavam inclusive os peregrinos. Na descrição do Hospital dos Meninos, Oliveira diz que agasalha “de noyte todos os peregrinos naturaes e estrangeiros” (p. 50). Mais à frente fala do Hospital dos Palmeiros, mandado construir por ‘jngreses romeiros’ (p.55), e do Colégio da Irmandade dos Órfãos de Jesus, feito para “recolhimento dos orfãos naturaes e estrangeiros” (p.57).

412 Menos para aqueles que “nos trajos, língua e modo pareçam ser armênios, gregos, árabes, persas ou outra nações que sejam sujeitas ao Turco”, diz um Alvará de 14 de agosto de 1563 contido nas Leis Extravagantes de Duarte Nunes de Lião (1987[1569]:158 v). Isabel Braga escreve que os mouriscos da primeira geração, ou seja, os mouros convertidos ao Cristianismo pela política aculturadora de Portugal, dominavam “o árabe falado e, em alguns casos, escrito” (1999:71), havendo casos até de dificuldade com a língua portuguesa. Concentravam-se, ainda segundo a Autora, em Lisboa, Évora, Setúbal e Algarve (p.78).

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João Lúcio de Azevedo, citado por Cotta do Amaral, escreveu que “dos cem mil habitantes que contava aproximadamente a cidade de Lisboa, em 1551, à volta de sete mil eram estrangeiros” (1965: 17).

Em estudo que tenta esquadrinhar essa realidade econômica, que justificava a concessão de privilégios bastante amplos ao comércio estrangeiro, Virgínia Rau focaliza “a presença em terra portuguesa de ingleses, flamengos, alemães, galegos e biscainhos, lado a lado com aragoneses, catalães, franceses, italianos e outros mercadores das partes mediterrânicas ou septentrionais” (1968b: 131-32)414. Essa mesma autora ainda escreve que “no último quartel do século XV são inúmeros os mercadores estrangeiros que se acolhem à cidadania portuguesa, por casamento com mulheres portuguesas ou por favor do rei” (p.143)415. O comércio, incluído o linguístico, era intenso com outras nações europeias, destacando-se a exportação de sal, ao lado de frutas, vinho, azeite. Mesmo concorrendo com a França, com quem chegou a ter comércio com essa mesma mercadoria416, Portugal sobressai nessas negociações sobretudo com interessados consumidores do Mar do Norte e do Báltico, por ser o seu produto “mais anídrico, e alvo e menos deliquescente”, informa Rau (1968d:177)417, convivendo, em contrapartida, com o problema da falta de suprimentos cerealíferos, a ponto mesmo de uma provisão de 14 de setembro de 1568 proibir venda de pão a estrangeiros, anota Oliveira Marques à crítica do autor de Ritratto et riuerso... (1987:1999)418. Além de trigo, dependia de fornecimento de madeira para a construção naval, como salienta o mesmo Oliveira Marques (1987:18), ademais de outros produtos manufaturados como tecidos de lã, aprestos navais, enxárcia e munições, adita Rau (1968d:181).

Esses produtos constituíam lexias que saltitavam nos contatos linguísticos entre estrangeiros e lusos. Nos fins do século XV e início do XVI, o afluxo irá aumentar com a descoberta das rotas marítimas por Vasco da Gama. Às voltas com falta de capital para aquisição das mercadorias trazidas do Oriente, que também precisavam de escoamento entre os portos portugueses e as regiões do Norte e do Sul da Europa, Portugal enche-se de estrangeiros cuja vinda é estimulada pela Coroa, sobretudo italianos, que foram uma forte presença em terras lusitanas419, pois, “unici fra gli stranieri, associano le loro navi alle

414 Tb.: Mauro (1991:40).

415 Tb.: Diffie (1970:7 e 10). Sobre a presença de italianos, especialmente genoveses, milaneses e também florentinos “en el centro principal de la expansión ibérica por el Atlántico, Lisboa”, v. Otte (1980: esp. p. 49-50 e 54).

