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CAPÍTULO I Os primeiros anos de formação de Antonieta de Barros: família e

1.2. A luta pela sobrevivência e as relações de sociabilidade

Difícil saber com exatidão a data da chegada de Catharina Waltrich à capital. Parece que chegou acompanhando a família Ramos, quando Vidal Ramos foi eleito vice- governador, em 1898. Tudo indica que a rua Arcipreste Paiva (Imagem 2) foi onde se localizava a primeira morada de Catharina e sua família. Essa rua, ao lado da Catedral Metropolitana, era próxima à Escola Normal, ao Grupo Escolar Lauro Muller e à Igreja do Rosário, sendo uma via simples, com casas modestas, porém, próxima a espaços

50 estratégicos e frequentados pela família. Catharina parece ter residido ali, até a formatura de Antonieta na Escola Normal.69

Imagem 2. Rua Arcipreste Paiva, início do século XX.70

Na imagem 2, pode-se imaginar o cenário encontrado por Catharina Waltrich ao chegar à capital e instalar-se, com sua família, à Rua Arcipreste Paiva. Nessa foto não é possível identificar a localização de sua casa, porém, percebe-se que se tratava de uma rua que agrupava casas modestas e geminadas, sem calçamento, e próxima à Igreja Matriz e a área de comércio popular. No lado direito, pode-se avistar homens envolvidos em algum tipo de atividade e, ao fundo, a baía sul. Embora seja possível visualizar, do lado esquerdo, a presença de um poste, muito provavelmente naquele período, nem todas as casas da cidade eram servidas por energia elétrica. Em um dos escritos de Antonieta, este do início da década de 1930, ela fez da luz elétrica o tema central de sua reflexão. Ao mesmo tempo em que reclamava da qualidade desta, fez menção ao uso do lampião à querosene. “(...) A Claridade romântica da lua, diante da qual era nula a luz fraca dum

69 SILVA, Josefina da. Antonieta de Barros – Maria da Ilha: Discurso e Catequese. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Literatura. Centro de Comunicação e Expressão. UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: 1991.

51 lampeão a querozene (...). A luz elétrica, embora fraca, como é a nossa, fez morrer a ternura, o encanto existente nas serenatas”.71

Imagem 3. Rua Arcipreste Paiva entre as décadas de 1930 e 1940.72

A imagem 3 apresenta a mesma rua, entre as décadas de 1930 e 1940. Neste momento esta já espelhava os resultados das mudanças decorrentes do projeto de modernização e urbanização por que passava a capital e que avançava, como calçamento, iluminação pública e um conjunto de prédios públicos e particulares, construídos segundo o modelo arquitetônico vigente. Tal processo não foi uma ação contínua, e sim marcada por rupturas causadas pelas mudanças de governo e pelas faltas ocasionais de verbas. A arquiteta e urbanista Eliane Veras da Veiga, em seu estudo sobre Florianópolis e a memória urbana da cidade, afirmou que “a área à leste e ao fundo da Catedral manteve-se por algum tempo ocupada por ‘moradinhas’ e cortiços, que só desapareceram com as medidas de saneamento urbano adotadas no final do século XIX e início do século XX.”73

Nesse estudo, esta urbanista se mostrou preocupada, principalmente, com as questões estéticas decorrentes dessas transformações, esquecendo que trabalhadores e suas famílias, pertencentes às classes populares, vivenciaram, em suas casas modestas, essas mudanças. Estes espaços também guardam as memórias desses sujeitos que

71 Jornal República, 14 de fevereiro de 1932, p.02.

72https://carlosdamiao.wordpress.com/category/memoria-catarinense. Acessado em 11/10/2014. 73

VEIGA, Eliane Veras da. Florianópolis: Memórias Urbanas. 3ª edição. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 2010, p.209.

52 também fizeram parte dessa história. Veiga utiliza-se de trechos da obra do início do século XX, de Oswaldo Rodrigues Cabral, médico, professor, político e historiador, que abordou a história da cidade de Desterro e os costumes de seus moradores74. Homem de seu tempo, Cabral foi influenciado, como também ajudou a propagar, um discurso higienista, também machista e racista, se considerados sob o olhar contemporâneo, que condenava os bairros (Figueira, Rita Maria, Toca e Tronqueira) habitados por sujeitos das classes populares – tais quais marinheiros, lavadeiras, pedreiros, sapateiros e prostitutas – como sendo antros de imoralidade e focos de doenças. Impressionada com o trabalho de Cabral, Veiga acaba por reproduzir os estereótipos produzidos por esse discurso higienista do início do século XX.

