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A luta pela contracepção e a Associação para o Planeamento da Família

No documento Feminismos em Portugal (1927-2007) (páginas 197-200)

PARTE II – DO ANTIFASCISMO A UMA NOVA AGENDA FEMINISTA

CAPÍTULO 5 Anos 60, os ventos para uma nova vaga dos feminismos não chegam a Portugal

8. A luta pela contracepção e a Associação para o Planeamento da Família

―A contracepção surgiu como algo de subversivo, porque permitiu dissociar a experiência sexual

da experiência reprodutiva‖

MITCHELL, Juliet (1973)

Em Portugal, a pílula foi utilizada pela primeira vez, em 1962, para fins terapêuticos. A sua divulgação processava-se de forma muito limitada pois as concepções da época e, apesar de alguma abertura verificada nos anos sessenta, impediam que as questões da contracepção e da sexualidade fossem mais assumidas. A sexualidade era associada ao pecado e a maternidade nem sempre era um acto de alegria, mas uma fatalidade, em especial para as mulheres que já tinham muitos filhos.

A maternidade como destino de todas as mulheres continuava a ter um grande peso nas consciências das mulheres portuguesas, numa sociedade fechada ao exterior e aos movimentos feministas que, na Europa e nos EUA, começavam a colocar em causa esse ―determinismo biológico‖. A maternidade começava a ser entendida como uma

402 ―A participação da mulher no desenvolvimento brasileiro – conferência da Dra Romy Medeiros da

construção social,403que designava o lugar das mulheres na família e na sociedade, subordinado ao dos homens. 404

APF – uma origem plural em condições difíceis

O papel da Associação para o Planeamento da Família nos finais dos anos sessenta foi muito importante, pois envolveu diversos sectores sociais, inclusive católicos motivados pelos debates em torno do controlo da natalidade suscitados pelo Concílio Vaticano II.

Em 1967, foi criada a Associação para o Planeamento da Família (APF). A Comissão Instaladora da associação foi formada por Manuel Neves e Castro, Manuela Silva, Caetano Vieira de Campos, Maria Helena Vieira de Campos, Filipe Nobre Guedes, Maria Luísa Nobre Guedes e pelos padres José Mendes Serrazina, José Carlos da Silva e José António da Silva Soares. Na origem da APF estiveram assim três grupos de pessoas: casais católicos, ginecologistas/obstetras e enfermeiras, preocupados com a inexistência de planeamento familiar e confrontados com situações de sofrimento das mulheres pelo recurso ao aborto clandestino e assistentes sociais, jornalistas, sociólogos, psicólogos, que pretendiam ter intervenção no sentido da mudança social. 405

Segundo o médico Dória Nóbrega:

"A APF recebeu, desde logo, o apoio da IPPF- Federação Internacional de Planeamento Familiar, interessada como estava em alargar a sua rede de associações no sul da Europa, e é olhada com desconfiança pelo Governo e pela Igreja. Desde o início a APF nasce como uma associação incómoda para os sectores sociais conservadores e para os governo da época, que chegaram a congelar as contas bancárias da APF e a censurar uma mesa redonda na RTP sobre planeamento familiar".406

A partir de 1969, entraram na APF novos sócios, que começaram a lançar delegações regionais. Procedeu-se à alteração dos estatutos, até porque, segundo Manuel

403 Entenda-se que no campo feminista existiu uma evolução desta concepção e também diferentes

posições foram sendo assumidas. Passou-se da concepção da maternidade como algo que confinaria as mulheres a um papel secundário, daí que a sua recusa seria a forma de subverter a dominação masculina para um segundo momento em que a maternidade passa a ser considerada como um poder insubstituível, o qual só as mulheres possuem e os homens invejam (Luce Irigaray, Le corps – à – corps avec la mère, Montreal, Pleine Lune, 1991). Num terceiro momento surge a desconstrução do ―handicap‖ natural. Não é o facto biológico da reprodução que determina a posição social das mulheres, mas as relações de dominação que atribuem um significado social à maternidade.

404 SCAVONE, Lucila (2001), ―A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais‖,

Cadernos Pagu, nº 16,, pp. 137-150.

405 Da intervenção do médico Dória Nóbrega na sessão comemorativa dos 30 anos da APF, na revista da

APF, Sexualidade e Planeamento Familiar, nº 13-14, 2ª série, Janeiro/Julho de 1997.

