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Gil Vicente satirizava o grosso desconhecimento de latim, inclusive entre a clerezia que presunçosamente afetava sabê-lo, mesma observação que será sacada por seu leitor José de Anchieta, que, uma vez no Brasil, se chocará ainda com os excessos da carnalidade dos clérigos tanto com índias quanto com índios, além de outros que eram barregueiros515. Todos esses negligenciavam uma constituição erudita. Mesmo entre os bem intencionados como o padre jesuíta Manuel Paiva, que fora clérigo secular, havia baixo peso do latim na formação clerical, como insuspeitamente Anchieta registra ao dizer que ao tempo de Paiva “se fazia pouco caso e exame com os clérigos” (1988:490)516. Na verdade, em razão

513 “Nunca foi ele anticlerical, no sentido estreito da palavra”, escreve entretanto Mário Martins (1995:648), sem dizer o que entende por “estreito”. Cf. o que dizem Viterbo (1912:250), Joaquim de Carvalho (1948:276) e Bell (1940:81).

514Trata-se de carta descoberta por Carolina de Michaëlis na Biblioteca do Vaticano, referida por Bell (1940:126- 17).

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V. Nóbrega (2000: 79, 92 e 320) e CA (102, 211). A propósito deste vocábulo, Viterbo (1993[1798], II, 22) traz interessante informação histórica sobre a clerezia e a fradaria a que estava associada tal condição, voltando ao tema na entrada do vocábulo “meemfestar” (p. 397). Trata ainda do assunto na entrada “marido conuçudo” (p. 391-4). Sobre a polêmica etimologia, v. Sá Nogueira (1945:364) e Piel (1989:116).

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Não era incomum religiosos letrados despossuídos do farnel latínico, como no caso de Francisco de Mansilhas, que se foi com Francisco Xavier ao Oriente. V. a seu respeito Francisco Rodrigues (1931, I:255) e

dessa fisionomia linguística no panorama eclesiástico, o Concílio tridentino ecoa abertura à vernaculidade já existente, embora preservando o latim, conforme trecho do Cânon 9: “Si quis dixerit, Ecclesiæ Romanæ ritum, quo submissa voce pars canonis et verba consecrationis proferuntur, damnandum esse; aut lingua tantum vulgari missam celebrari debere (....) anathema sit”, ou seja, “se alguém disser que o rito da Igreja Romana pelo qual parte do cânon e as palavras da consagração se pronunciam em voz baixa, seja condenado; ou que somente deva celebrar-se a missa em língua vulgar (...) seja excomungado”517.

É ao clero secular que se endereçava essa abertura, e não ao conventual, a que efetivamente se relacionava aquela informação dada por Diogo de Castilho na obra Livro da origem dos turcos e de seus imperadores, publicada em Louvain em 1538: “Em os reinos de Portugal hai mui poucos que saibaom ha Lingoa Latina, que naom seiam ecclesiasticos”, apud Serafim da Silva Neto em notas a André de Resende (1942:56)518. Havia contudo um número excessivo de clérigos regulares em Portugal no século XVI, que certamente fugiam desse molde. Gil Vicente faz chalaça desse excesso na Frágoa do Amor: “somos mais frades qu’a terra sem conto na Cristandade” (1983, II:157). Para uma nação que vivia às voltas com baixo contingente populacional – apesar da pressão demográfica interna – e insuficiência gerada pela imigração, tornava-se alarmante o problema. Em Ditos portugueses..., relata-se que “um homem disse, vendo tantos homens de hábito de Cristo que antigamente perguntavam: ‘Vai lá diante um homem com hábito?’, e agora pelo contrário, haviam de perguntar: ‘Vai lá um homem sem hábito?’” ([1980]:356-7)519. Muitos desses frades banhavam-se no iletramento, medido pelo estalão da literatura latina. Havia aí um claro desdobramento da época medieval estudada por Oliveira Marques: “Muitos curas, como também muitos frades, não sabiam ler nem escrever” (1974:174)520.

Mulakara (1989:81). Um maior rigor na formação latinista parece acontecer a partir do Concílio de Trento, como sugere o estudo amostral feito por Taveira (1982). V. tb. António de Oliveira (1982: esp. p. 74).

517Ou porque reproduziu erradamente das fontes que cita, ou porque quis deliberadamente compatibilizar a transcrição com sua tese de falta de factibilidade da Igreja na preservação do latim em oposição às línguas nacionais, ou porque tropeçou na tradução, Burke escreveu que, após longa discussão em que alguns membros importantes do clero foram a favor do vernáculo, “o Concílio de Trento finalmente declarou, em 1562, que ‘se alguém disser... que a Missa deve ser celebrada no vernáculo... que seja considerado anátema’ (‘Si quis dixerit...

lingua tantum vulgari missum celebrari celebrari debere... anathema sit’) (1993:45 e 1995:56). Seria essa a

regra estabelecida pelo Concílio se não existisse a limitação adverbial do “tantum”, ou seja, “somente”... 518 V., entretanto, Rodrigues (1931, I:LII) e Mattos e Silva (2002:33).