416 V. Rau (1968c:183) e Azaola (1977:23).

417 O autor quinhentista de Ritratto et riuerso..., relato reproduzido por Oliveira Marques, é preciso em informar que “faz-se grande quantidade de sal de que se abastece a maior parte dos países setentrionais, o que é causa de grande tráfico e de grande concurso de navios” (1987:189).

418 Cotta do Amaral depois de dizer que os mercadores estrangeiros traziam trigo, panos e coirama e compravam sal, peixe (atum e sardinha), azeite vinho e mel, frutas do Algarve, açúcar, adquiriam também “provisão das naus, como pão, carne e legumes” (1965:52).

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Segundo Malheiro Dias, “só na freguesia do Loreto residiam para cima de cinco mil italianos!” (HCPB, III, 36).

spedizioni reali, partecipando in larga misura all’intenso movimento economico della Nazione lusitana”, escreve Scudieri (1940:92)420. Nos dados que fornece sobre a Igreja de Nossa Senhora de Loreto, Cristóvão Rodrigues de Oliveira diz que as três confrarias dela são “administradas per mercadores ytalianos” (1938:16)421.

Aos germânicos chega-se a conferir um determinado conjunto de regalias designado por “privilégio dos alemães”, escrevem Malheiro Dias (HCPB, III, XXXI)422, Rau (1968b:147), Cotta do Amaral (1965: 22-27)423 e Diffie (1970:11 e 13)424. Essa presença alemã existia desde o século XIII, mas se tornou mais forte no século XV: “os navios prussianos e livonianos que frequentavam Lisboa (...) levavam sal e, secundariamente, cortiça, frutas, azeites e vinho”, informa Oliveira Marques (1987:11). Acrescenta mais adiante que “Lisboa foi a cidade sede dessa ‘nação’ estrangeira, sendo em número reduzido os alemães fixados em outras cidades do País” (p. 23)425. Entre os grupos mais importantes estavam armeiros, bombardeiros e artilheiros e tipógrafos426, além de negociantes. Aos alemães se deve a introdução da arte de impressão em Portugal, tendo sido trazidos por iniciativa de D. Leonor, nos últimos anos do século XV, João de Gherlic, Nicolau da Saxônia427 e Valentim

420 Com participação inclusive na expedição cabralina, como no caso do armador Bártolo Marchioni (HCPB, II, 204, 247 e 254). Ele e Sernige presentearam D. Manuel com a rica Bíblia dos Jerônimos, escreve Baião remetendo a Peragallo (HCPB, II, 331). Marchione teve vários filhos de relacionamentos com diferentes portuguesas, que foram legitimados, adita Baião (p.332).

421 A Confraria de São Jorge do Mosteiro de São Domingos era “regida pollos ingreses” informa o mesmo Autor (p.59).

422 Malheiro Dias reproduz o seguinte trecho da obra de Bento Carqueja: “Em 13 de fevereiro de 1503, assinava D. Manuel um tratado pelo qual era concedida autorização a vários comerciantes alemães para estabelecerem feitorias em Lisboa. Num apêndice a esse tratado ampliavam-se as concessões nele contidas a todos os comerciantes estrangeiros que estabelecessem em Portugal uma feitoria”.

423 Que esclarece que, a partir de certo momento, “a designação ‘privilégios dos mercadores alemães’ era um mero título, que perdera o seu significado inicial e passara a constituir muito simplesmente mais um capítulo da lei” (1965:27). Ou seja, tais privilégios passaram a ser outorgados a mercadores de outras procedências. Mas não deixou de ser idealmente enfeixados na figura do alemão em si, imagem que ecoou na Vila de São Paulo tempos depois, junto com sua adesão lusofônica, como se lê sobre aquele alemão, Josef Pranta ou Planta (ACSP, II, 414), que comercializou carne no platô. Compelido a exercer a função de carcereiro, brandiu sua procedência para ser desobrigado do encargo, o que fez a Câmara, na última sessão de dezembro de 1620, entender que “provou ser alemão direito de nação dos quais el-Rei Nosso Senhor dá grande privilégios” (ACSP, II, 459). Outro alemão que integra a história de São Paulo no início do século XVII é Geraldo Betting, nomeado almotacel em 1600 (ACSP, II, 81-82). Segundo Taunay, era casado com filha de Suzana Dias, neta de Tibiriçá (2003:395), o que também é afirmado por Moura (1952:310), que dá a grafia do sobrenome “Bitting”. Nas atas, aparece “Betinque” (ACSP, I, 81) e “Betting” (p. 82) numa mesma assentada.

