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A experiência linguística dos portugueses já tinha formulado a observação do papel da juventude no aprendizado. No Regimento passado a Tomé de Sousa, que trouxe a primeira leva de jesuítas em 1549, D. João III já recomendava foco nos meninos “porque nele imprimirão melhor a doutrina” desde que “tirados da conversação dos gentios” (HCPB, III, 350). Os jesuítas estavam conscientes disso392, como diz o Padre Manuel Viegas ao Geral da Companhia: “E saiba V.P. que quanto mais moços vierem para aqui os operários, que V.P. nos mandar, tanto melhor e mais facilmente, e com brevidade, aprendem a língua desta terra” (HCJB, IX, 542)393.

Essa mocidade foi basilar no surgimento de grandes línguas, dos quais vale destacar: Baltasar Álvares, que entrou na Companhia em 1559, aos 19 anos de idade (HCJB, I 153); Gonçalo de Oliveira, reputado “doutor das gentes” (CA, 314)394, foi menino para o Brasil, entrando na Companhia em 1552, com 17 anos de idade; Gaspar Lourenço, “o Cícero da língua brasílica”, assim conhecido pelo seu estilo concional de pregar, entrou “em 1553, sendo de idade de 14 anos”, informa Serafim Leite (HCJB, 159), ou seja, criado “na Companhia de mui pequena idade” (CA, 325); Diogo Fernandes, que, na Historia de la

392 Como lembra Lopes, tratando dos jesuítas, “a idade já neles não favorecia muito a diligência de aprender a língua dos bárbaros” (1949:15). Nóbrega é ele próprio um caso emblemático: nunca se tornou um bom língua, o que a informação de Anchieta, em um dos Fragmentos Históricos (1988:482), de ser “muito gago”, por si só não explica, como quer José Honório Rodrigues (1985:12), mesmo porque o maioral dos jesuítas pregava em português, a despeito da pouca receptividade dos ouvintes, como naquele episódio narrado por Francisco Rodrigues, acontecido em Covilhã (1931, I: 656). V. Simão de Vasconcelos (1977[1663], I:175) e Serafim Leite (1955:37). Manoel de Paiva é outro exemplo: aprendeu latim movido por perseverança ímpar, apesar do seu “pouco saber natural”, nas palavras de Nóbrega (2000:274), ou “não letrado”, nas de Anchieta (MB, II, 122), que também se refere a ele como homem de pregações “com palavras incultas” (MB, II, 197). Mas não aprendeu a língua da terra, anotou este último jesuíta (1988:491), o que se explica pelo fato de que “entrou já sacerdote de boa idade em Coimbra”, conforme diz em Fragmentos históricos (1988:490), que também assegura que Diego Jácome somente “soube dela o que bastava para ensinar aos índios e aparelhá-los para o batismo e ouvir suas confissões” (1988:489).

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Mesma observação enunciou o jesuíta João Rodrigues, que chegou ao Japão por volta dos 15 anos, e se tornou mais tarde autor de uma notável Arte da Lingoa de Iapam e de Arte Breve da Lingoa Iapoa, como se lê de suas palavras reproduzidas por Boxer (1950:339-340). Henrique Henriques, falando do tâmul, em carta de 1551, contida na compilação Cartas dos jesuítas do Oriente, escreve: “Confio en Dios N.S. que todos los que de aqui a delante vinieren a esta cuesta aprēnderan, saluo los que fueren ya de mucha edad” (1993: AIII, v e AIIII). 394 V. Hist. de la Fundacion del Collegio de la Capitania de Pernanbuco (1927[1576]:13).

fundacion del Collegio del Rio de Henero y sus residencias (1897[1574]), aparece como “grande lengua” (p. 137), entrou para a Companhia com 12 anos (MB, IV, 477)395; Manuel Ortega, que, além do tupi, também aprendeu a língua jê dos Ibirajaras, ingressou com 19 anos na Companhia: “Indo muito novo ao Brasil, aprendeu com facilidade a língua indígena, que lhe serviu à maravilha no Brasil e Paraguai” (HCJB, I, 123)396; Leonardo do Vale, “príncipe dos línguas brasílicos, eloquente como Túlio”, na descrição de Marçal Beliarte, ingressou com 15 anos na Companhia, tendo ido garoto para o Brasil (HCJB, II, 393).