519 Esse despropósito teve vida longa no Reino, pois, como relata Maxwell (1997:17), em 1750, para uma população inferior a três milhões de pessoas, Portugal tinha “um verdadeiro exército no clero: duzentos mil membros”. Um problema, todavia, que não era tipicamente português, como se vê das remissões de Cerejeira (1949:215).

520 Imbrica também com essa informação, acerca da fradaria desalatinada, aquela trazida por Burke de que eram muitos os clérigos ignorantes do latim, até mesmo monges, apoiando-se na notícia dada por Coulton: “descobrimos as autoridades admitindo vasta ignorância em latim, e fazendo traduções especiais para uso dos irmãos incultos” (1993:44 e 1995:55). No Sul da Itália, a situação foi alvo de carta do jesuíta Girolamo

Pela pureza de um latinismo, inclusive como pedra de toque gramatical do português, puseram-se a trabalhar os jesuítas, a exemplo do que se passava no Colégio Santo Antão, criado em 1553 em Lisboa, “um bom centro humanístico”, como salienta Rebelo (1982:89), que, na informação de 1554, tinha quase 600 alunos de Humanidades, relata o padre Inácio de Azevedo (MB, V, 49), que acresce: “El número de los studiantes cresce tanto que fue necessario partir los de una classe, en que pasavan de 200 y poner más un Maestro, de manera que son aora 6 de Humanidad” (p.48)521. Mas, mesmo aí, o incremento no aprendizado do latim estava na razão inversa do número de estudantes (MB, V, p. 57). E eram efetivamente muitos, a ponto de se cerrarem as portas à sua admissão: “Vienen muchos padres a pedir que admittan sus hijos al studio y como no los admittimos desconsuélanse mucho”, informa Azevedo na mesma passagem.

O êxito pedagógico no Colégio de Santo Antão é reputado como alavancagem da entrega à Companhia de Jesus do Colégio das Artes, uma como que “réplica portuguesa do Collège de France”, diz Joaquim de Carvalho (1948:68). O método é que parecia de rendimento dificultoso na aprendizagem. Os estudantes se guiavam, até a introdução da Gramática de Manuel Álvares, S.J., De Institutione Grammatica, pelo método do flamengo Despautério (Jean van Pauteren ou Johannes de Spouter ou Spauter), como escreve o mesmo Azevedo (MB, V, p. 57-8), autor de uma gramática cheia de difíceis hexâmetros e cujo método lhe rendeu ao sobrenome a conhecida transposição metonímica522: “Francisco Rodrigues assevera-nos que Despautério se adoptou cá, desde o início, nos colégios da Companhia e continuava em uso quando Manuel Álvares já compunha o livro que o imortalizou”, escreve Amadeu Torres (1984:11)523.

Domènech e Inácio de Loyola em 1547: “aquí hay una grandísima ignorancia entre los clérigos (...) no hay lección pública en gramatica” (Litt. Quadrim., 4 de Julio de 1547), apud Oesterreicher (2003:428).

521 Essa informação referente ao ano de 1554 sobre o número de mestres é confirmada no levantamento estatístico feito ou subscrito por Cristóvão Rodrigues de Oliveira no seu famoso Summario... Ela chega mesmo a ajudar na fixação da data do término dessa obra, já que, na própria introdução, Oliveira alude ao ano de 1551, data que tem sido corretamente atribuída à incumbência de sua feitura. Augusto Vieira da Silva, no prefácio da edição de 1938, estima sua impressão para a “segunda metade de 1554, ou mais provavelmente durante o ano de 1555”. Vê-se, pois, que a primeira datação deve ser preferida, até porque o padre Inácio de Azevedo, depois de anunciar o aumento para 6 do número de professsores de Latim em 1554, salienta que “será menester meter muchos más por el tiempo adelante” (p.48). No referido passo, Oliveira informa que “há neste Colégio seis mestres que ensinam latinidade sem por isso levarem nenhum prêmio, onde aprendem e estudam quatrocentos estudantes” (1938:56).

522 Navarro ampara-se também nessa metonímia para afirmar que “evidencia quão forte foi sua penetração em Portugal no período que analisamos” (2000:401).

523 Torres escreve ainda que os hexâmetros de Despautério “necessitam de uma empatia engenhosa para se entenderem. Julgo que ele próprio teve consciência disso, porque fez acompanhar cada regra hexamétrica da ordem das palavras e da sua tradução baculina” (op.cit., p. 16). V. Cerejeira (1949:253) sobre o equívoco reproduzido em Fortunato de Almeida quanto aos jesuítas terem estudado pela gramática de Máximo de Sousa. Todavia, veja-se Nair de Nazaré Soares (1999:250).