Quanto à trajetória de Antonieta, aos 17 anos, ingressou na Escola Normal para cursar o Magistério. Logo que concluiu os estudos, uma das alternativas encontradas pela recém-formada e por sua família, para garantir a sobrevivência, foi abrir uma pequena escola particular, denominada Curso Particular Antonieta de Barros, que recebia crianças em período de alfabetização e adultos com vistas aos exames preparatórios para o ingresso no ensino superior.

Cecília Vieira do Nascimento, em seu estudo sobre as trajetórias de mulheres professoras, em Sabará, entre os anos de 1830 e 1904, afirma que a feminização do magistério tem sido tema de muitos estudos recentes, tais quais os trabalhos de Heloísa Villela e de Jane Almeida, sobre a institucionalização da formação docente por via das escolas normais. Ambas comungam a interpretação desse fenômeno estudado por Jane Almeida, a de que as escolas normais ocuparam um papel fundamental para ocupação feminina vocacionada para a docência.75 Isso parece ter sido os casos de Antonieta e Leonor de Barros que, por meio da formação docente, puderam romper os limites econômicos impostos por suas origens humildes e pela cor negra de suas peles, conquistando certa mobilidade social, o que promoveu suas reinserções sociais.

Segundo a pesquisadora Luciene Fontão, logo depois de se formar como normalista pela Escola Normal Catarinense, em 1921, Antonieta de Barros oficializou, no ano seguinte, a criação do Curso Primário Antonieta de Barros de Alfabetização, que

74 Oswaldo Rodrigues Cabral possui vasta produção e foi um dos historiadores mais influentes no estado. Ao longo de sua trajetória de vida, ocupou espaços de destaque social. Foi médico, professor, pesquisador e político, nos jornais da capital é possível encontrar escritos de sua autoria. CABRAL, Oswaldo Rodrigues.

Nossa Senhora do Desterro. Notícia. Florianópolis: Lunardelli, 1979.

75 NASCIMENTO, Cecília Vieira do. Caminhos da Docência. Trajetórias de mulheres professoras em

Sabará - Minas Gerais (1830-1904). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação da

53 funcionava diurnamente junto à casa de sua família, agora em novo endereço, situada na rua Fernando Machado nº32. O curso também funcionava em horário noturno, nesse caso, voltado para a alfabetização de adultos.76 Sua irmã mais nova, Leonor de Barros, concluiu o mesmo curso dois anos depois de Antonieta e as duas, a partir de então, se tornaram as principais responsáveis pelo funcionamento da pequena escola, mantendo-a ativa entre os anos de 1922 a 1965, em um cenário educacional problemático e em constantes mudanças (o curso manteve-se mesmo após a morte de Antonieta de Barros, ocorrida em 1952).

Certamente, como muitas outras mulheres dessa época, as irmãs Barros perceberam na educação escolar a garantia de uma sobrevivência mais digna para a família, economicamente melhor do que a que sua mãe perfazia com o trabalho de doméstica.

76 FONTÃO, Luciene. Nos passos de Antonieta. Escrever uma vida. Tese de Doutorado. Programa de Pós- Graduação em Literatura. Centro de Comunicação e Expressão. UFSC. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2010, p.383.

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Imagem 4. Curso Primário Antonieta de Barros, início da década de 30.77

Na imagem 4, pode-se observar uma foto dos integrantes da escola de Antonieta de Barros. Lá estão meninos e meninas de diferentes faixas etárias, agrupados conjuntamente, sem separação por turmas, posando para a fotografia. A importância do momento pode ser captada por meio da preocupação esboçada na organização e nas poses. Ao fundo da imagem, estão alguns adultos, provavelmente funcionários e/ou professores, na lateral direita, avista-se a própria Antonieta e, na esquerda, Leonor de Barros. Não se pode afirmar se as classes de alunos eram formadas por turmas mistas, ou separadas por sexo, mas, por se tratar de uma escola particular, é provável que sim, visto o intenso trabalho, que ocorreu logo após a Revolução de 1930, de extinção de classes formadas apenas por meninos ou meninas, e a criação das turmas mistas nas escolas públicas locais. Outro aspecto observado, diz respeito ao caráter simples do próprio estabelecimento (chão batido, terreno em desnível).

