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Portugal deslatinizado, mas das conquistas titânicas, entranhava-se da ideia de que, para um novo império, sua própria língua, “pois a consciência nacional quis uma língua nacional, para exprimir a glória nacional”, afirma Malheiro Dias (HCPB, III, 53). Os lusos estavam transidamente convictos de que simbolizavam uma nova expressão imperial homóloga de Roma, e que não era de mera translação, mas de equiparação, como escreve, entre outros, Hooykaas (1979:46-48)491. Como consequência, eram “muitas das obras destinadas a instruir e orientar os pilotos portugueses nas suas tarefas marítimas”, escreve Teresa Pereira (1999:156)492. O florescimento do império, o prazer de pertencimento ao mundo de desbravadores que mudam o eixo das rotas comerciais é que gera aí o nacionalismo Fernando então escalou o bispo de Ciudad Rodrigo para responder a essa oração, não todavia sem dificuldade de compreensão pelos embaixadores, registrada pelo autor da narrativa, pois, tal como o latim da Espanha por então, se tratava de um velho macróbio, fraco e sem dentes (“le bon evesque estoit si viel et avoyt perd tous ces dens que à grant payne on peult entendre ce qu’il dissoit”), como se vê do documento contido em Gairdner (1858:172). De ordinário, os ingleses não faziam orações em latim muito inteligíveis, pois se tornaram conhecidos pela estranha pronúncia nessa língua, alvo de queixas dos demais europeus, pelo que se observa dos depoimentos arrolados por Burke (1995:79). As orações portanto eram um artigo de decoração retórica, cujos significantes não se destinavam à difusa intelecção entre seus ouvintes. Nessa época, a vitalidade diplomática estava com o francês. V. Américo Ramalho (1969:17) e Burke (op.cit., p. 28).

490 A esse reino de penúria humanística Aquiles Estaço, convidado por D. Sebastião, será desaconselhado a retornar por Inácio de Morais em 1573: “Quod si me fas est tibi, homini prudentissimo, consilium dare, in isto loco consiste, procul a Lusitanica esuritione”, apud Américo Ramalho, que traduz: “E se me é permitido que eu te dê, a ti, homem prudentíssimo, um conselho, continua nesse lugar, longe da penúria lusitana” (1988:115). 491 V. tb., Asensio (1974:2).

492 Havia exceções dignas de relevo, como Martim Afonso de Sousa, que sabia latim, casado com a sevilhana Ana Pimentel, tendo se preocupado com a mesma formação do filho ao contratar “Antônio de Freitas, mestre de gramática, que ensina ao senhor Pedro Lopes, filho da dita Senhora Ana”, como se lê de certa escritura de doação de terra (RIHGSP, VI, 296-297). Outro caso se tem com Rui Faleiro, famoso navegador luso, que se inimizou na Espanha com Fernão de Magalhães, voltando para Portugal, onde foi preso por traição. Da prisão escreveu carta em latim, publicada na íntegra por Toribio Medina (1888:148), ao Cardeal Adriano Florencio, depois Papa Adriano VI, então Governador de Castela, rogando intervenção em seu favor.

idiomático493. Tratava-se de ideia disseminada o louvor ao novo gigante dos mares, que encontra em João de Barros seu teórico exponencial, capaz de conjugar o humanismo erasmiano494 e sua “mercadoria espiritual”495 à expansão talassocrático-imperialista do chamado capitalismo comercial, associando-a a fundamentos econômico-geográficos, a partir de sólida pesquisa documental e conhecimento de auditu sobre os povos e culturas distantes.

Polímata, Barros foi mesmo plagiado em sua portentosa produção496, remição do seu pecado de outorgar-se primazias que não possuía497, ainda que de forma sub-reptícia, vestindo com mero exemplo de regência articular, dissesse que “foi o primeiro que pôs a nossa linguagem em arte” (1971[1540]:316). É bem verdade que no mundo das confeições gramaticais, esse tipo de personalismo na primazia autoral não era novidade, tendo vindo a se apresentar também em duas realidades ultramarinas portuguesas envolvendo os nomes dos jesuítas Anchieta e Figueira498, no Brasil, e do franciscano Villa Conde e do jesuíta Francisco

493 É o mesmo pensamento de Verdelho, a “intensificação das trocas econômicas (com as necessidades de contabilidade e escrituração) e a crescente procura de comunicação epistolar, ligada também às viagens marítimas e à expansão (...) valorizaram o conhecimento da escrita e da leitura em ‘linguagem português’, sem a necessidade do latim” (2001:80). Quando, entretanto, se põe a afirmar que a partir do século XVI “se verifica uma espécie de anagnórise entre o latim e os vernáculos românicos” (2001:76), sua perspectivação tropeça em falso. Mesmo entre os letrados, a quem ele se refere, essa filiação era apenas para livrar as letras, com que se queria adornar o nascente império, da bastardia. Portugal buscava que dele se dissesse uma versão particular do

Graecia capta ferum victorem cepit et artes intulit agresti Latio.