Se a juventude do aprendiz lusófono podia torná-lo colaço da língua tupi, uma das soluções estaria em trazer meninos órfãos do reino, onde eram educados por Pedro Doménech, fundador do colégio-orfanato de Lisboa, que diz em carta de fevereiro daquele mesmo ano de 1551 qual era a finalidade deles no Brasil: “Destes ninyos embió el Rey anyo passado siete al Brasil para ensenyar a los hijos de aquellos gentiles” (MB, I, 214). Sua vinda seria, na verdade, “para que deprendiessen la lengua del Brasil y despues fuessen recebidos en la Compa siendo aptos”, deixa claro a Historia de la fundacion... (1897[1574]:82). Efusivamente animados por um mundo novo, com novos costumes, os órfãos se soltaram no meio da curuminzada, ansiosos pelo aprendizado: “os meninos e Irmãos da Casa andam todos com grande fervor de saberem a língua, e parece-me que cedo a saberão” (CA, 181). O aprendizado da língua nativa nos meninos decorria de sua imersão lúdica, que um adulto, com suas retenções, não poderia normalmente fazer. Podiam assim os órfãos mais persuasivamente atrair a atenção dos curumins: “Os meninos órfãos, que nos mandaram de Lisboa, com os seus cantares atraem os filhos dos Gentios e edificam muito os Cristãos”, escreve Nóbrega (2000:87), dando Ruy Pereira essa configuração: “Porque se mais esqueçam de seus costumes e modos de folgar, ensinamos-lhes jogos que usam lá os meninos no Reino” (CA, 289)397.

O resultado se mostrava promissor, o que dava lugar a reiteradas escansões de vinda tanto de novos obreiros quanto de meninos, como se vê da carta que o Visitador Inácio de Azevedo escreve ao Geral Franscisco Borja em novembro de 1566: “No me parece que ay otro modo de aver subieitos, sino imbiando acá de los que en Portugal y aun en otras partes piden la Compañía y dexan de los recibir por poca ydad, que esos sirven acá más, porque toman bien la lengua” (MB, IV, 368).

395 V. tb. TH, 92.

396 A isso também se refere Pastells: “El P. Manuel de Ortega, portugués, fué natural y sobrino del Obispo de la ciudad de Lamego y á los diecinueve años de su edad admitido en la Compañía (á 8 de Septiembre de 1580) por el V. P. Provincial José de Anchieta, en el Colegio de Río Janeiro del Brasil” (1912:221).

O entusiasmo estava também no rendimento lusofônico, pois não somente os órfãos aprendiam a língua como traziam meninos índios para o contato linguístico com o português, num tráfego duplo de aparentes equivalências e de utilidade para os inacianos. Em 1553, o mesmo Nóbrega, diz Anchieta, ordena que sejam juntados, na confraria do Menino Jesus, em São Vicente, “alguns dos moços órfãos que vieram de Portugal no tempo do padre Domenico e alguns mestiços da terra, onde todos eram doutrinados: e os de Portugal aprendiam a língua da terra” (1988:324).

A habilidade de alguns deles em aprender a língua dos índios revelou-se produtiva. Em 1552, na Bahia, já andavam pelas aldeias, “pregando e cantando cantigas de Nosso Senhor na língua da terra declaradas”, relata Vicente Rodrigues (MB, I, 320).

Se dos órfãos de Lisboa se podia esperar que aprendessem o tupi, o mesmo se podia dizer dos meninos índios, ensinados nas primeiras letras do português no mesmo esquema recitativo, como registra Navarro: “As quais orações de contínuo lhes ensino em sua língua e na nossa, principalmente aos meninos” (CA, 76)398.