A rua Fernando Machado (anteriormente chamada de rua do Vigário), onde se localizava a escola de Antonieta, ocupava ponto estratégico da cidade, próximo às tradicionais ruas de comércio do centro, como a Saldanha Marinho, a dos Ilhéus, a João Pinto e uma das mais importantes, a avenida Hercílio Luz, também chamada de avenida do Saneamento. Esta última foi um dos principais símbolos das reformas urbanas na capital, iniciadas no final do século XIX e que se estenderam pelas primeiras décadas do século XX. Na imagem 5, pode-se observar a rua João Pinto, que se localizava nas proximidades da rua Fernando Machado.

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Imagem 5. Rua João Pinto, em 1903.78

Ainda segundo Luciene Fontão, a mudança da família para a rua Fernando Machado ocorreu na década de 1920 e teria sido motivada pelas reformas que a via sofrera recentemente, como o saneamento, a fim de atender à clientela nova de moradores da região, passando a apresentar a imagem de “desenvolvida” e “próspera”.79 Certamente, com essas intervenções, as áreas, até então pouco valorizadas, passaram a atrair novos moradores e, de acordo com essa autora, tais mudanças é que teriam motivado a família de Antonieta a ali se estabelecer.80

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SILVA, Alberto Nicolich. Ruas de Florianópolis. Florianópolis: Franklin Cascaes, 1999, p.73

79 FONTÃO, Luciene. Nos passos de Antonieta. Escrever uma vida. Tese de Doutorado. Programa de Pós- Graduação em Literatura. Centro de Comunicação e Expressão. UFSC. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2010, p.251.

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Imagem 6. Rua Fernando Machado, na década de 1930.81

No entanto, ao se observar uma fotografia da rua Fernando Machado (Imagem 6), esta da década de 1930, a via não parece ser o melhor exemplo de modernidade urbana. É possível visualizar um conjunto de casas geminadas, algumas modestas, passeios esburacados e com entulhos, transeuntes em passeios apertados e o trafegar de uma carroça. Nada disso indica, como fizera Luciene Fontão, que a família tivesse sido atraída pelas modernidades de que a rua passara a dispor. Pelo contrário, o que parece mais provável para explicar a mudança de endereço da família Barros foi a formação, como normalistas, de Antonieta e Leonor e a abertura da pequena escola, que teriam permitido alguma mobilidade social e econômica da família.

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Imagem 7. Rua Saldanha Marinho, em 1930.82

Como se pode observa-se na imagem 7, algumas ruas adjacentes à rua Fernando Machado, como era o caso da Saldanha Marinho, também exibiam precárias condições de instalação e circulação, tendo alguns trechos não pavimentados e estreitos.

Nos jornais da época, são veiculados anúncios sobre a escola de Antonieta de Barros e sua irmã, como o que se vê na Imagem 8, encontrada no jornal O Idealista, que circulou na década de 1940. Percebe-se que o curso recebe o seu nome, mas no centro, a professora que aparece em destaque é Leonor de Barros e não Antonieta.

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Imagem 8. Anúncio publicitário do Curso Antonieta de Barros na década de 1940.83

Este mesmo impulso de modernização que tomou conta da cidade desde o final do século XIX, estendendo-se pelas primeiras décadas do século XX, foi o responsável pela criação e manutenção de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, o Instituto Polytechnico de Florianópolis, (mais tarde transformado em Faculdade de Direito) e a própria Academia Catharinense de Letras.