494 Révah (1958b:63), Serrão (1994:334-6 e 340), Buescu (1996:12) e Ramalho (1998:74).

495 Ou seja, a ropicapnefma, lexia composta que Américo da Costa Ramalho demonstrou ser uma má “criação vocabular”, por deficiente conhecimento de grego do seu autor (1996:70), depois de tê-lo chamado de “bibliônimo mal enxertado” (1983:311-319).

496 V. Révah (1958a:25-7).

497 V. Serrão (1994:342) e Américo Ramalho (1996:70 e 1998:75). Em outro estudo, este Autor diz que “a versão portuguesa [do Diálogo da viciosa vergonha] é claramente decalcada sobre a tradução de Erasmo, pois há nela expressões comuns a este e a Barros que se não encontram no grego” (1988:201). Linhas à frente adita: “Ficou-me a convicção de que o tratado de Plutarco foi lido por Barros na Vitiosa Verecundia de Erasmo, embora ele se cale prudentemente sobre o Roterdamês” (ib.). Também o erudito historiador reivindicou a prioridade da exposição da Ética de Aristóteles, como bem ressalva Cidade (1972:122-3) e a de ter primeiramente historiado os descobrimentos portugueses, embora na verdade tivesse sido precedido por Lopes Castanheda, adita esse autor (op.cit., p. 123).

498 No Brasil, o jesuíta português Luís Figueira, em 1620, solenemente ignorou a preexistência da gramática de Anchieta para a língua tupi, intitulada Artes de gramática da língua mais usada na costa do Brasil. No “prólogo ao leitor”, Figueira escreve: “O gosto, e desejo, que sempre tive de saber esta língua, para ajudar a estes pobres Brasis; e a falta, que havia de Arte, para ela se aprender, me obrigaram a querê-la saber” (1880 [1686]:VII). Na aprovação de sua primeira edição, o inaciano Manoel Cardoso, chegado ao Brasil em 1592, tendo pois alcançado Anchieta vivo, tenta, em 1620, minimizar o prurido personalista de Figueira sem, ao mesmo tempo, deixá-lo ferido em sua vaidade: “Não obstante a Arte do P. Joseph Anchieta, que por ser o primeiro parto, ficou diminuta, e confusa” (1880[1686]:VI). Aryon Rodrigues (1997:392) trabalha com a factível hipótese de que Anchieta não tenha conseguido produzir uma gramática pedagógica ou manual didático para ensinar o idioma tupi, apesar do seu alto valor descritivo. Além disso, prossegue, o jesuíta natural das Canárias valeu-se de uma “terminología técnica, que sólo a los más instruídos en la gramática clásica sería familiar” (ib.). Deve-se ter em mente alguns fatos históricos que se agregam a isso. Em primeiro lugar, não deixa de ser estranhável a omissão de Figueira, que era um gramático, e estava, pois, em condições de entender muito bem a descrição linguística feita por Anchieta, que continuou a ser largamente utilizada antes (CA, 181 e 279) e após deixar de circular em manuscritos, pois o franciscano Frei Vicente do Salvador, educado pelos inacianos, primeiro historiador brasileiro, ao tratar dos índios tupinambás ao longo de toda a costa brasileira, informa que “todos falam um

Xavier no Oriente499. O teórico João de Barros não estava portanto indene das fraquezas encontráveis nos servos de Deus, que certamente lhe perdoaria por pregar o império de uma língua “com que muitos povos da gentilidade são metidos em o curral do Senhor”, como diz na dedicatória da sua Cartilha intitulada pelo editor de Gramática da Língua Portuguesa com os Mandamentos da Santa Madre Igreja (1996[1539]). Portugal tinha seu idioma, que deveria ser usado como veículo do pensamento e das instituições, por isso que, no Panegírico do rei D. João III, reverencia um príncipe alemão que, para tornar populares as leis, “as fez tirar do latim em sua língua” (1937:78), e, no Diálogo em louvor de nossa linguagem, louva Carlos Magno, que “compôs a língua alemã em arte” (1971[1540]:404).