O meio mais fecundamente mobilizado por Nóbrega399 e demais jesuítas na sua ação linguística entre índios, especialmente meninos, foi a música400, porque saltava aos olhos seu entranhamento entre os aborígenes, embora a sonoridade pudesse até não agradar ouvidos europeus, já que Gabriel Soares de Sousa, na descrição dos Tupinambás, diz que “cantam com sofrível tom” (2000[1587]:275)401.

O Bispo Pero Fernandes Sardinha, em sua já conhecida cruzada contra as culturas nativas, ciente da vedação loyolista402, em carta a Simão Rodrigues, de julho de 1552, critica

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Descrição também presente em Francisco Pires, escrevendo da Bahia em 1552: “Em casa se tem muito exercício de tudo, assim das pregações, como de cantigas, pela língua e em português” (MB, I, 396).

399 V. o papel de Nóbrega ressaltado por Vieira na Relação da missão da serra de Ibiapaba, apud Jorge Couto (1999:187).

400

V. Ferdinand Denis (1944[1850]:61-68), Mário de Andrade (1944:162), Gilberto Freyre (2002[1933]:218), Sérgio Buarque de Holanda (1978a:99), Bruno (1966:33) , Extremera e Trías (1993:613) e Shapiro (1997:129). V. análise de Tinhorão na obra Música popular de índios, negros e mestiços, apud Thales de Azevedo (1959:44). Não foram apenas os jesuítas. Jaboatão, em diversas passagens de sua um tanto tautológica obra, refere-se ao gosto dos índios pela música (1858[1761]: 19 e 27 e 1980[1761]:150-1).

401 De outro grupo tupi, os Tupinaés, há também menção: “são músicos de natureza e grande cantores de chacotas, quase pelo modo dos Tupinambás” (p.293).

402 V. Bispo (1998:120) e Padesca (2000:88 e 90). Da Visita do Padre Inácio de Azevedo, entre outras deliberações em julho de 1568, resultou aquela segundo a qual “as escolas de ler e escrever, que estão introduzidas em as casas das Capitanias se podem continuar, não se ensinando canto nem latim” (MB, IV, 484- 5). Serafim Leite em nota averba que a permissão ficou adstrita então aos Colégios. Para a distinção entre Casa e Colégio, v. HCJB, II, 41. Da Visita constou ainda um comando mandatório: “os nossos guardem as Constituições” (ib.). É absolutamente inadmissível, por desconsiderar o forte pendor dos índios para a música, a conclusão de Edelweiss a propósito dessa deliberação do Padre Inácio, no sentido de que seria “decorrente da falta de reforço vocacional indígena (...) a ordem do mesmo Visitador que restringe o ensino do canto” (1969:22). Terminou por vingar um entendimento mais flexível, bem expresso nas palavras de Alexandre Vagliano no “Sumário”, em carta de 08 de dezembro de 1577, apud, apud Padesca (1998:91). E continuou no Brasil, pois, nos Capítulos..., que foram apresentados em 1587, Gabriel Soares de Sousa queixa-se de que “os

que os meninos órfãos antes de sua chegada, ocorrida em 22 de junho daquele ano, tivessem o costume de “cantar todolos domingos y fiestas cantares de nuestra Señora al tono gentílico, y tañerem ciertos instrumentos que estes bárbaros tañen y cantan quando quieren bever sus vinos y matar sus inimigos” (MB, I, 359). Nóbrega, em carta ao mesmo Simão Rodrigues, também de julho de 1552, em que deplora as interdições do Bispo, não nega: “Os meninos desta casa costumavam cantar pelo mesmo tom dos índios e com seus instrumentos na língua em louvor de N. Senhor, com que se muito atraíam os corações dos índios” (2000:134). Não lhe parecia dissonante “nos abraçarmos com alguns costumes deste gentio, os quais não são contra nossa fé católica, nem são ritos dedicados a ídolos, como é cantar cantigas de Nosso Senhor em sua língua pelo seu tom e tanger seus instrumentos de música”, diz mais à frente (p. 145)403. Mas o próprio Sardinha sabia do poder da música na conversão, pois ainda em julho do mesmo ano, escreve também ao monarca e pede o envio de “uns órgãos, porque segundo este gentio é amigo de novidades, muito mais se há de mover por ver dar um relógio e tanger órgãos que por pregação nem admoestações” (HCPB, III, 364)404.