406 NÓBREGA, Dória, "Planeamento Familiar - um conceito subversivo", in APF, Revista Sexualidade e

Neves e Castro, fundador da APF, para que esta fosse legalizada407

foi preciso o parecer favorável do Cardeal Patriarca, o que só veio a acontecer perante a inserção nos primeiros estatutos, no seu artigo 19º, de um consultor eclesiástico nomeado pelo Patriarca de Lisboa, que permitisse garantir "o conhecimento autorizado do pensar da Igreja sobre os problemas da moralidade conjugal e familiar". 408

Segundo o sociólogo Duarte Vilar, director executivo da APF, houve uma primeira fase em que a associação foi praticamente suportada por voluntários médicos, por católicos, por alguns jornalistas e por pessoas ligadas à oposição e até à ala liberal do regime.

―O nosso sócio nº 1 é o médico Miller Guerra, que foi deputado da ala liberal e provavelmente outros fundadores situar-se-iam também neste campo político e noutros de opsição ao regime. Juntaram-se, nessa altura, algumas pessoas interessantes: por exemplo, Paquete de Oliveira e Helena Marques no Funchal. A APF teve na época uma delegação no Funchal, que deixou de existir e, só agora, se abriu de novo essa delegação. Havia uma ligação às pessoas que colaboravam com o jornal ―Comércio do Funchal‖. Também houve uma ligação aos católicos. Na fundação da APF estão presentes alguns casais católicos, como por exemplo: a Bertina Sousa Gomes, o António Sousa Gomes. Na altura, existia um grande debate ligado ao Concílio Vaticano II e a posição da Igreja em relação à contracepção foi um balde de água fria, porque esses católicos estavam à espera de uma outra posição.Também existiam na APF padres católicos. Os primeiros estatutos da APF obrigavam a que na direcção estivesse um padre católico. A APF, no seu início, comprometia-se a seguir as normas da moral católica. Pouco tempo depois, o patriarcado entrou em conflito com a APF, porque começámos a divulgar a pílula contraceptiva, isto nos finais dos anos 60. (...) Os médicos voluntários da APF eram adeptos da pílula contraceptiva. Houve, então, uma nota do Patriarcado a querer ―colocar-nos na ordem‖. 409

Nos novos estatutos da APF ficou consignado o direito das mulheres decidirem sobre o controlo da sua fecundidade. O grande lançamento da APF, em termos de opinião pública, tinha-se realizado, a 24 de Outubro de 1967, numa Conferência sobre Planeamento Familiar proferida pelo teólogo holandês C. P. Sporken.410

A partir dessa altura, a APF promove consultas de regulação da natalidade e da infertilidade na sua sede e uma conferência sobre esterilidade, orientada pelo professor sueco Carl Benzel. Em 1970, a APF edita um primeiro cartaz dedicado ao filho desejado. Em 1973, o Ministério da Saúde autoriza consultas de planeamento familiar em alguns dispensários materno-

407 Diário do Governo de 17 de Agosto de 1967, Folha nº 2859. 408

Dos primeiros estatutos da APF, 1967.

409 Entrevista com Duarte Vilar, director executivo da APF, realizada a 8 de Junho de 2007.

410 Sporken era secretário da Comissão Moral e Medicina da Associação de Médicos Católicos da

Holanda e presidente da Comissão Casamento e Família do Conselho Pastoral Holandês. Era uma personalidade de peso nos meios católicos, científicos e sociais da época.

infantis. Os contraceptivos eram fornecidos pela APF, pois incluir contraceptivos no receituário era prática pouco comum naquela época.

Um conjunto de mulheres fizera do seu trabalho na APF um importante espaço de reflexão sobre os problemas das mulheres. Maria Antónia Fiadeiro refere que a sua consciência feminista cresceu na direcção da revista Modas e Bordados e na sua intervenção como dirigente da APF onde trabalhou com pessoas muito interessantes como Eugénia Moura, Laura Ayres, a enfermeira Liliete, o médico Albino Aroso e Allen Gomes.411

Com Miguel Oliveira e Silva elaborou a primeira publicação sobre planeamento familiar em Portugal o boletim da APF.

O 25 de Abril de 1974 veio alterar as condições em que trabalhava a APF. Um texto oficial do programa de Acção do Ministério dos Assuntos Sociais, de Maria de Lourdes Pintasilgo, faz a primeira referência oficial sobre o planeamento familiar como um direito constitucional de todos os cidadãos e cidadãs. Na Constituição de 1976, no seu artigo 67º, este direito ficou consignado.412

No documento Feminismos em Portugal (1927-2007) (páginas 197-200)