A liga do idioma era a enteléquia de sua teoria de durabilidade inquebrantável de um império que se sonhava fosse “viver muitas idades” (Lus., X, 107). Suas obras gramaticais destinam-se assim “a facilitar a propagação do idioma como veículo de unidade e de evangelização nas várias possessões ultramarinas”, bem acentuam Moreira e Thomas (1996:106). Um imperialismo linguístico na esteira de Lourenço Valla e Elio Antonio de Nebrija, este último autor da conhecidíssima expressão “siempre la lengua fue compañera del imperio”, que, ao que parece, tem origem em Gonzalo de Santa María500, afinal era

mesmo linguagem e este aprendem os religiosos que os doutrinam por uma arte de gramática que compôs o padre José de Anchieta” (1982[1627]:77). O problema estava em ser o aprendizado focado somente na Arte, em nome do desinteresse dos novos jesuítas em imergirem nas aldeias. Não havia, positivamente, diferenças que justificassem reduzir a obra de Anchieta a um arremedo de gramática, como pareceu querer fazer Figueira. Na verdade, sua obra fica aquém da de Anchieta em fonologia, embora a supere em descrição sintática e na apresentação detalhada dos advérbios. A omissão do jesuíta português pode ter tido outras causações. A primeira é que talvez corresse à conta de um maldisfarçado ciúme com o pioneirismo de um jesuíta de origem não lusitana, embora vinculado à Assistência de Portugal, mesma motivação que se encontra aqui e ali na obra de Serafim Leite. Quando Figueira escrevia, estava-se ainda sob o pálio da dinastia filípica, que aprofundou problemas na convivência entre inacianos lusos e espanhóis, que já existiam antes da União das Coroas (HCJB, II, 362-363). No Catálogo de 1607, quando já contava com 5 anos de Brasil, de Figueira se diz que sabe alguma coisa da língua brasílica (scit aliquod linguae brasilicae), pelo que se lê da referência incidental em Castelnau- L’Estoile (2006[2000]:471), em franca desvantagem com o proveito de Anchieta para o mesmo período de tempo. A segunda é que Figueira, instado por isso, quis presunçosamente suprir a deficiência oriunda do desinteresse dos novos inacianos na imersão missionária pelas aldeias, problema de grande envergadura quando de sua chegada ao Brasil, e que, claro, nenhuma Arte, nem mesmo a de Anchieta, poderia ter atalhado. Pero Rodrigues diz em 1609 que “desta Arte há no Colégio da Bahia lição em casa, para os que de novo começam a aprender a língua” (1955:34). Mas o jesuíta anônimo, autor de Algumas advertências para a província do

Brasil, datável do mesmo ano, diz que “a lição da língua na Bahia é puro cumprimento”, apud Castelnau-

L’Estoile (op.cit., p. 336), realçando que “não é fora de propósito ter a lição da língua em alguma aldeia onde se ajuntassem alguns que a aprendessem e um bom língua que a ensinasse” (p. 337).

499 Conde elaborou uma Cartilha trilíngue latim-português-tâmul, publicada em 1554, mas sem qualquer referência à obra pioneira do jesuíta Francisco Xavier, de 1542, do que concluiu Županov: “É possível que a empresa franciscana rival tivesse muito simplesmente optado por ignorar os instrumentos missionários dos Jesuítas” (1998:158).

500 Escreve Urbina: “Es muy probable que Antonio de Nebrija conociera Las Vidas de los santos religiosos de Gonzalo de Santa María, de tan amplia difusión en su tiempo. Las conociera o no las concociera, lo cierto es que nuestro gramático hace suy la sentencia de Santa María “la fabla comúnmente, más que todas las otras cosas

desvanecedor saber que, por sua cartilha, meninos etíopes, persas e hindus, a que nunca soara o tacão de Roma, soletrassem em português os rudimentos da fé católica.

Barros não é menos “libertário” que Fernão de Oliveira no que diz respeito ao nacionalismo linguístico em confronto com o latim, como escreve Sônia Bastos Borba Costa (2005:120)501. O novo império talassocrático tinha costados latinos502, mas sua própria língua, realizando afinal “mais do que fez a gente alta de Roma”, afirmará o Poeta (Lus. Canto VI, 30). Sendo assim, “melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma” (1975[1536]: 42), diz Fernão de Oliveira, autor da gramática, de cuja existência Barros fingiu não saber. Jorge Ferreira de Vasconcellos (? – 1585), na Comédia Eufrosina, apostrofa o imperialismo linguístico do latim na pena de Lorenzo Valla (1407-1457), como que censurando os pretéritos propósitos de Poliziano, que se oferecera, como se viu, a escrever a gesta ultramarina portuguesa nessa língua, opondo-se-lhe as virtudes expressionais do idioma pátrio: “Eivos de falar mera lingoagem, nam cuideis que he isto tam pouco, que eu tenho em muito a Portuguesa, cuja gravidade, graça laconia, e autorizada pronunciaçam nada deve aa latina, que Vala eçalça mais que seu império” (1918[1561]:7)503.

sigue al imperio, dándole nueva forma en la suya extraordinariamente acertada de que ‘siempre la lengua fue compañera del imperio’” (1992:35-6).