Não havia como escapar do fato de que “entre este gentio são os músicos muito estimados e por onde quer que vão são bem agasalhados”, na informação de Gabriel Soares de Sousa (2000[1587]:275-6)405. Os meninos-órfãos então requerem: “Si viniesse algún tamborilero y gaitero406 acá, parézme que no havria Principal que no diesse sus hijos para que los enseñassen” (MB, I, 383-4). Até mesmo o Pai Nosso que Navarro traduziu na língua

moços nados (=nascidos) e criados nestas aldeias” que “aprendem muito bem a ler e escrever, a latim, a contar, a canto de órgão, a tanger flautas e dançar e oficiar uma missa como chegam à idade de conversarem mulheres logo fogem para os matos” (p. 371). Os inacianos respondem, em 1592: “Não os ensinam latim nem contar” (ib.), subentendendo a prática da educação musical.

403 V. Denis (1944[1850]:56) sobre essa preocupação de Nóbrega. 404

Parece, entretanto, que essa repetição monotongal não era a regra, pois o mesmo Nóbrega informa, a 6 de janeiro de 1550, escrevendo de Porto Seguro, a destreza de Navarro no instruir os meninos a cantar “certas orações, que lhes ensinou na língua deles, dando-lhes o tom, e isto em vez de certas canções lascivas e diabólicas, que antes usavam” (2000:72). V. crítica de Antônio Bispo (2000:112).

405

Dos Aimorés há importante observação feita por Jácome Monteiro, em seu relato publicado em 1610: “de maravilha se achará um entre eles que não seja cantor. Têm seus tiples, tenores, contrabaixos, contraltos, e tomam qualquer tom que lhe dão” (HCJB, VIII, 364). Sobre o poder da música entre os tupis, relata como podia um prisioneiro escapar: “e o têm em muita conta só pela música, que é o único remédio com que alguns se livram de morrer no terreiro” (p.368). Hans Staden certamente se apercebeu disso, pois cantou para suavizar o rigor de seus captores no momento em que imaginou que iria ser comido (1988[1557]:100). Léry, a seu turno, relata como ficaram extasiados quando entoou um cântico (1994[1580]:418).

406 Pero Vaz de Caminha já tinha feito notar na Carta que “Diogo Dias (...), homem gracioso e amigo de se divertir (...) levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita e meteu-se com eles a dançar, pegando-lhes nas mãos e eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem, ao som da gaita”, apud Fontoura da Costa (1998[1940]:98).

nativa fê-lo “en modo de sus cantares” (MB, I, 180)407, adotando-se entretanto os contrafacta408, pois eram “mudadas las palabras en loores de Dios” (MB, I, 386).

Todo o empenho focalizado nesses meninos-órfãos deu rendimento inferior ao que foi esperado, à exceção de alguns como João Pereira, Antônio de Pina, Manoel Viegas, o “apóstolo dos Maromomins”, e Luís Valente409. Doménech na carta mencionada não assinala um domínio, preferindo dizer que “los nuestros niños entienden muchas cosas de su lengua” (MB, I, 215). Mais nitidamente ainda descreve Cristóvão de Gouveia em novembro de 1584: “Os que veem de Portugal, ainda que aprendam a língua, nunca chegam a mais que a entendê- la e poder falar alguma coisa, pouca, para ouvir confissões” (HCJB, II, 361). E a razão envolvia o entorno paralinguístico, como acrescenta na mesma informação: “nem acabam tanto com os índios como os outros, que sabem seus modos e maneiras de falar” (ib.). Para agravar, os órfãos não eram também primor de disciplina, sobretudo quando se tratava de fornicar as índias410 (MB, II, 232). Sua prestância para trazer os meninos índios ao universo da língua portuguesa tem que ser aferida, portanto, a partir dessa dimensão, que talvez não tivesse diminuído, antes aumentado a difusão do português.

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