Foi vivenciando, e até mesmo condescendendo com essas preocupações queainda na década de 1920, Antonieta buscou engajar-se nas letras locais, associando-se ao Centro Catharinense de Letras, instituição literária fundada em desacordo com a Academia Catharinense de Letras. Do Centro faziam parte políticos, jornalistas e professores. Além de Antonieta, outras mulheres, como Isaura Vieira de Faria, Jovita Lisboa, Maura de Senna Pereira e Beatriz de Sousa Brito, e alguns poetas negros, como Ildefonso Juvenal e Trajano Margarida, aventuravam-se no pequeno e inexpressivo universo literário local. Parece ter sido por meio desta atuação tímida no universo das letras locais que Antonieta se inseriu na esfera pública. Da instituição literária, também faziam parte alguns nomes já conhecidos da imprensa local, como Anfilóquio Nunes Pires, Araújo Figueiredo e Oscar Ramos.

O Centro Catharinense de Letras surgiu de uma disputa existente entre esses intelectuais, oriundos das camadas populares, muitos deles negros, e a Academia Catharinense de Letras, que agregava a elite das letras do Estado. O motivo da desavença

59 residiu no fato de que esta última estava restringindo, ou mesmo impedindo, a participação de escritores por ela considerados “menores”. Altino Flores, diretor da Academia84, expôs, sem constrangimento, os motivos dessa política à Revista Terra, órgão pertencente à Academia ao se referir a Cruz e Sousa, um conhecido poeta negro e que era um dos principais representantes da literatura simbolista catarinense e brasileira, mas que carregava os estigmas intelectuais que se atribuíam à sua cor:

Cruz e Sousa foi um bem e foi um mal para as letras catarinenses: foi um bem porque, dando-nos versos admiráveis, tornou o nome de nosso Estado conhecidíssimo entre os demais; foi um mal porque, por ser negro, despertou em todos os negros de Santa Catarina, que acompanham a evolução literária do Brasil pelo texto dos Almanaques, a veleidade de poetas.

Ildefonso, por exemplo, é um destes (...).

Ildefonso é bronco, iletrado, vaidoso, embora se cubra do verniz da modéstia, não tem o mínimo sentimento do que seja o ritmo poético e ignora todas as condições de prosa artística. Desconhecendo a técnica do verso e as leis sintáticas que condicionam a integridade estrutural do período na prosa portuguesa, não pôde, por isso, até hoje, fazer coisa que prestasse. E não o poderá nunca.85

Observa-se, pois, a partir de sua fala, que o poeta simbolista Cruz e Sousa ajustava-se aos propósitos dos ideais burgueses, quando esta classe buscava elevar o nome do Estado frente à inexpressiva produção literária catarinense, do final do século XIX e início do XX. O fato de o poeta ser negro era destacado, por Altino Flores, como uma “fatalidade”, e lamentava esse fato. Já sobre o poeta Idelfonso Juvenal, a má qualidade de seus versos era usada como pretexto para impedir sua entrada e convívio com a elite dos árcades catarinenses. Mas, por trás da acusação de má qualidade da escrita de Idelfonso, o que se revelava era que, embora passados mais de 20 anos da morte de Cruz e Sousa, o reconhecimento por parte da Academia e dos demais meios literários, da existência de uma produção literária procedente de escritores negros, representaria a possibilidade de desafiar a lógica racista imposta pela escravidão. É bastante provável, como demonstra a relação estabelecida no discurso de Altino Flores, que foi a trajetória de Cruz e Sousa que estimulou Antonieta e os demais literatos

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Aspecto no mínimo curioso sobre a fundação da Academia Catharinense de Letras diz respeito ao critério de escolha dos seus sócios, esta agregava apenas homens, não levando em conta o fato de que a grande maioria não tinha sequer uma obra publicada, era uma Academia de Letras sem letras, porém, todos faziam parte da elite política e social da cidade. Foram seus sócios fundadores, além de Gama D’Eça e Flores, Fúlvio Aducci, Ivo D’Aquino, João Crespo, Barreiros Filhos, Nerêu Ramos, entre outros.

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Revista Terra. Ano 1, nº.17, 1920. Apud: CORREA, Humberto P. História de Florianópolis - Ilustrada. 3ªed. Florianópolis: Insular, 2005, p.307

60 descendentes de africanos a romperem os limites racistas e a lutarem pelo direito de serem reconhecidos como intelectuais pelas instituições oficiais de promoção da cultura no Estado, como era o caso da Academia, que, no entanto, fechou-lhes as portas.