501

Que, linhas à frente, firma seu entendimento para a conclusão de que “o outro linguístico para João de Barros são, portanto, as línguas dos povos dominados, pois que o latim, sendo a ‘mãe’ do português, não lhe parece outro, afinal, é da família” (p.122).

502 Orgulho de todos os que escreveram sobre a língua portuguesa, a começar do próprio Barros que fala “dos termos da gramática latina cujos filhos nós somos” (1971[1540]:294), o que torna a enfatizar no Diálogo em

louvor de nossa linguagem, no que os lusos se avantajariam aos castelhanos pois “somos mais conforme aos

latinos” (p. 384). Trata-se de reverência presente na pena das grandes expressões literárias dos quinhentos: “excelente assim na prosa como no verso que só a latina lhe pode nesta parte fazer vantagem”, diz Gândavo (1574:2). Embora faça a boca de Vênus articular vocábulos sem comprovada filiação latina tais como “busca,

tomada, mofina, derramo e outros”, lembra Said Ali (1996[1914]:164), Camões não destoa desse balizamento

quando canta: “E na língua, na qual quando imagina,/ Com pouca corrupção crê que é a Latina” (Lus., I, 33). V. ainda o mesmo Said Ali (1966[1914:169) e tb. Carvalho (1993:196). Sobre o conceito de “corrupção” no Renascimento, v. Rebelo Gonçalves (1936:10). Francisco Rodrigues Lôbo, no seu clássico Corte na Aldeia, conhecido pelo trecho em que afirma que “a língua portuguesa não é manca nem aleijada” e, por isso, não admite vê-la “andar em muletas latinas” (p. 179), pondo-se a criticar os que a consideram a “borra da língua latina” (p. 178), não foge ao orgulho dessa ancestralidade ao afirmar que “tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da latina...” (1945:26). Esse tipo de reverência não autoriza, todavia, a equivocada ilação de Agostinho de Campos segundo a qual o temor ao avanço do castelhanismo ensejou que fossem os portugueses “levados a desnacionalizar” sua língua “pela aproximação do latim, e que assim nos livrou do perigo de a desnacionalizarmos de todo pela submissão ao espanhol” (HCPB, III, 52). Na melhor análise de Teresa Leal Pereira, mesmo sendo “presencialistas”, os gramáticos do século XVI tomam “a língua latina como modelo” de “forma bivalente, tanto no sentido de dignidade da dignidade que a origem latina conferia à língua portuguesa, como pela diferença que opunha uma à outra” (1999:157).

503 Muito apropriadamente, Aubrey Bell, na Introdução da obra de Vasconcellos, chama a atenção para a edição da Eufrosina de 1616, elaborada por Francisco Rodrigues Lôbo que, no trecho citado, “transformou o humanista italiano Lorenzo Valla (1405-57) em vo la” (p. XVI), com que ficou mutilado o significado da apologia.

Portugal não ficaria, portanto, de cócoras para Roma. Tinha sua própria língua e a refinada literatura de Gil Vicente, modelar no nacionalismo linguístico, segundo João de Barros no Diálogo em Louvor de nossa Linguagem: “Cômico que a mais tratou em composturas que alguma pessoa destes reinos” (1971[1540]:400).

6.5 “DÁ AO DEMO ESSE LATIM”504. EM CENA: A LUSOFONIA DO FUNDADOR DO

TEATRO PORTUGUÊS

Magnetizado pela cultura latínica, D. Manuel, o Venturoso, se mostrava alheio à realidade dos seus súditos, mesmo ao seu mais genial lírico: “Contentando-se el-rei muito de uma comédia que lhe representou um grande poeta daquele tempo em português, chamou-o e, praticando com ele, disse-lhe que, se fora latino, houvera de ser grandíssimo homem”, reconta a obra Ditos portugueses... ([1980]: 21)505.