424Referindo-se aos mesmos germânicos, inclusive aos da Ilha de Madeira, Kellenbenz (1975:171-5).

425 O interesse estava fundado nas oportunidades econômicas que Lisboa centralizava. Daí que também se notasse essa presença em outras praças da exploração portuguesa. Correia tem informação a esse respeito: “E como era tão grande o número de estrangeiros sobretudo de franceses, italianos e alemães em Goa, sabe-se, por um documento, o número 14 do ano de 1606, que se proibiu a esses estrangeiros a passagem da Pérsia e da Turquia para a Índia” (1959:21).

426 V. referência em Daehnhardt (1998:85). 427

Que foi responsável, em 1495, de sociedade com Valentim Fernandes, pela impressão do Vita Christi em português, escrevem Noronha (1873:26) e Fontoura da Costa (1939: 25), e não somente por este último

Fernandes, devendo ser lembrados ainda os nomes, salienta Marques, de Jacob Cronberger428 e de Johannes Von Emden, este responsável pela impressão em Goa (p. 26-7)429.

Na defesa de seus negócios e de capitais emprestados ou investidos em Portugal, tanto por pequenos quanto por grandes mercadores, era altamente conveniente que se pusessem a aprender, cada qual à sua maneira430, a língua lusa.

Portanto, muitos desses negociantes alemães bem ou mal deveriam se comunicar em português, a exemplo do jovem dono de uma estalagem em Lisboa, onde o artilheiro alemão Hans Staden se hospedou em 1547, ocasião que lhe foi informado que todos os navios do Rei já tinham rumado às Índias: “Pedi-lhe então que me procurasse uma outra oportunidade de viagem, visto que ele já conhecia a língua do país” (1988 [1557]:39).

Os não-residentes buscavam nos seus nacionais os procuradores apropriados, a exemplo do famoso Valentim Fernandes431, que, como salienta Diffie (1970:14), funcionava como intérprete dos agentes dos alemães Welser de Augsburgo, a partir de 1503. A presença de tantos estrangeiros ditava o interesse poliglótico por parte de alguns portugueses, como aquele Afonso Bernardes, contratado pelos ingleses “por não sabermos tão bem falar”, justificam em petição dirigida a D. João III, publicada por Cotta do Amaral (1965:88)432.

Se os alemães e ingleses se punham a aprender português, os italianos galopavam na maior facilidade do parentesco linguístico. Entre eles, a figura proeminente do banqueiro e mercador Lucas Giraldi, a quem D. João III, seus embaixadores e nobres portugueses deviam contínuo auxílio financeiro e de cujo estabelecimento em Lisboa tem-se a primeira notícia em 1515433. São atribuídas a Lucas Giraldi, por Frei Vicente do Salvador, aquelas concisas impressor, como pareceu a Daehnhardt (1998:81). Como já dito, o Vita Christi era o único livro do Padre Brás Lourenço, na Confraria de Jesus no Espírito Santo (MB, II, 45).

428 V. Noronha (1873:57-59) e Teófilo Braga (1883:470) 429 Sobre Emden, v. Daehnhardt (1998:85) e Wagner (1996:236). 430

Gândavo, no Diálogo em defensão..., informa que “de maravilha vimos estrangeiro algum que a pudesse bem tomar (...) por lhes ser tão pouco fácil” (1574:12-13).