Com o fechamento das portas da Academia Catharinense de Letras aos escritores negros, com o epíteto de que a qualidade de sua produção intelectual era inferior, não restou a esses intelectuais outra solução senão a criação de um espaço próprio para suas reuniões. Assim, foi fundado o Centro Catharinense de Letras e este acabou por oferecer à Antonieta muito mais do que uma simples porta de entrada para as letras locais (apesar da curta duração de sua existência), servindo principalmente para que ela fortalecesse seus laços de sociabilidade com membros pertencentes tanto às classes populares, que como ela buscavam seu espaço no seio da elite intelectual, quanto com a elite política local. Fazer parte de tal espaço era também legitimar os códigos de civilidade desejável a vida urbana, entretanto é também, evidenciar o impulso utilitário de atuação pública por meio das letras de um grupo outsiders.

Um destes escritoresoriundo das classes populares foi Ildefonso Juvenal. Embora não tenhamos encontrado evidências que apontassem para uma relação mais próxima entre ele e Antonieta, os dois foram colaboradores de alguns jornais e circularam por espaços comuns. Além do Centro Catharinense de Letras, frequentaram o Centro Cívico e o Recreativo José Boiteux. Pertencendo a um grupo outsiders, Ildefonso não se silenciou frente aos ataques dos aspirantes a críticos literários da capital. Encontra-se no jornal, O

Elegante, uma resposta aos seus críticos intitulada Cruz e Sousa e seus admiradores:

Andam a falar encomiasticamente de Cruz e Sousa e de sua obra os maiores inimigos da infeliz raça a que o poeta se orgulhava de pertencer. E aqueles que nutrem preconceitos absurdos que, não tem o desprendimento nobre dos homens virtuosos e dignos que não vêm nos indivíduos de cor de epidermes quando as ações são puras e os sentimentos nobres, não podem absolutamente emitir opinião sobre Cruz e Sousa e sua obra, sob pena de serem apontados como profanadores de sua augusta e venerável memória. Vivesse Cruz e Sousa nesta época, e por certo encontraria em cada um desses exclusivistas um amigo insincero, desleal, invejoso que haveria tramar contra ele as mais nefandas maquinações de intriga, para vê-lo abatido moralmente, de rojo no abismo do obscurantismo impatriótico e do ridículo revoltante.86

Além da denúncia explícita de racismo, há também uma questão identitária. Ao trazer a experiência de Cruz e Sousa para o centro da discussão, Ildefonso reivindica para

61 si o espaço negado àquele autor, também ele um homem livre de cor que, embora tenha vivido durante o tempo do cativeiro, nunca chegou a ser um cativo. Ildefonso identifica- se com Cruz e Sousa a partir do momento em que este assume a posição de homem livre de cor e sua produção literária se torna a via que poderia levar ao reconhecimento e, com isso, à mobilidade social. Como qualidades dele, destaca as virtudes e os sentimentos nobres contra a inveja, a deslealdade e a intriga. Não é possível ter certeza se essa crônica foi direcionada a Altino Flores, mas por certo se destinava a atingir o grupo ao qual Altino pertencia, os Belletristas, formado conjuntamente com os demais aspirantes a literatos da Academia de Letras da Capital. Algumas vezes, como no texto a seguir, a sátira foi a forma encontrada para extravasar as críticas direcionadas aos Belletristas:

Após um ano

Faz hoje um anno que o nosso distincoconterrâneo snr. Trajano Margarida, publicou um folheto em verso intitulado “O Natal do Orphãosinho,...

Não faltaram espíritos maléficos, que pretendessem desprestigiá-lo.

Trajano não desanimou, assim é que se acha em preparativos o seu segundo: “A culpa dos paes...

Era o caso de escrever também outro com o título “A culpa das mães... fazendo o público sciente que, o atrevimento de alguns “belletristas” e críticos, provem da falta de chineladas...

Quem tem culpa disto, por conseguinte são as mães (dos citados) que lhes pouparam tantos ardumes, causados pela chinelada e assim talvez evitassem que “inocentes” se tornassem extremamente pretenciosos.

Um abraço pois, o bom amigo Trajano que foi também como nós um martyr