Ao Brasil de povo ágrafo chegam os ecos dessa privilegiada verve dramatúrgica, porque José de Anchieta lera os autos do autor português quando estudava no Colégio das Artes, uma vez que “é impossível (...) não os ter conhecido e admirado: métrica, prosódia e muitas ideias de seus autos são semelhantes às do grande Mestre”, averba Armando Cardoso, o mais refinado crítico da produção literária do jesuíta (1977:14)506. Eram muitos populares esses autos a ponto de ingressar legendariamente no âmbito da literatura ainda quinhentista: “... dá ceitis para cerejas a menino da escola que leia Autos..”, diz Jorge Ferreira de Vasconcelos na Comédia Eufrosina, como lembrado por Teófilo Braga (1883:452). “Vós em pessoa nobre agraduado a obreiro, sobre que já competem as padeiras, lê pelo Conde

504 Auto das Fadas (1983, II: 407). 505

Em nota, José Hermano Saraiva comenta laconicamente que “não é impossível que o autor da comédia seja Gil Vicente”. Certamente era, afinal incomum encontrar-se “grande poeta” autor de “comédia” em Portugal. Não ser latinista ajuda a confirmar, pois vários estudiosos afirmam que não o era o dramaturgo: Carolina de Michaëlis (1949:223-4), Aubrey Bell (1940:27), Tejada Spínola (1945:58) e Joaquim de Carvalho (1948:330). V. em contrário Américo da Costa Ramalho (1969:159-73). Cerejeira (1949:89), que é daquela mesma opinião, justifica assim a ausência de contato entre Gil Vicente e Clenardo.

506 Não deixa de ser curioso notar com Teófilo Braga que “os mesmos Jesuítas que combatiam o teatro de Gil Vicente nos índices expurgatórios imitavam essa forma do Auto nacional como meio de propaganda católica nas missões do Brasil, como se vê pelas imitações feitas pelo Pe. Joseph de Anchieta” (1898:9). V. Magaldi (1962:18).

Partinoples, sabe de cor as trovas de Maria Parda507...”, põe-se a falar Rocha na Aulegrafia do mesmo Vasconcelos (1968[1547]:41).

Foi também Gil Vicente que influenciou José Anchieta a promover uma mais cruenta personificação hispanofônica do diabo e a usar de uma linguagem que se “abaixa ao nível do povinho colonial e indígena”, acentua Armando Cardoso (1984:55), que ainda salienta que o jesuíta se tornou “na lírica vernácula um Gil Vicente do Brasil” (ib.)508. E também como Mestre Gil, Anchieta não usou latim nas representações, “porque, do contrário, não se entendem, e é um desconsolo para os ouvintes”, escreve o jesuíta Cristóvão Gouveia em 1584 (HCJB, II, 407). “Tanto mais – acrescenta – que até então sempre se usava assim”509. As representações anchietanas, além do português, eram escritas em tupi, como o Diálogo de Guaraparim, de 1587; ou em português, castelhano e tupi, a exemplo do Diálogo Pastoril, de 1584, e o famoso Auto de S. Lourenço, de 1586.

José de Anchieta, ainda como Gil Vicente, foi capaz de perceber a força emotiva da sua própria língua, pois “é no lirismo castelhano que o poeta é mais confidente e impressivo”, observa J. Alves Pires, apud Maria Barbosa (2006:265). Mesmo assim, usou igualmente da encenação de linguagens para fins estéticos, efeito colimado por Vicente ao reunir falas em português e castelhano numa mesma peça510, ou como se dá no Auto da Fama, com falas em italiano e francês511, embora não tenha a seu turno o jesuíta avançado para imitar as falas dos variados personagens vicentinos de diferentes extrações geolinguísticas512

Se a dramaturgia de Anchieta ficou a cargo de sua espiritualidade acentuada pelo embate cênico entre o bem e o mal, Gil Vicente desanca a hipocrisia do poder temporal e

507 O pranto de Maria Parda.

508 Viotti (CCAP, 13), Assunção e Céu (2005:167) e Maria Barbosa (2006:361-2, 368 e 372). Cf. Berardinelli (2000:362).

509

Esse “então sempre se usava assim” desbordava inclusive dos limites brasileiros. António Martins Melo diz que “a compensar os exageros do teatro em latim, havia o teatro em vernáculo nas naus, nas missões da Índia e no Brasil, pela pena de Anchieta” (2000:136). Logo em seguida cita a obra de Mário Martins, Teatro

quinhentista nas naus da Índia: “Havia mesmo licença para isso, porque o bom-senso de muitos missionários e

as necessidades do povo assim o exigiram contra um renascentismo às vezes pouco inteligente neste ponto. E a respeito do Japão, o teatro em latim pouco foi, ou quase nada” (ib.). Mas, para o Brasil, em 1585, o Geral Acquaviva “concede ao Provincial do Brasil que os Diálogos se representem em vernáculo, mas as Tragédias e

Comédias como ‘coisas mais escolásticas e graves’ devem ser em latim”, escreve Franca reportando-se a

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