431 “Valentim Fernandes” era um “pseudônimo português”, escreveu Ricard Henry Major, apud Noronha (1873:25), que também assinalou que lhe cabia ser tabelião dos alemães em Lisboa, “e bem assim faz-lhe a traducção latina” (ib.). Ainda segundo esse autor, era secretário latino de D. Manoel (p. 29). Fontoura da Costa afirma que “depressa aprendeu em Portugal o português” (1939:22) e especifica que foi em 21 de fevereiro de 1503 que D. Manuel o nomeou “corrector e tabelião público dos mercadores alemães” (p. 23). Quanto ao sobrenome Fernandes, sugere que provavelmente seu pai “se chamava Ferdinand” (ib.).

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Essa mediação era constantemente requisitada por comerciantes britânicos não-residentes em Lisboa. O inglês Anthony Knivet, depois de suas rocambolescas aventuras no Brasil, foi levado a Lisboa por Salvador Correia de Sá em 1602. Aí estando, depois de se recuperar de uma enfermidade, relata que procurou “a alfândega real, onde encontraria indivíduos de muitas nações; de fato, dei com alguns escoceses, procurando alguém que pudesse falar-lhes a língua. Ouvindo-os, ofereci-lhe meus préstimos; após isto, tinha tantos fregueses quantos pudesse aceitar e ganhei deles, como intérprete, muito boa remuneração” (1947[1625]:121).

433 Cotta do Amaral (1965: 59), Virgínia Rau (1968a: 75), Serafim Leite (MB, III, 522) e Diffie (1970:17). Os abundantes capitais de Giraldi acabaram por ser requisitados para a colonização brasileira, tornando-se a princípio titular de uma sesmaria em Ilhéus, vindo posteriormente a adquirir toda a Capitania – v. Gabriel Soares de Sousa (2000[1587]: 40), HCPB, III, 206 e 247, e ABN, LXXV, 12 – deixada em herança a seu filho

palavras ao dirigir-se a seu feitor no Brasil, Tomás Alegre: “Thomazo, quiere que te diga, manda la asucre deixa la parolle” (1982[1627]:111), avaliadas por Sérgio Buarque de Holanda como “saborosa geringonça luso-italiana” (1967:67)434.

Essa geringonça será a nota distintiva do grande mercado multilinguístico em que se transformara Portugal, sobretudo Lisboa, no contexto das navegações, sendo as naus e caravelas integradas também por estrangeiros, como mercadores, aventureiros, bombardeiros etc, especialmente alemães e italianos, que se comunicavam na língua marítima de então, o português435, como aqueles presentes na armada de Cabral e na Nau Bretoa (HCPB, II, 204)436. Pero Lopes de Sousa em sua subida pelo Prata num bergantim com 30 homens declarou que “trazia comigo alemães e italianos437 (...) e franceses” (1927:297), que certamente tinham nível lusófono.

Esse aprendizado do português se dava por força de interesses comerciais, inclusive quanto aos “‘canbhos’ (=câmbios) na Rua Nova”, informa Rau (1968c: 219). O mercado linguístico de nacionais e estrangeiros em Lisboa dava-se sobretudo nesse lugar, Francisco Giraldi (ou Giraldes, na adaptação portuguesa), a quem Felipe II mais tarde nomeará para o cargo de Governador-Geral em 1588 (ABN, LXXV, 38), passando-lhe Regimento respectivo, mas que não chegará a exercer por falecer algum tempo depois, após fracassada tentativa de chegar ao Brasil, escreve com acerto Frei Vicente do Salvador (1982[1627]:260), embora erradamente diga o contrário Peragallo (1882:241), que traz a grafia “Gilardi”. V. Rocha Pitta (1976:97-98).