Apesar, todavia, do empenho inaciano, era tarefa difícil conter os furos no dique da latinidade escolar. Em Braga, no ano de 1562, a iniciativa de tornar flexível o rigor estrito foi do próprio reitor, o jesuíta Inácio de Azevedo524, pois, pelo que se conclui de suas palavras, a dureza da exigência trazia prejuízo à política lusofônica: “Tambem Pero Luis, que hé um Irmão valenciano que aqui lê o curso, desta maneira não poderá comprir com a regra que diz: ‘Procure de se conformar com nosa lingua’” (MB, V, 316)525. Ademais disso, era forçoso reconhecer um fato: “os mais dos mestres nas classes fallão portugez (...) parecia conveniente – determinando-o assi V.R. – se podesse fallar portugez, porque tambem releva aos que pretendem pregar que sejão polidos nele” (ib.). Não deve, então, ter causado muita estranheza que um dos escolares, de 18 anos, “hijo de un hombre honrado desta ciudad, mancebo de muy buen natural, (....) non aprendió latín hasta agora” (MB, V, 322).

Muitas vezes de uma informação tem que ser descontada a enxúndia louvaminheira, que passava por cima dos fatos em nome do bairrismo. É nessa conta que deve ser tida a informação dada pelo autor anônimo de Preparação espiritual de católicos (Coimbra, 1549), quando se põe a dar as razões da transcrição de certas passagens em latim na obra: “esta Catholica Vniversidade ha nella tantos e tam famosos letrados, e tantos e tam singulares latinos: e frorece nella tanto a lingua latina, que até os meninos que nam sabem ainda falar lingoagem, sabem já falar latim”, apud Joaquim de Carvalho (1948:69). Todavia, um dos motivos condutores da instituição do Colégio das Artes em Coimbra tinha sido exatamente o de melhor preparação para a frequência da Universidade, pela falta que havia nela, depois de esplendor meteórico, “nos princípios de latinidade”, nas palavras de Diogo de Murça a D. João III em 1541, reproduzidas por Pimenta (1936:264)526.

Aí mesmo em Coimbra, no Colégio dos Jesuítas, durante o reitorado do Padre Inácio de Azevedo, entre abril de 1557 a fevereiro de 1558, responsável por inovações como a distribuição de prêmios, mesmo sob a férula do rígido patrulhamento dos inacianos, os estudantes burlavam a proibição e conversavam em português, ou fora de tempo, como se lê

524 Inácio de Azevedo como que parecia antever que o latim poderia incutir ódio em algum algoz da Companhia, como veio a acontecer com a desalmada e violenta reação do capitão, sobrinho do corsário Jacques de Sores, à intervenção de Azevedo, a bordo daquela que ficou conhecida como expedição dos 40 mártires do Brasil, em 1570, em favor dos Irmãos já famintos àquela altura: “... e falloulhe em latim” diz o cronista do relato publicado por Brazão (1943:560). Porém, “a reposta foi logo aremeter a elle como hum leão, e darlhe muitas bofetadas, e lançavalhes huns olhos, q parecia o queria comer a bocados, e assim o lançou de sy, mas outros q allj estavão não se contentarão cõ isto (...) e começarão de darlhe tbem bofetadas, e pescossadas, e lhe tomarão o barrete, e o lançarão ao mar...” (ib.).

525 Isso mostra o desacerto da asserção de Ramalho, embora se refira a Coimbra, de que “o latim deve ter sido a língua de todas aulas”, o que permitirá que “possam ensinar numerosos professores estrangeiros, dado que eles não precisam aprender português” (1998:66).

da carta escrita por Gracida, do Colégio de Coimbra, ao português Manuel Lopes, reitor do Colégio de Alcalá, escrita a 14 de fevereiro de 1558: “Se viesen el fervor y plazer tan grande con que unos dexan de comer fructa, otros caldo y otros carne, otros todo junto: y esto por un hablar lenguaje, o fuera de tiempo” (MB, V, 152)527.

O peso da lusofonização irá se abater sobre o clero regular por estar irmanada com a expansão capitalista que envaidecia o homem português de qualquer extração. O latim e sua literatura eram sem dúvida vivazes em certos ambientes monacais, símbolos da influência do braço de outra ordem dirigente, como relata a Descripçam e debuxo do moesteyro de Santa Cruz de Coimbra, impressa em 1541 no célebre monastério, a cuja história está ligada a da Universidade. No seu terreiro havia um “tavoleiro ladrilhado” a que acorria grande número de estudantes em disputa intelectual, “e a todos é opróbrio falar, salvo em língua romana ou grega, o que aos olhos dos caminhantes é um espetáculo de ver”, como se vê da reprodução fac-similada feita por I.S. Révah (1958c:Ailijvo)528. A lusofonia legente, entretanto, impunha sua força, pois Veríssimo, tradutor da Descripçam..., na introdução, averba: “Entre outros exercícios tirei de língua romana em a nossa materna a descrição que vos envio...”.

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