434 Ainda quanto às palavras de Giraldi, Sérgio Buarque de Holanda escreve que o mercador florentino “nunca pudera chegar, apesar de sua longa residência em Lisboa, a familiarizar-se direito com a língua da terra” (1967:67), o que choca com a afirmação de Rau segundo a qual se tratava de homem“de cultura e ilustração” (1968a:95), e com a existência de várias cartas de Giraldi escritas em português, onde se detectam poucos italianismos, a exemplo daquela escrita a D. João de Castro, publicada por essa historiadora, em que se identifica apenas um, consistente em masculinizar o vocábulo “árvore” (1968a:106), à semelhança do que se dá na sua língua de origem. Cotta do Amaral diz que os traços biográficos de Giraldi “o revelam perfeitamente aportuguesado” (1965:50). Não se descarta que tenha sido um feitor em Portugal o autor da carta, ou então foi pura invenção jocosa de Frei Vicente.

435 Entre franceses que não integrasse expedições lusas, era o espanhol que dominava. Staden cita que, na chegada a Itanhaém, “povoação dos portugueses”, Cláudio, um francês a bordo, “narrou aos habitantes como tínhamos naufragado” (1998[1557:70). Nesse caso, deve ter havido negociação linguística, pois seguramente o francês falava espanhol, do que se tem exemplo no depoimento do colono português Baltasar Barbosa, perante o Santo Ofício em 1592 na Primeira Visitação, a respeito do seu aprisionamento por franceses por esta época, quando disse que um luterano “blasfemou contra o Papa dizendo coisas injuriosas, e o dito luterano falou as ditas coisas em espanhol, que bem o entendia” (1935:115).

436 Tb., p. 254, 331-2, e HCJB, III, 224-225. V. ainda referência a várias outras, inclusive à de Cabral, em Diffie (1970:12-18).

437 Schwartz, referindo-se a essa expedição, assegura que “entre os colonos havia (...) italianos e flamengos com experiência na atividade açucareira da ilha da Madeira” (2005[1988]:31). Em nota menciona “João Veniste e o genovês João Adorno” (p. 407). Na verdade, tratava-se dos “genoveses Adorno, Francisco, Paulo e José”, que integraram a remessa, a mesma que trouxe Jorge Ferreira, aponta Carlos Malheiro Dias (HCPB, III, 224). Paulo Adorno terminou por ir para a Bahia, onde se casou com filha de Caramuru, informa Pedro Calmon (1949:75- 77). V. ainda sobre os Adornos, Diffie (1970:16). Quanto a “João Veniste”, trata-se na verdade de Jan von Hielst, cujo agente em São Vicente era o flamengo Pedro Rossel, como elucidou o quinhentista Schmidl (1950:152). Tb. Carvalho Franco (1940:29). Deve ser lembrado que flamengos eram geralmente englobados como “alemães”, como no caso de Erasmo, que, mesmo sendo de Roterdão, era referido como “germanus”, lembra Américo da Costa Ramalho (1998: 77 e 132). O sábio flamengo Clenardo assim também se identificava: “entre nós na Alemanha”, como se lê de carta reproduzida em Cerejeira (1949:397).

onde pululavam acentos e lexias negociais estabilizadas pelo uso, que era a vitrine estética dos lusos. Por ela é que a beleza das índias tupinambás será referendada por Pero Lopes de Sousa em seu Diário da Navegação: “as mulheres mui formosas, que não hão nenhuma inveja às da rua Nova de Lisboa” (1927:154)438. Foi nessa mesma rua onde os dois cavaleiros, Tron e Lippomani, enviados por Veneza em 1580 a cumprimentar Filipe II pela conquista de Portugal, constataram haver “muitas lojas de livros, com infinito número deles em português, castelhano, latim e italiano”, como se lê da reprodução contida em Alexandre Herculano ([1898]:116). Mas acresceram: “Todos são muito caros”439.

A carestia dos livros tornava ainda mais elitário o ensino. Christóvão de Oliveira, no seu Summario..., traz dados contemporâneos de Lisboa por volta de 1554: nela havia cinquenta e sete “físicos”, sessenta “surgiães”, 430 ourives, 1.119 sapateiros, 150 cantores e

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